Pedras de SC são um caso único no mundo

Artes rupestres gravadas em rochas de SC guardam segredos astronômicos de povos indígenas.

Pedras de SC são um caso único no mundo

Artes rupestres gravadas em rochas de SC guardam segredos astronômicos de povos indígenas.

O cenário cultural da arte rupestre litorânea catarinense é especial e coloca o estado como um caso único no mundo. A conclusão é do pesquisador em Arqueologia Cultural, também médico MTC (Medicina Tradicional Chinesa) e atual pós-doutorando na UFSC (CCE, Centro de Comunicação e Expressão, curso de Design), Yu Tao, que reside em SC.

Ele estuda há anos, em universidades e em contatos com aldeias guaranis da região de Florianópolis (Biguaçu), o rico acervo de pedras com entalhes gráficos em baixo relevo do litoral do estado. Não são pinturas, são gravuras/gravações feitas por povos pré-coloniais sem ferramentas de metal.

A célebre Ampulheta

Após uma pós-graduação arqueológica do tipo MBA e contando com a ajuda informal de orientadores guaranis (gesto indicativo de uma confiança rara e preciosa por parte das aldeias, conforme dizem antropólogos acerca da tribo, geralmente silenciosa e comedida em relacionamentos com pessoas não-indígenas) Yu Tao conseguiu decifrar tempos atrás, por exemplo, o mistério da “Ampulheta”, o desenho em rocha mais famoso de SC.

Sombras do relógio gnômon

Ele verificou que o grafismo tinha ligação com o Sol, divindade maior dos guaranis e de diversos grupos indígenas: “A figura do arco solar, linhas de sombra projetadas no solo com o uso do relógio do sol/gnômon durante o passar do dia, é muito semelhante à figura de uma ampulheta.” (Ver AND de 24 agosto 2023: Decifrando o mistério de pedra famosa em SC).   

Os dois pilares

“SC configura-se como um caso excepcional no panorama mundial da arte rupestre devido a 2 pilares fundamentais”, diz Yu Tao.

O primeiro, esclarece ele, é o contexto arqueológico singular catarinense e o segundo é a continuidade etnocultural viva.

Ou seja, é a união de um conjunto especialíssimo de obras artísticas rupestres somada com a sabedoria antiga viva nos índios atuais.

Descrições de gravuras rupestres na tese de Fabiana. Foto: Captura de tela

“Não são muitos lugares no planeta que possuem uma circunstância como essa”, afirma o pesquisador. “Em vários países da Europa, por exemplo, não é mais possível fazer esta soma, pois o indígena, a cultura original dos autores, morreu, desapareceu. O acervo das pedras existe, porém os seus criadores sumiram. Um exemplo seria o célebre conjunto de Stonehenge, na Inglaterra. Aqui em SC há a sobrevivência de ambos: das pedras decoradas e dos indígenas.”

Simbologia solar e conhecimentos secretos

Só em sua parte central atlântica (Porto Belo a Garopaba) S. Catarina “preserva 28 sítios arqueológicos costeiros integrados à Tradição Litorânea Catarinense, reconhecida como um complexo cultural coeso e estudado sistematicamente desde os trabalhos pioneiros de João Alfredo Rohr na década de 1940”, informa Yu Tao, baseado na tese de doutorado em História-Arqueologia de Fabiana Comerlato (PUC/RS). (*)

“Existe uma boa diversidade de registros gráficos como as ampulhetas, designadas pelos guaranis como Kuaray Amã, e motivos geométricos interligados, que sugerem sistemas de representação simbólica complexos”, diz ele.

Tudo indica que a própria expressão Kuaray Amã envolva conhecimentos complexos e secretos/sagrados.

(*) As representações rupestres do litoral central de S. Catarina, 2005.

Não conseguiu traduzir     

O vocabulário guarani é fundamental na compreensão de qualquer conteúdo e por isso se sabe que, ao realizar uma pesquisa junto à tribo, a primeira providência é obter a tradução de cada nome ou palavra dita pelos informantes indígenas. Um único vocábulo pode conter uma enormidade de informações concentradas.   

Yu Tao tentou isto. Mas não conseguiu traduzir com absoluta certeza a expressão citada por seus amigos/professores guaranis. “Kuaray Amã não é amplamente documentada em fontes acadêmicas ou registros linguísticos guaranis disponíveis publicamente”, verificou ele.

“No entanto ao analisar seus componentes podemos ter seu significado potencial. Kuaray significa Sol e Amã, embora não esteja registrado nos dicionários, pode estar relacionado a caminho, trajeto ou movimento.”

Ou seja, conforme Yu Tao, a tradução aproximada seria: “Caminho do Sol” ou “Trajeto do Sol” referindo-se ao movimento aparente do astro solar no céu ao longo do dia.

Foi assim que o estudioso chinês entendeu que o desenho da Ampulheta, do qual ninguém sabia o significado, estava ligado à astronomia. Era a representação, gravada na pedra, de movimentos aparentes do Sol no céu.

Linguagem confidencial dos pajés

Para melhor subsidiar a reportagem eu, Rosana, tentei igualmente obter o significado da expressão e confirmar a conclusão do pesquisador chinês.

O resultado atestou a mesma dificuldade encontrada por Yu Tao.

A “barreira” em obter a tradução parece conduzir a algo que poucas pessoas já ouviram falar: a existência de um idioma secreto dos pajés guaranis, o Ayvu Porã (Divinas Palavras ou Belas Palavras).

É uma língua tão antiga e sagrada, dizem os velhos sábios das aldeias, que hoje em dia nem os próprios guaranis comuns a conhecem. Apenas uns poucos líderes espirituais, pajés/xamãs experientes.

Confirmando a visão do padre

As pesquisas que levaram Yu Tao a concluir que SC é caso único mundial acabaram confirmando uma suposição do padre João Alfredo Rohr, o catarinense que foi um dos primeiros arqueólogos do Brasil.

Atuante desde os anos 1940, o padre participou das agitadas polêmicas acerca das obras rupestres de SC e incluía a Tradição guarani-tupi como uma das prováveis autoras dos desenhos nas rochas do litoral do estado.

Ele divulgou a hipótese em 1969, publicando-a em 1984, nos Anais do Museu de Antropologia da UFSC, no artigo Sítios Arqueológicos de S. Catarina.

Em 2004 a arqueóloga e geógrafa Teresa Fossari, da UFSC, escreveu: “Rohr (1969) atribui a grupos Guarani a possível autoria das sinalizações rupestres da zona costeira catarinense.”

A “briga” continua

A polêmica sobre a autoria da arte rupestre catarinense (dividida entre 3 hipóteses: povo dos sambaquis, povo jê e povo guarani-tupi) prossegue acesa nos dias atuais pois ainda é difícil obter datações exatas de tal acervo, mesmo com a melhora nas técnicas utilizadas.

Sem dúvida, porém, o fato de os guaranis (e sua “memória prodigiosa” de séculos e milênios conforme dizia o antropólogo suíço Alfred Métraux) assumirem ter conhecimento dos significados dos grafismos e terem nomes específicos para eles representa um grande passo na solução das dúvidas que cercam o assunto.

Conhecimento sofisticado dos índios

“Essas gravuras sugerem um conhecimento sofisticado da astronomia por parte desses povos, que utilizavam tais observações para marcar o tempo e orientar atividades sazonais”, enaltece Yu Tao, referindo-se aos guaranis.

Porém Fabiana Comerlato, em seu doutorado, considerou “vulnerável” a hipótese de Rohr (e também do historiador austríaco-argentino Osvaldo Menghin) de apontar autoria guarani devido à grande semelhança entre os grafismos das cerâmicas desta etnia e os das pedras.

A presença majoritária do deus Sol

Embora Comerlato questione a autoria guarani, ela mostra que grande parte dos desenhos rupestres catarinenses é relacionada direta ou indiretamente com a “Ampulheta” e seus derivados, que denominou de Grupo J.

Conforme Yu Tao isso aponta para a presença forte do deus solar, Kuaray, que é visível tanto no Grupo J quanto no Grupo B, muito numeroso, que é o das Circunferências (uma óbvia referência solar).

Como Comerlato definiu as obras rupestres como um conjunto dotado de unidade espaço-temporal, onde as convergências se destacaram em comparação com as poucas diferenças (explicadas como contatos com outros sistemas simbólicos), é possível deduzir que o Sol foi o grande inspirador.

Foi o grande mentor dos antigos artistas indígenas catarinenses que, segundo ressaltou Fabiana Comerlato, realizaram “os únicos sítios de gravura conhecidos na costa do Brasil (até 2005, época do seu doutorado)”. 

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