Série Poesia Progressista da Turquia
Nâzim Hikmet (1902-1963) foi um poeta comunista turco. Um dos poetas mais reverenciados de seu país, foi preso por 12 anos e exilado da Turquia por sua filiação comunista. Tradução adaptada do inglês.
No jardim da Casa de Detenção de Istambul
num inverno ensolarado após a chuva
enquanto nuvens, ladrilhas vermelhas, paredes e meu rosto
tremulavam nas poças d’água do chão,
Eu – com tudo o que tinha de mais bravo e malvado em mim,
do mais forte e do mais fraco –
pensei sobre o mundo, sobre meu país e em você.
1
Meu amor,
eles estão em marcha:
cabeças à frente, olhos esbugalhados,
a cintilação vermelha das cidades em chamas,
colheitas pisoteadas
pegadas
sem fim.
E pessoas abatidas:
como árvores e bezerros,
somente que mais fácil
e mais rápido.
Meu amor,
em meio a essas pegadas e a esse abate
por vezes perdi minha liberdade, meu pão e você,
mas nunca a minha fé nos dias que virão
emergindo da escuridão, dos gritos e da fome,
batendo em nossa porta com as mãos cheias de sol.
2
Estou maravilhosamente alegre de ter vindo ao mundo:
eu amo sua terra, sua luz, sua luta, seu pão.
Ainda que eu saiba as suas dimensões do polo ao polo
ao centímetro,
e mesmo não ignorando o fato de que seja um mero brinquedo perto do sol,
o mundo para mim é inacreditavelmente grande.
Eu gostaria de ter rodado o mundo,
e ter visto os peixes, frutas e estrelas que não vi.
Todavia,
Viajei pela Europa somente através de livros e figuras.
Em toda minha vida nunca recebi uma única carta
com sua estampa azul cancelada na Ásia.
Eu e o vendedor da esquina,
ambos somos gigantescamente desconhecidos na América.
Mesmo assim,
da China à Espanha, do Cabo da Boa Esperança ao Alaska,
em cada milha náutica, em cada quilômetro, eu tenho amigos
e inimigos.
Amigos estes que nunca nos conhecemos
e no entanto podemos morrer pelo mesmo pão, pela mesma liberdade, pelo mesmo sonho.
E inimigos estes que têm sede de meu sangue –
E eu tenho sede do deles.
Minha força
é não estar sozinho nesse mundo enorme.
O mundo e seu povo não são segredos para meu coração,
não são mistérios para minha ciência.
Calmamente e abertamente
eu tomei meu lugar
na grande luta.
E sem ela,
você e a terra
não bastam para mim.
E ainda assim você é surpreendentemente linda,
e a terra é calorosa e linda.
3
Eu amo meu país:
Eu passeei por seus plátanos,
eu dormi em suas prisões.
Nada ergue meus espíritos como suas canções e seu tabaco.
Meu país:
Bedreddin¹, Sinan², Yunus Emré³ e Sarakya⁴,
cúpulas de chumbo e chaminés fabris –
é tudo trabalho de meu povo, cujos bigodes pendentes
escondem seus sorrisos
mesmo deles próprios.
Meu país:
tão grande
que parece infinito.
Edirne, Izmir, Ulukishla, Marash, Trabzon, Erzurum⁵.
Tudo o que sei do planalto do Erzurum são suas canções,
e tenho vergonha de dizer
que nunca cruzei os Montes Tauro
para visitar os catadores de algodão
no sul.
Meu país:
camelos, trens, Fords, e burros doentes,
álamos,
salgueiros
e terra vermelha.
Meu país:
bodes na planície do Ankara,
o esplendor de seus longos cabelos loiros e sedosos.
As suculentas avelãs gordas do Giresun.
As maçãs da Amásia, com fragrantes bochechas vermelhas
figos,
melões,
e um punhado de uvas
de todas as cores,
então os arados,
e os bois pretos,
e então meu povo,
preparado para abraçar
com a alegria dos olhos arregalados de uma criança
tudo que é moderno, belo e bom –
meu povo honesto, trabalhador, bravio
meio cheio, meio faminto
meio escravo…
Notas:
1 – Sheikh Bedreddin: revolucionário que liderou uma insurreição contra a opressão do Sultão Mehmed em 1416.
2 – Mimar Sinan: importante arquiteto dos sultões do Império Otomano no séc. XV.
3 – Yunus Emré: poeta popular da tradição sufita do séc. XII.
4 – Sarakya: rio que deságua no mar negro.
5 – Cidades turcas.
Ainda que a reprodução de suas obras tenha sido proibida na Turquia até 1968, ainda hoje, os poemas de Hikmet são um ponto de identificação entre as forças democráticas e revolucionárias da Turquia, interpretados em diversas canções populares.