Poema: “A menina do Rio”, por V. B. Junho

Poema: “A menina do Rio”, por V. B. Junho

Eu me chamo Ágatha

Voltava para casa

Uma bala perdida me pegou

Tinha oito anos e estava

Na madrugada da vida

Não mais irei

Ao balé, à aula de inglês

Me alijaram da alegria de viver

Da alegria que agasalha

Alimenta e aquece

Virei estatística

Meu avô gritou no rádio seu desespero 

Ninguém secou as lágrimas

De minha mãe, de minha avó

Não sou mais carioca

Nem moro no Alemão

Virei estatística

As amigas estão sem meus abraços

No quarto a mochila, o dever de casa

Me aguardam em vão

Como as outras cinco crianças

Sou apenas um número

Amanhã seremos mil

As portas da escola irão se abrir

E não estaremos lá

Viramos estatística

Os sinos não tocam por nós

Gritamos por socorro

Não nos ouvem, não nos protegem

Por nós decisões não são tomadas

Nem leis implementadas

Na tragédia brasileira a justiça

A proteção, a responsabilidade

São palavras vazias

Nós crianças proletárias não cabemos

Na engrenagem do país, da cidade

Só temos como armas

Nossos manuais, lápis

Um ou outro sonho

Nos acolhem os corredores dos colégios

Os olhares assustados dos mestres

Somos estatística

Estamos à mercê do sistema que oprime

Da cobiça, da exploração

Na janela de nossas vidas

Não se insinua o futuro

Decretaram nosso fim

Nós que nem começo tivemos 

Viramos estatística


Te saúdam Ágatha

As crianças dos desertos

Das florestas em chamas

Das favelas e palafitas

Dos mangues e guetos

Também aquelas por quem

Um muro será construído

Te saúdam os que vão morrer

Por sua crença e ideologia

Os que nada têm a perder

A não ser seu sofrimento

Te saúdam os que plantam

Os que colhem os que fabricam

Te saúdam os que sobrevivem

Te saúdam os que na calada

Preparam o porvir

Os que têm o olhar nas estrelas

De prontidão às armas

Te saúdam os que partilharão

O sol legítimo e intangível

V. B. Junho

Rio, 24/10/2019

Foto: Voz das Comunidades

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