Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O Ministério da Saúde publicou no dia 28 de agosto uma portaria que obriga médicos e profissionais de saúde a notificarem a polícia ao atenderem a vítimas de estupro que desejam realizar um aborto legal. A portaria afirma que é obrigatório o aviso à autoridade policial “dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”.
A interrupção da gravidez é permitida em três situações no Brasil: quando a mesma é resultado de violência sexual, se não há outro meio de salvar a vida da gestante e em casos de fetos com anencefalia. A mudança em regras sobre aborto legal ocorre alguns dias após o caso envolvendo uma criança de 10 anos estuprada e engravidada pelo tio no Espírito Santo.
Os dados da menina foram vazados pela facínora Sara Giromini nas redes sociais. Mesmo com risco de morte, a criança teve dificuldades para obter acesso ao aborto no Espírito Santo, onde vivia. A interrupção da gravidez só ocorreu em Recife, sob xingamentos e protestos de grupos fascistas.
A pasta também fez alterações no “termo de consentimento” que deve ser assinado pela vítima. Este documento apresenta uma lista de riscos e desconfortos causados pela interrupção legal da gravidez, mas passou a dar mais detalhes sobre efeitos da operação às vítimas de estupro. A nova regra também determina que os profissionais de saúde devem “informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.”
Para Debora Diniz, do Instituto Anis Bioética, a portaria “transforma a operação de um serviço de aborto legal em uma delegacia policial” e continua “Ela cria uma série de barreiras e parte de uma clara ideologização da ciência, uma ciência seletiva, cuja única finalidade é amedrontar as mulheres que buscam o aborto”.
No dia 27 de agosto, dia anterior à publicação da portaria, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, em mais um de seus discursos fascistas negou que o governo federal proporia mudanças na legislação sobre aborto legal. “Não, o governo Bolsonaro não vai apresentar nenhuma proposta para mudar a legislação atual de aborto. Isso é um assunto do Congresso Nacional. O Congresso Nacional que decida por lá”, disse.
E em junho, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, exonerou técnicos e bolsistas da Saúde que assinaram nota técnica sobre acesso à saúde sexual e reprodutiva na pandemia. O documento havia sido distorcido pelo presidente reacionário Jair Bolsonaro em publicação nas redes sociais. Ele sugeriu que houve uma tentativa de legalizar o aborto.
Profissionais de saúde discordam de portaria
Diretor do Hospital Pérola Byington, unidade de referência em aborto legal, o ginecologista André Malavasi afirma que algumas vítimas de estupro podem se sentir constrangidas ou ameaçadas em buscar o atendimento com a nova regra.
Malavasi diz que o seu hospital seguirá atendendo da mesma forma e que não espera grande diminuição da procura pelo aborto legal na unidade, mas teme o impacto fora de centros de referência. “Para nós vale a palavra da vítima, não é necessário boletim de ocorrência ou prova criminal, mas pedimos para ela assinar o termo (previsto desde 2005 em portaria).”
O ginecologista aponta que há subnotificação de casos de violência sexual e lacunas na troca de informações com a vigilância sanitária. “A estatística policial hoje já é maior do que a da saúde (sobre estupro), quando deveria ser o inverso”.
Para o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, da Faculdade de Saúde Pública da USP e que atuou por décadas em serviços de aborto legal, embora prevista em lei, a medida pode afastar mulheres do serviço de saúde. “É um problema, porque se sou uma mulher e me sinto em risco, vou evitar procurar o serviço.”