Essa semana, dois ministérios de grande importância política e orçamentária deram declarações de peso sobre a guerra no Oriente Médio, ambas orientadas por bovina obediência aos interesses do lobby sionista no Brasil.
A primeira foi do Ministério das Relações Exteriores (MRE), coordenado por Mauro Vieira: em nota sobre o 7 de outubro, o Itamaraty chamou de terroristas os integrantes da Resistência Nacional Palestina. A segunda foi além. Não poderia ter vindo de outra pessoa que não o militar à paisana, José Múcio, da Defesa. Em evento oficial, Múcio reclamou de “questões ideológicas” que estariam impedindo o avanço das negociações de compras de armas israelenses para o Exército Brasileiro.
Imediatamente após as declarações, muitas vozes da esquerda, ou daqueles que se dizem como tal, se levantaram em protesto. Uma dúvida, porém, paira no ar: as declarações contrariam, de fato, Luiz Inácio? Ou apenas mostram qual é a posição real, objetiva, do atual governo sobre a questão Palestina? Precisamos questionar: o que Lula diz condiz com o que ele faz (ou permite que aconteça) em seu governo? A posição dos ministérios de fato contraria o projeto de governo de Lula ou contraria apenas algumas das declarações do presidente?
No caso do MRE, a posição defendida por Vieira não se diferenciou muito daquela colocada por Luiz Inácio em outras questões. Do dia 7 de outubro à última Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, o presidente brasileiro nunca se isentou de classificar os atos da Resistência Nacional Palestina como “ações terroristas”, ou os grupos imediatamente envolvidos como “fanáticos”. A única diferença é que, entre essas classificações, Lula mescla algumas palavras ácidas contra o regime sionista de Netanyahu.
No caso de Múcio, pode-se levantar a hipótese que ele contrariou de forma mais direta Luiz Inácio. Mas aqui, novamente, algumas questões: primeiro, Múcio contrariou de forma insolente Lula ou aproveitou a liberdade dada ao lobby sionista no País, em que até hoje mantém relações com Israel, para colocar suas posições com a certeza de que não seria punido? Segundo, caso a questão fosse de uma contradição grave entre as posições do presidente e de seu ministro, por que não houve retaliação à insolência de Múcio? Se a questão fosse de uma contradição grave entre as posições, tal afronta pública à posição oficial de um presidente, seja ela verdadeira ou não, é inaceitável dentro de qualquer governo. A incapacidade de Lula para controlar pastas básicas para a manutenção de um governo, como Defesa e Relações Exteriores, demonstra a notória fragilidade de seu mandato.
Neste texto, demonstrarei como a pusilanimidade do governo brasileiro na questão palestina nos ajuda a entender quais interesses não podem ser representados dentro do governo burguês – seja ele dito de “esquerda” ou de direita. Afinal, enquanto os representantes dos interesses do imperialismo estadunidense ou das classes dominantes brasileiras podem expor sem consequências seu programa reacionário no seio de um governo dito progressista, os apoiadores e aliados de boa fé desse mesmo governo são perseguidos impiedosamente.
‘Questões ideológicas’: a submissão da Defesa aos interesses de Israel e EUA
Comecemos pela Defesa. Múcio deu infelizes declarações a respeito da licitação do exército brasileiro que busca adquirir 36 obuseiros do apartheid israelense. A licitação mencionada, que envolveria o pagamento de cerca de um bilhão de reais ao ente genocida israelense, está suspensa desde maio graças à mobilização da sociedade civil.
O ministro demonstrou seu profundo desagrado com a decisão do governo, ao declarar que esta seria contra “o povo judeu (sic), o povo de israel”. Declarou ainda que as Forças Armadas estão “isoladas”, sem ter com quem dialogar à “esquerda”, por acharem que os militares tentaram dar um golpe, e à “direita”, por eles não terem dado o golpe. Na opinião do Alto Comando, do qual Múcio é mero menino de recados, deveríamos agradecer às Forças Armadas pelo fracasso do golpe bolsonarista. Ora, deveríamos agradecer um ladrão por não ter conseguido nos assaltar?
Ele parece se esquecer, ainda, que o Alto Comando das Forças Armadas não deixou de dar um golpe por uma convicção própria, e sim porque foi sancionado pelo Departamento de Estado do Estados Unidos (EUA), que não via no golpe militar aberto no Brasil a melhor solução para manter o sistema de dominação.
A defesa de políticas coloniais em prol do lucro da burguesia e latifúndio não para por aí. Depois de defender abertamente que o governo comprasse armas de um regime de apartheid, colonialista e genocida, Múcio citou a impossibilidade constitucional de explorar minérios em terra indígena como mais um impedimento “ideológico” que prejudica seus negócios. Seja aqui ou na Palestina, o ministro demonstra ser partidário da sanha da elite brasileira que, desde 1500, vive do extrativismo colonial às custas da população indígena.
As declarações do ministro foram recebidas negativamente entre as bases mais engajadas do petismo. Embora quase nenhuma figura pública tenha se comprometido na crítica direta a Múcio, o Núcleo Palestina do Partido dos Trabalhadores expôs profundo descontentamento com a fala do ministro. Não apenas ele questionou publicamente aquele que, no papel, é seu chefe, como expôs o presidente a acusações de antissemitismo por enquadrar a questão como um problema do governo contra “os judeus” em geral.
Seja essa objeção de Lula um movimento honesto ou uma tentativa de aplacar sua base, esse tipo de exposição é uma insubordinação que os militares a quem Múcio serve jamais aceitariam. Por mais pusilânime que seja a posição brasileira sobre a questão, não comprar armas de um regime racista e genocida é o mínimo que se espera de um governo que se diga progressista, ainda que neoliberal. A quem interessa atacar publicamente essa posição do Governo Federal?
Alguns iludidos consideraram que havia risco de Múcio ser demitido, ou mesmo desautorizado por Lula, o que obviamente não aconteceu. Em entrevista ao jornal O Povo, Lula disse que Múcio é um amigo de longa data e que tem plena confiança na lealdade dele. Aliás, o “leal” José Múcio Monteiro foi o relator do processo das “pedaladas fiscais” que causou o impeachment de Dilma Rousseff. Mas isso não vem ao caso. Sobre as declarações, Lula pôs os panos quentes de sempre. Disse que Múcio o ligou apavorado com a repercussão negativa. Segundo o presidente, Múcio não perdeu prestígio algum em seu governo por conta do que falou. Ao que tudo indica, ele seguirá sendo office boy do generalato brasileiro por mais algum tempo.
Se nem o Ministério das Relações Exteriores do Brasil apoia a posição oficial brasileira sobre a Palestina, quem apoia?
Já o Itamaraty cometeu uma nota sobre o sete de outubro que parece ter saído diretamente da Embaixada dos Estados Unidos. Essa nota não é apenas profundamente recuada politicamente; ela contradiz até mesmo posições oficiais do Estado brasileiro sobre o tema. Na nota, duas opções na redação do texto se destacam por seu asqueroso alinhamento à política colonial dos EUA.
Primeiramente, o uso da palavra “terrorismo”. Usada como adjetivo para tudo aquilo que os Estados Unidos desaprovam, o “terrorismo” é o “comunismo ateu” do século XXI, o espantalho-mor do império e seus serviçais. Desde o Dilúvio de Al-Aqsa, os veículos da imprensa hereditária brasileira usaram livremente o adjetivo “terrorista” para descrever todos os grupos de resistência anticoloniais em justo combate contra o regime racista de Tel Aviv.
Até aí, nada fora do esperado. O próprio Lula aderiu à descrição dos atos da Resistência Nacional Palestina como “atos terroristas” do Hamas. No entanto, o presidente jamais se referiu ao partido palestino ou a seus integrantes como “terroristas”. Ocorre que chamar uma organização de “terrorista” tem um peso diferente quando os Estados o fazem, com profundas implicações na hora de lidar com tais grupos. O Estado Brasileiro reconhece como organizações terroristas apenas aquelas assim descritas como tal pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. E esse não é o caso do Hamas. Mesmo assim, a nota do Itamaraty chama textualmente de “terroristas” os integrantes do Hamas.
Ou seja: o Itamaraty, em sua declaração, contraria a própria posição diplomática do Brasil em favor de interesses externos. Isso é muito grave. Não apenas pelo enfrentamento aberto ao governo, mas principalmente pela afronta ao posicionamento histórico do Brasil em contendas deste tipo, infringindo uma política de Estado que em muito precede Lula. Preciso dizer que Estados Unidos, Israel e União Europeia são as instituições com a qual o Itamaraty se alinhou à revelia do próprio país?
Em segundo lugar, a asquerosa nota do Itamaraty ignora completamente o genocídio em Gaza. Os colonos israelenses são contados – 1200 – e nomeados. Nada é dito sobre os palestinos, a destruição de Gaza, os 42000 assassinados pela ocupação racista israelense. Não há sequer menção à Palestina; na linha ianque-sionista, referem-se apenas a “Gaza”. Este é um modo comum, entre os canalhas, de negar a estatalidade e a integridade territorial da Palestina. Para Mauro Vieira, pelo visto, os palestinos simplesmente não existem – à moda Golda Meir.
Para além do desastre político e humanitário que essa repulsiva nota representa, ela em nada beneficia o Brasil num sentido pragmático. Pelo contrário, mais que desmoralizar o governo de turno, a nota insulta os palestinos e suas organizações políticas, além de afastar os países sobre os quais o Brasil aspira exercer influência através do BRICS e demais fóruns multilaterais, como Irã, Cuba, Venezuela, etc. Num contexto mais amplo, esse tipo de declaração trai a tradição brasileira de buscar ser um ator “neutro” na resolução de conflitos internacionais. A diplomacia brasileira, em suma, rifou interesses de Estado em prol de um alinhamento gratuito com o imperialismo. A troco de nada, nossos ilustres embaixadores seguem com lealdade canina as ordens de seus donos.
Implicações práticas da pusilanimidade governista
Importa pouco quem pode criticar o governo – ou melhor, quem pode criticar as pautas que o governo supostamente defende. Como os dois casos envolvendo Israel demonstram, não há consequência alguma para aqueles que pisam nos direitos dos oprimidos. O que importa é quem não pode criticar o governo e por quê.
É fato conhecido que o ministro da agricultura Carlos Fávaro, por exemplo, é a favor do Marco Temporal – pauta central no projeto neocolonial do latifúndio brasileiro contra os povos indígenas. Jamais se viu qualquer crítica a essa posição do ministro por parte do governo.
No entanto, quando o ministro da Previdência Carlos Lupi ousou mencionar a necessidade de revogar a reforma previdenciária de Bolsonaro a favor dos trabalhadores, foi duramente criticado pelo próprio governo. O que Sônia Guajajara, por exemplo, conseguiu de concreto para os povos indígenas sendo ministra? O que falar dos ministérios de Anielle Franco e Silvio Almeida?
Camilo Santana manteve a reforma do Ensino Médio. Sem diálogo com os professores, Camilo tem ouvidos apenas para o lobby dos Lemann. Luiz Marinho nada fez contra a reforma trabalhista. Haddad formalizou a PEC do Teto de Temer na forma do Arcabouço Fiscal e tem proposto ataques contra o BPC e as aposentadorias. Todas essas pautas seriam, supostamente, contrárias ao projeto político de um governo Lula.
Se acreditarmos no programa proposto em 2022, no jogo de cena que foi a famosa subida da rampa do Planalto, seremos forçados a considerar que Lula ou mentiu para a população que votou nele ou foi substituído por um sósia. Talvez a Faria Lima tenha sequestrado algum parente dele. Jamais saberemos.
Seja como for, pouco importa a lealdade ou não dos ministérios ao governo; importa a subordinação dos ministérios – com ou sem anuência do presidente, tanto faz – a forças outras. Afinal, quem NÃO está liberado para desmoralizar esse governo moribundo? A verdade é que o programa eleito sobrevive apenas em tuítes e declarações vazias da assessoria de comunicação de Luís Inácio. Integrantes do governo apanham como condenados quando deixam transparecer qualquer migalha do mais tímido progressismo em seus discursos. O alinhamento com as posições do imperialismo, mais que automático, é obrigatório.
A perseguição contra atores pró-Palestina sob o governo Lula
Quem seguiu nas ruas em apoio aos movimentos populares do Brasil – apesar do ano eleitoral – percebeu o esvaziamento de quase a totalidade dos elementos governistas. Seja em atos sobre a Palestina, as enchentes no Rio Grande do Sul ou as queimadas, apareceram apenas aqueles que, individual e voluntariamente, desobedeceram a orientação de seus superiores para defender a agenda progressista que muitos ainda creem ser a agenda deste governo.
Mas o que acontece com aqueles militantes que vão às ruas para defender de boa fé as pautas progressistas que supostamente são as pautas do governo? Eles são repreendidos por suas organizações, ameaçados por provocadores bolsonaristas, perseguidos judicialmente, expostos nas redes sociais, presos, agredidos por policiais. Tudo isso com pouco ou nenhum apoio das lideranças ditas “populares”.
O que fez o governo quando o deputado Gustavo Gayer elaborou e enviou para a Embaixada dos EUA uma lista de “apoiadores do terrorismo” com nomes de políticos, pessoas públicas, professores universitários e cidadãos comuns que defendem a Palestina? Por que cada partido, sindicato e instituição defendeu judicialmente apenas os seus, abandonando os demais à própria sorte? Por que Breno Altman, judeu antissionista e petista de lealdade inquestionável, não recebeu qualquer apoio relevante quando foi processado e censurado pelos sionistas – com participação, inclusive, da Polícia Federal nos inquéritos, na época que Flávio Dino era Ministro da Justiça? Por que os elementos honestos da militância de partidos políticos eleitorais foram abandonados por suas lideranças quando decidiram se movimentar contra essa e outras injustiças de nosso tempo?
A posição de Luiz Inácio sobre a Palestina e, principalmente, as consequências concretas dessa posição, ilustram bem o fracasso que é a política de “neutralidade”, de “dois ladismos”, como chamamos no movimento pró-Palestina, que é tão característica dos governos “progressistas”.
O governo Lula 3 afirma “condenar os extremos”, para se apresentar como “neutro”, “moderado”, etc. Tal ação, no entanto, nada tem de neutra. Seu único efeito é deslegitimar a Resistência Nacional Palestina, separá-la do povo palestino com se ambos tivessem interesses antagônicos e igualar os combatentes palestinos aos sionistas de Israel.
A nota do MRE, por acaso, menciona o genocídio em Gaza? O governo brasileiro se movimentou de qualquer modo relevante para chamar os racistas israelenses de racistas, assim como se moveu para caluniar a resistência chamando-a de terrorista? Mesmo as raras declarações ditas “pró-Palestina” de Lula, não apoiadas pela prática concreta do governo, de pouco servem se o governo segue mantendo amigáveis e lucrativas relações com o sionismo.
Assim chegamos a uma situação na qual o Brasil contradiz sua própria posição diplomática. Afronta ainda o Direito Internacional, que garante aos palestinos o direito de resistir militarmente à ocupação estrangeira. Vivemos um momento em que, objetivamente, no plano interno do Brasil, a Resistência é condenada, mas Israel e seu lobby não. Em que, tanto na causa palestina como em muitas outras, a esquerda é perseguida enquanto a direita ganha licitações e compõe ministérios.
O governo quer, mas não pode? Ou pode, mas não quer?
Nesse cenário de submissão completa, tão bem ilustrado pelo servilismo perante os interesses dos EUA e Israel, só há duas opções: Ou (1) o governo é capaz de fazer diferente, e escolhe não fazer porque traiu sua base; ou (2) o governo não é capaz de fazer diferente, de modo que eleger qualquer um não passa de jogo de cena para disfarçar que, independentemente do resultado das urnas, a burguesia e do latifúndio jamais saem do poder.
As pessoas são livres para crer que Lula é apenas um senhor bem-intencionado, um idoso eleito a contragosto que não apita nada no próprio governo – em tudo uma Rainha Elizabeth dos trópicos. São também livres para considerar que tamanho alinhamento pró-imperial em todas as pautas importantes não pode ser acaso, e que Lula é propositalmente um inimigo das causas populares. Sinceramente, pouco importa.
Pode ser que os ministros tenham apenas cometido a inconfidência de entregar a real posição do governo por trás do discurso de Lula. Pode ser que eles tenham transmitido um recado de grupos de pressão que querem avançar ainda mais sobre o governo. De todo modo, a incapacidade de Lula tanto de evitar esse desgaste quanto de, depois do ocorrido, punir os ministros, é prova cabal da fragilidade de sua posição e da pusilanimidade de seu comando. Em suma: as ações dos ministros demonstram insubordinação ao governo brasileiro? Talvez. Elas demonstram subordinação a outro governo acolá? Com certeza. Esse é o ponto central.
Como disse Huey Newton, a soberania nacional não passa de uma quimera enquanto houver o império estadunidense para mandar e desmandar em todo o planeta. Não serão Estados ou presidentes na democracia burguesa que garantirão a soberania dos povos. Apenas uma revolução socialista mundial que encerre de uma vez por todas a ingerência do imperialismo sobre toda a Humanidade pode, verdadeiramente, nos libertar.
Caio Porto é doutorando em sociologia na Universidade de Brasília. Integra o Grupo de Estudos Retóricas do Poder e Resistências (Gerpor-UnB) e o Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos (CEAI-UFS).
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