Poema: “Casa de Detenção de Istambul” (1939), de Nâzim Hikmet

Poema: “Casa de Detenção de Istambul” (1939), de Nâzim Hikmet


Série Poesia Progressista da Turquia


 

Nâzim Hikmet (1902-1963) foi um poeta comunista turco. Um dos poetas mais reverenciados de seu país, foi preso por 12 anos e exilado da Turquia por sua filiação comunista. Tradução adaptada do inglês.

 

No jardim da Casa de Detenção de Istambul

num inverno ensolarado após a chuva

enquanto nuvens, ladrilhas vermelhas, paredes e meu rosto

                            tremulavam nas poças d’água do chão,

Eu – com tudo o que tinha de mais bravo e malvado em mim,

do mais forte e do mais fraco –

pensei sobre o mundo, sobre meu país e em você.

 

1

 

Meu amor,

eles estão em marcha:

cabeças à frente, olhos esbugalhados,

a cintilação vermelha das cidades em chamas,

                            colheitas pisoteadas

                            pegadas

                                          sem fim.

E pessoas abatidas:

                            como árvores e bezerros,

                            somente que mais fácil

                                         e mais rápido.

 

Meu amor,

em meio a essas pegadas e a esse abate

por vezes perdi minha liberdade, meu pão e você,

mas nunca a minha fé nos dias que virão

emergindo da escuridão, dos gritos e da fome,

batendo em nossa porta com as mãos cheias de sol.

 

2

 

Estou maravilhosamente alegre de ter vindo ao mundo:

eu amo sua terra, sua luz, sua luta, seu pão.

Ainda que eu saiba as suas dimensões do polo ao polo

                                          ao centímetro,

e mesmo não ignorando o fato de que seja um mero brinquedo perto do sol,

o mundo para mim é inacreditavelmente grande.

Eu gostaria de ter rodado o mundo,

e ter visto os peixes, frutas e estrelas que não vi.

Todavia,

Viajei pela Europa somente através de livros e figuras.

Em toda minha vida nunca recebi uma única carta

                            com sua estampa azul cancelada na Ásia.

Eu e o vendedor da esquina,

ambos somos gigantescamente desconhecidos na América.

Mesmo assim,

da China à Espanha, do Cabo da Boa Esperança ao Alaska,

em cada milha náutica, em cada quilômetro, eu tenho amigos

                                                                      e inimigos.

Amigos estes que nunca nos conhecemos

e no entanto podemos morrer pelo mesmo pão, pela mesma liberdade, pelo mesmo sonho.

E inimigos estes que têm sede de meu sangue – 

                                                        E eu tenho sede do deles.

Minha força

é não estar sozinho nesse mundo enorme.

O mundo e seu povo não são segredos para meu coração,

                                          não são mistérios para minha ciência.

Calmamente e abertamente

                            eu tomei meu lugar

                                                        na grande luta.

E sem ela,

                            você e a terra

                            não bastam para mim.

E ainda assim você é surpreendentemente linda,

                            e a terra é calorosa e linda.

 

3

 

Eu amo meu país:

Eu passeei por seus plátanos,

eu dormi em suas prisões.

Nada ergue meus espíritos como suas canções e seu tabaco.

 

Meu país:

Bedreddin¹, Sinan², Yunus Emré³ e Sarakya⁴,

cúpulas de chumbo e chaminés fabris –

é tudo trabalho de meu povo, cujos bigodes pendentes

escondem seus sorrisos

mesmo deles próprios.

 

Meu país:

tão grande

que parece infinito.

Edirne, Izmir, Ulukishla, Marash, Trabzon, Erzurum⁵.

Tudo o que sei do planalto do Erzurum são suas canções,

e tenho vergonha de dizer

que nunca cruzei os Montes Tauro

para visitar os catadores de algodão

                                          no sul.

 

Meu país:

camelos, trens, Fords, e burros doentes,

álamos,

              salgueiros

                             e terra vermelha.

 

Meu país:

bodes na planície do Ankara,

o esplendor de seus longos cabelos loiros e sedosos.

As suculentas avelãs gordas do Giresun.

As maçãs da Amásia, com fragrantes bochechas vermelhas

              figos,

                            melões,

e um punhado de uvas

                                                        de todas as cores,

então os arados,

e os bois pretos,

e então meu povo,

              preparado para abraçar

                            com a alegria dos olhos arregalados de uma criança

tudo que é moderno, belo e bom – 

meu povo honesto, trabalhador, bravio

              meio cheio, meio faminto

                                          meio escravo…

Notas:

1 – Sheikh Bedreddin: revolucionário que liderou uma insurreição contra a opressão do Sultão Mehmed em 1416.

2 – Mimar Sinan: importante arquiteto dos sultões do Império Otomano no séc. XV.

3 – Yunus Emré: poeta popular da tradição sufita do séc. XII.

4 – Sarakya: rio que deságua no mar negro.

5 – Cidades turcas.

 

Ainda que a reprodução de suas obras tenha sido proibida na Turquia até 1968, ainda hoje, os poemas de Hikmet são um ponto de identificação entre as forças democráticas e revolucionárias da Turquia, interpretados em diversas canções populares.

 

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