Ângelo Kretã, líder Kaigang assassinado em 1980. Foto: Museu Paranaense.
Entre os dias 27 e 29 de janeiro, indígenas da região sul do país realizaram na Terra Indígena Tupã Nhe’é Kretã, um grande evento em memória do Cacique Ângelo Kretã, importante liderança Kaigang que lutou durante a década de 1970 pela demarcação e retomada de terras indígenas, e que foi assassinado em uma emboscada dentro de sua aldeia na região de Mangueirinha, no sudoeste do Paraná.
O evento foi organizado pelo Movimento dos Acampamentos e Retomadas da Região Sul, pela Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), com o objetivo de avaliar a situação política atual e fortalecer as estratégias de luta pela defesa e reconquista dos territórios indígenas.
Dentre as mais de 100 pessoas presentes, estiveram as principais lideranças dos povos indígenas da região sul e de São Paulo, que discutiram sobre a atual situação fundiária envolvendo a demarcação e retomada de terras indígenas e rechaçaram amplamente o governo de Bolsonaro e dos militares, com sua política de não demarcação das terras indígenas e de desmonte da educação e saúde indígenas. Em um dos espaços foi criticada a Medida Provisória 910 (MP 910), que facilita a ação de latifundiários, madeireiros e grileiros não só nas terras indígenas, como também nas terras conquistadas pelos movimentos camponeses.
Um dos espaços sobre articulação política na TI Tupã Nhe’é Kretã. Lideranças indígenas de toda a região sul estiveram presentes. Foto: Comitê de Apoio ao AND de Curitiba.
Indígenas rechaçam a política de não demarcação de terras do governo de Bolsonaro e dos militares. Foto: Comitê de Apoio ao AND de Curitiba.
As falas também ecoaram a importância da juventude indígena e das mulheres guerreiras se organizarem para a luta pela defesa e reconquista dos territórios, assim como a importância da divulgação da luta indígena.
De acordo com o Cacique Daran, de Itaporanga (SP), atual coordenador da Arpinsul e membro da diretoria executiva da Apib, os três dias de encontro marcam um importante passo para a organização dos povos indígenas não só na região sul, mas também a nível nacional e tem importância particularmente para os jovens, que tomam maior contato com a luta de seus antepassados.
Ainda sobre o evento, destaca a importância de traçar estratégias de luta contra os atuais gerentes de turno: “de 4 em 4 anos temos que mudar a estratégia, porque a luta muda, temos que nos reunir para decidir estratégias para lutar contra o governo, contra o senado, contra leis que nos prejudicam”. Sobre as principais formas de atuação, comenta: “as duas bandeiras de luta [hoje] são a demarcação e a retomada das terras indígenas”.
No terceiro dia do encontro, os indígenas se deslocaram até Curitiba, onde realizaram uma celebração em homenagem à histórica liderança de Ângelo Kretã, reafirmando a necessidade de seguir o caminho das retomadas e a necessidade de dar a vida e o sangue pela defesa dos territórios.
Cerimônia em Curitiba reuniu as principais lideranças indígenas da região Sul e dezenas de apoiadores. Foto: Mídia Índia
Ângelo Kretã: símbolo de luta, resistência e defesa do território indígena
Importante liderança Kaigang, Ângelo Kretã, nascido em 1942, liderou o movimento que deu início às primeiras retomadas de Terras Indígenas (TI) no sul do país na década de 1970, em pleno Regime Militar. Além disso, desafiou os militares lançando candidatura a vereador em 1976, época em que os indígenas eram considerados “incapazes” ou “tutelados”, isto é, não tinham direitos políticos dentro do velho Estado. Vencendo o imbróglio judicial, foi o primeiro indígena eleito para um cargo político.
Uma das primeiras retomadas que Kretã liderou foi na TI Rio das Cobras, no sudoeste do Paraná, quando foram expulsos 170 invasores. Em Mangueirinha, também no sudoeste, foram mais de 9 mil hectares retomados nos anos de 1979 e 1980, expulsando os invasores da empresa Slaviero, que havia tomado parte das terras em conluio com o governo do estado e destruído as casas dos milhares de Kaigang ali residentes, assim como a floresta e vegetação local.
Cacique da TI de Mangueirinha desde 1974, no dia 22 de janeiro de 1980, Ângelo Kretã foi vítima de uma emboscada quando trafegava com seu veículo em sua aldeia, sendo atingido por um caminhão. Embora tenha sido difundido como um acidente, depoimentos confirmam que tudo se tratou de uma armação. Internado durante oito dias, veio a falecer às 15 horas do dia 29 de janeiro e, por conta disso, a data ficou conhecida para os Kaigang como o Dia de Luta e Resistência dos Povos Indígenas do Sul.
O funeral contou com a presença de mais de 1.500 pessoas e chegou a receber, inclusive, cobertura do monopólio de mídia frente a grande comoção nacional e sentimento de revolta que seu assassinato gerou.
O cacique Romancil Kretã, filho de Ângelo, conta sobre as ameaças que o pai recebia de latifundiários e madeireiros: “ele saia de madrugada, ia para o Rio Grande [do sul], para Santa Catarina, não sabíamos muito bem se ele ia voltar. Quando ele saía, falava para minha mãe que era ameaçado. Eu ouvia no radio eles ameaçando meu pai”.
Cacique Romancil Kretã discursa em espaço dedicado à juventude indígena. Foto: Comitê de Apoio ao AND Curitiba
Terra Indígena Tupã Nhe’é Kretã
Situada entre os municípios de São José dos Pinhais e Morretes, a TI Tupã Nhe’é Kretã, em que Romancil Kretã é cacique, é símbolo do legado do pai. A terra é fruto de uma retomada que já completa 6 anos e as diversas famílias que ali residem vem lutando desde então pela demarcação do território, por maior autonomia e pela preservação da floresta nativa de araucárias, quase dizimada por madeireiros que exploravam a região.
Importantes conquistas ocorreram no período, como a implementação de uma escola de ensino fundamental dentro da aldeia, há 3 anos. Conquistas mais recentes e ainda em processo de implementação são a eletrificação, cujos cabeamentos podem ser vistos durante o percurso para a aldeia, assim como o direito de plantar e colher em suas terras.
Ao centro a Escola Indígena da TI Tupã Nhe’é Kretã. À esquerda podem ser vistos os postes, ainda sem os fios de alta tensão. Ao fundo a floresta de araucárias, parte da floresta nativa da região. Foto: Comitê de Apoio ao AND Curitiba
Romancil, relembrando o processo de retomada e de conquistas da aldeia, relembra: “hoje a maioria das terras indígenas retomadas começaram dessa luta do Ângelo nos anos 70, em plena ditadura militar”. De acordo com ele, Ângelo foi uma liderança não só para a luta indígena, mas para todos os movimentos de luta pela terra: “ele deu uma contribuição importante para todos nós que lutamos por direitos, que temos uma causa, ajudou a construir um novo pensamento, uma nova luta, um novo Brasil. Esse foi o Ângelo Kretã guerreiro”.