O AND realizou uma entrevista com o Marino D’Icarahy, integrante da banca de defesa de Luzivaldo e membro da Associação Brasileira de Advogados do Povo Gabriel Pimenta (Abrapo) sobre o caso de Luzivaldo. Na entrevista – que publicamos na íntegra –, o advogado dá detalhes do processo, da condenação do preso político do triângulo mineiro e também das próximas etapas da luta pela sua liberdade.
“A autoria precisa ser provada”, frisou Marino, que destaca também que não houve embasamento por nenhuma testemunha para a acusação que pesa contra Luzivaldo de homicídio duplamente qualificado.
Sobre o julgamento em si, o advogado afirmou que “o ápice da parcialidade” foi o momento em que o promotor utilizou a expressão “indústria do esbulho” para se referir à justa luta dos camponeses por terra e incitou todos os presentes no júri (proprietários de terra da região) a “defender os direitos humanos”, referindo-se ao direito à propriedade privada.
Esbulho possessório é o crime que defensores do latifúndio usualmente atribuem às famílias de camponeses pobres que, fazendo valer o próprio direito previsto na Constituição do “uso social da terra”, distribuem terras para nelas viver e trabalhar. Nestes processos políticos, busca-se taxar de “criminosas” as famílias que, há décadas, buscam uma maneira de viver dignamente. Porém, por todo o país, a luta pela terra tem enfrentado (e derrotado) a perseguição política através de campanhas de denúncias e de solidariedade.
O caso de Luzivaldo tem sido exaustivamente denunciado por todo o país como mais um caso de criminalização da luta pela terra. A entrevista pode ser lida na íntegra abaixo.
A Nova Democracia (AND): Boa tarde, Marino. Antes de mais nada, agradecemos pela entrevista. Vamos começar pelo início, a fim de contextualizar nossos leitores. Quem é Luzivaldo?
Dr. Marino D’Icarahy (MD): O Luzivaldo é um camponês que é o coordenador do acampamento Boa Vista, localizado em Campina Verde, Minas Gerais, no triângulo mineiro, uma região completamente dominada pelo latifúndio. O que você mais vê, desde a visão aérea como em terra, é o domínio absoluto do latifúndio na região, tanto no que diz respeito à ocupação das terras, a exploração delas pelas monoculturas extensivas, como pelo próprio perfil da população e pelo modo de vida. É uma área bem rica e que essas terras, objeto do assentamento, foram ocupadas pelos camponeses a partir de 2010, mais precisamente a partir de 2014, quando eles consolidaram a ocupação inicial. E lá estão até hoje, como assentamento, já tendo feito o Corte Popular, há nove anos. São terras bastante agricultáveis e que esses camponeses já mantêm desde há muito tempo suas produções. Inicialmente, na época do acampamento, de forma coletiva, e agora também cada um no seu lote, individualmente. Todos cooperam entre si e se tenta, ali, fazer manter um espírito de manter a terra para quem nela vive e trabalha.
AND: Então a perseguição à Luzivaldo debilita também a luta dos camponeses por terra?
MD: Há uma tendência muito grande no local à especulação com a terra e então o Luzivaldo, exercendo a coordenação e a liderança dele nesse acampamento acabava por contrariar não somente os latifundiários, como também pessoas que queria usufruir da terra de forma diversa do objetivo daqueles camponeses que constituiram aquela ocupação e fizeram o Corte Popular. É por isso que o Luzivaldo é perseguido.
AND: O que é o caso Luzivaldo? Do que ele é acusado? Quais os problemas do processo?
O Luzivaldo está sendo acusado de cometer um crime de homicídio duplamente qualificado por usar de recursos que dificultaram, em tese, a reação da vítima e pela natureza do ataque, bem cruel. Essa vítima levou quatro facadas e um tiro. Uma facada no peito, outra na clavícula e duas na lombar pelas costas e um tiro que atravessou quase verticalmente pela mandíbula e sendo alojado na caixa craniana. Ele também está sendo acusado, além do homicídio, por um crime chamado “coação no curso do processo”, porque ele teria, segundo a versão de dois policiais civis, ameaçado um deles, logo no início do processo, quando ele percebeu que ele estava sendo envolvido como autor do homicídio.
Esse processo, a que ele responde, é um processo claramente fabricado a partir de uma trama cartorária, policialesca, onde ficticiamente haveria um conjunto de testemunhas a apontar o Luzivaldo e o irmão dele, Robélio, como possíveis autores do crime, efetivamente sem base nenhuma.
AND: Mas qual é o embasamento para a acusação contra Luzivaldo?
Primeiramente, foi um crime cometido sem testemunhas do fato. A própria polícia reconhece isso ao fazer a primeira verificação no local. Em segundo lugar, espalharam boatos para duas motivações [do crime].
A primeira motivação é de que o Luzivaldo teria matado a vítima por conta de um assédio sexual sofrido por uma das filhas dele por ação da vítima ao dar uma volta de cavalo com ela. É absolutamente mentira porque esse episódio [a volta no cavalo] se deu à vista do Luzivaldo contornando um trator que está parado lá no terreno onde ele morava, uma voltinha que não dura nem quatro minutos, três minutos, e quem andou no cavalo, como ficou provado, foram os filhinhos dele menores, na época de cinco e três anos. O filho menorzinho o Luzivaldo nem deixou andar direito, porque era muito pequenininho. A outra ele deixou porque ela já até sabia montar direitinho e, puxada pela rédea, foi direitinho. Esse motivo não existia e ficou provado lá testimonialmente.
O segundo motivo seria porque ele queria comprar o lote da vítima, que a vítima mantinha lá no assentamento, mas se negava a vender o lote para o Luzivaldo. O que ficou mostrado, também, que é uma absoluta mentira. Algumas pessoas depuseram atestando que a vítima não tinha lote no assentamento, que ele chegou a participar do acampamento, na época que ainda estava em barraco de lona. Depois, no início do assentamento, no Corte Popular, ele já não estava no assentamento, mas, por conta de sua atuação anterior, reservaram um lote para ele, que ele não chegou a ocupar nunca. Isso foi confirmado pela própria irmã da vítima que, depondo em uma audiência anterior (essa de agora ela não pode ir, porque morreu), afirmou claramente que o irmão dela não tinha lote lá. Era ela quem tinha um lote lá. Outros parentes dela também tinham um lote lá. Mas ele não tinha, porque ele jamais assumiu. Esse lote, por decisão da assembleia geral, foi destinado a outras pessoas que estavam efetivamente interessadas em usar a terra para viver e trabalhar. Porque assim é que tudo é resolvido dentro do assentamento, por meio de assembleias gerais.
De forma que ambos os motivos não se justificavam. E ainda que se justificassem, como verdade, segundo a melhor jurisprudência dos Tribunais Superiores, motivos não são suficientes para incriminar alguém no que diz respeito à autoria de um crime. É preciso efetivamente que a autoria seja provada. A motivação vai, na verdade, influir nas qualificadoras do crime. Então, por exemplo, a segunda qualificadora, era não permitir a reação da vítima. Mas a primeira qualificadora era justamente o motivo fútil. Então não havia motivação, não era para ser qualificado o crime. Por isso que eu digo, embora não haja motivos, ainda que eles houvessem não é suficiente. É preciso provar a autoria, já que a materialidade é indiscutível, estava lá o corpo, periciado, enfim. E a autoria não foi provada. Como a própria polícia confirmou desde o início, não havia testemunhas do fato. Todas as testemunhas que foram ficticiamente inventadas pela polícia não foram identificadas. Não foram, ainda que preservadas suas identidades, levadas à delegacia ou a juízo para serem identificadas, e depois preservadas as identidades, para que fossem válidas as palavras dele para incriminar alguém.
AND: Sem testemunhas identificadas, o que ficou valendo para a acusação contra Luzivaldo?
Então, na verdade, ficou como as palavras dos policiais que disseram que pessoas falaram, pessoas vieram, pessoas telefonaram, que eles foram a campo, ninguém quis se identificar porque “tinham medo do Luzivaldo”. Mas é assim que se incrimina alguém? Por testemunhas, como nós dizemos, de “ouvi dizer”, testemunhas que reproduzem mentiras, boatos, fofocas! Isso é absolutamente inadmissível, sob pena de nós admitirmos que seria válido espalhar mentiras sobre alguém para incriminar esse alguém. Seria muito fácil nós atacarmos nossos inimigos dessa forma. Mas foi isso que aconteceu.
Luzivaldo acabou condenado a quinze anos de prisão por uma suposta ameaça chamada “coação no curso do processo”, que ele teria coagido as testemunhas, que seriam os policiais. Testemunhas de quê? De nada! Testemunhas de que alguém falou, e ele identificou essa pessoa, que não foi à polícia, não foi a juízo depor, que isso?! A palavra do policial, que faz existir uma suposta testemunha que não se materializa nem no inquérito e nem no processo? Isso ficou valendo!
Então o processo, quando nós dizemos que ele é uma farsa, uma montagem policialesca, é exatamente isso. Quando nós dizemos que o processo é kafkiano, é porque ele é assim, porque Luzivaldo é vítima do próprio processo, montado adredemente para possibilitar a consecução dessa perseguição política.
AND: Frente a toda essa situação de vícios processuais, o que fez a Abrapo para garantir os direitos jurídicos de Luzivaldo?
Ele é um perseguido político, um preso político, justamente por manter uma posição política importante no campo dos camponeses que ali se estabeleceram e, por outro, porque dessa forma ele contraria os interesses dominantes na região que são os interesses do latifúndio. E isso faz dele sim um preso político. O peso do latifúndio em Campina Verde é gigantesco, porque eles [os latifundiários] influenciam todas as instituições: o poder judiciário, o ministério público, as duas polícias [civil e militar], o poder político local. Não foi à toa que a defesa propôs com muito vigor, mas não conseguiu a tempo, o desaforamento do processo. Ou seja, retirar o julgamento do processo da cidade de Campina Verde, e mais, do Triângulo Mineiro. E não adianta levar para nenhum outro interesse do interior de Minas Gerais, onde os mesmos interesses prevalecem.
Então o requerimento da defesa era no sentido do julgamento do Luzivaldo ser levado para a capital, onde, embora a defesa não tenha ilusões com o caráter de classe do poder judiciário no que tange ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, principalmente com relação a esse caso, que já travamos com eles vários recursos na tentativa de libertar Luzivaldo e já os conhecemos, mas é o máximo que nós poderíamos imaginar de distanciamento para buscar um julgamento imparcial para Luzivaldo. Coisa que não houve.
O julgamento foi parcial, e o ápice dessa parcialidade foi quando, atacada a acusação pela defesa, exatamente por conta de todo esse contexto de perseguição política e farsa policialesca, o promotor responde, em altos brados, em réplica, apelando aos jurados, nominalmente, um a um, na qualidade de proprietários rurais, para votarem contra a “indústria do esbulho”, para lutarem a favor dos “direitos humanos” no que diz respeito à propriedade privada. Os jurados, comprometidos com esses interesses, de forma parcial, condenaram o Luzivaldo, atendendo a esse apelo expresso da promotoria, o que será objeto de recursos por parte da defesa, porque está aí de forma escancarada a parcialidade desse júri, inclusive a dar razão aos expedientes, aos remédios jurídicos que a defesa utilizou para buscar o desaforamento, exatamente por suspeitar da imparcialidade do júri ser realizado em Campina Verde.
AND: Certo. Então há um processo com motivações inexistentes, e mesmo se existentes, insuficientes, sem provas e com testemunhas fictícias. Isso se arrasta desde 2019, ano em que ocorreu a prisão de Luzivaldo. Dado todo esse cenário de um processo insustentável, como isso se deu desde 2019? Como ocorreu o decorrer do processo? Qual a cronologia dos fatos?
MD: O Luzivaldo está preso há praticamente quatro anos. Desde então, nós já tentamos vários habeas corpus para soltá-lo, até mesmo por motivos de saúde também. E cabe destacar que ele é preso não pelo homicídio. Para prendê-lo, como eles não tinham uma prova mais direta, era preciso uma motivação própria para justificar sua prisão. Foi onde inventaram a “coação no curso do processo”. O que nós chamamos vulgarmente de “ameaça à testemunha”. No caso, o policial. Testemunha. Imagina! Então inventa-se isso e por isso o Luzivaldo respondeu ao júri preso e por isso permanece preso durante o recurso. Essa é a regra. O réu que é julgado estando preso, recorre preso. Se solto, recorre solto, em liberdade. A não ser que ele seja condenado a uma pena que concretamente já esteja cumprida ou prescrita. Mas a regra geral é que indo a julgamento preso, permanece preso. Então a esse propósito Luzivaldo já tem praticamente quatro anos dessa pena cumprida. Embora o regime inicial dele seja regime fechado, ele terá direito à progressão do regime e, na sequência dessa progressão, à liberdade condicional.
Ao decorrer desses anos, nós já tivemos pelo menos três habeas corpus negados, seja pela motivação do excesso de prazo, seja quando nós alegamos também não existirem os pressupostos da prisão preventiva, ou mesmo requerendo sua prisão domiciliar por motivo de saúde, já que ele tem problemas de crises sérias de vesícula, já tendo inclusive passado um natal, dois anos atrás, internado. Precisou passar quatro dias internado para melhorar da crise. Está com indicação de cirurgia desde então, a fila do SUS não anda, e ele vem sofrendo toda essa dificuldade quando precisaria estar em casa para ter a alimentação adequada, o repouso, a qualidade da água adequada, enfim.
AND: Ao longo desses quatro anos, teve alguma violação de direitos, falta de garantias?
MD: Total violação! Imagina. Se ele fosse de outra classe, com certeza ele já tava colocado em prisão domiciliar, como a gente assiste aí pelas redes de comunicação o tempo todo. É um direito do preso, que se encontra nessa condição, e lá na cadeia não são oferecidas condições mínimas para ele enfrentar esse quadro de saúde com esperanças. A gente vive com medo de ele morrer. Até porque uma crise de vesícula, quando supura, por exemplo, uma vesícula, é quase que morte certa. Aquela bile produzida pela vesícula vai diretamente para o sangue, para os rins e mata o paciente. Então essa é nossa preocupação, foi sempre isso que a gente alertou. Na própria internação que o sistema presidiário fez com ele os médicos atestaram a necessidade da cirurgia e ele não tem o direito que deveria ter de estar há muito tempo em prisão domiciliar e responder o processo nessa condição, pelo menos, de forma a permitir o seu devido tratamento enquanto ele não consegue a cirurgia. Comendo aquela comida podre na cadeia, ele toda hora corre o risco de ter uma crise. É uma violação muito séria. Ele também toma remédios controlados, tem síndrome do pânico, tudo diagnosticado, e está concorrendo para esse quadro de violações de direitos.
AND: Você mencionou a possibilidade de liberdade condicional daqui a um ano, um ano e meio. Algo que é interessante sabermos também é: daqui para frente, quais os próximos passos?
MD: Nós já apelamos. No ato, lá [em Campina Verde, no triângulo mineiro], imediatamente após a divulgação do resultado do conselho de sentença, nós apelamos e protestamos para que nossas razões recursais sejam juntadas somente quando o processo chegar no Tribunal de Justiça lá de Belo Horizonte. Além disso, nós já decidimos também entrar com um outro habeas corpus a demonstrar de forma escancarada a parcialidade do júri da forma que foi realizado, na tentativa de anular esse júri e fazer valer nosso pedido de desaforamento, que também foi feito a partir de um habeas corpus e ainda está em curso no tribunal.
Então estamos aí com essas duas linhas de defesa. O fato é que a Abrapo, que foi responsável pela defesa do Luzivaldo, contou com uma banca de sete advogados (dois de Goiânia, dois de Belo Horizonte e três aqui do Rio de Janeiro) que atuaram de forma coesa e unitária, a ponto de fazer dessa defesa uma robusta defesa. Na medida em que a Abrapo tem como lema a defesa dos direitos do povo lutar pelos seus direitos, isso foi cumprido à risca, como bem o dever de denunciar a qualidade inferior desse lixo de processo que condenou o Luzivaldo. E também de desmascarar a farsa, falar por cima da cabeça do juíz, para as massas que estavam lá presentes entenderem e ficarem cientes daquela farsa-espetáculo que foi o júri do Luzivaldo em Campina Verde. E a massa entendeu! A massa entendeu e, embora todos tenham ficado muito tristes, assim como os advogados, essa tristeza (e não essa decepção, porque não esperamos muita coisa do judiciário), esse acontecimento, aumentou nossa revolta e disposição em lutar pela liberdade do Luzivaldo.
AND: Você acha que a linha da Abrapo influenciou no decorrer do processo e do júri popular?
MD: Certamente. A justeza da linha de defesa da Abrapo foi essa linha de defesa altiva e combativa que foi capaz de mexer com os brios, diríamos, na gíria, “botar uma pilha” no promotor e ele responder da forma que respondeu, entregando o caráter de classe daquele corpo de jurados e da sua própria atuação. Esse foi um detalhe que ficou marcante, ficou claro para todo mundo, os comentários tanto da banca quanto das pessoas que assistiram o júri era exatamente esse: ficou tudo às claras, que aquele júri era uma farsa e absolutamente parcial. Isso foi resultado direto da atuação da linha da Abrapo, que batendo firme na acusação e no promotor, teve, dele, uma resposta inflamada que acabou por entregar todo esse caráter que é denunciado pela defesa.
AND: Sobre os camponeses que estavam lá presentes. O senhor mencionou que o Luzivaldo era um importante dirigente camponês da região e certamente contava com muita admiração e apreço por parte daqueles camponeses. Como que essa condenação foi recebida por esses camponeses, companheiros do Luzivaldo? Como foi o clima naquele momento?
MD: De luta! Foi puxada uma palavra de ordem: Luzivaldo é inocente! Lutar não é crime!, e lá fora houve, durante o dia, uma vigília com faixas e representantes de várias organizações de luta dentro da luta pela terra. Tinham companheiros da Frente Nacional de Luta, do MST, da Liga dos Camponeses Pobres, da Liga Operária, assentados do assentamento Boa Vista, enfim, era uma delegação bastante representativa. Muitos deles puderam depois compor a lotação do júri e assistir ao júri como assistiram. Então houve um forte apoio, bastante vigoroso, e apesar da tristeza, todos no final reafirmaram sua vontade de lutar contra toda essa injustiça.