Foto: Bruno Ropelato / ndmais.com.br
Descoberta e identificada há poucos anos, a comunidade afrobrasileira Vidal Martins é o primeiro quilombo urbano da capital de SC, tido como o estado mais “europeu” do país. Localizado no bairro Rio Vermelho, no chamado Porto, próximo à Lagoa da Conceição, o quilombo abriga 28 famílias remanescentes da escravatura (cerca de 80 pessoas), espremidas em 900 metros quadrados.
Sua área de uso era maior, mas foram enganadas pela ditadura militar, que as retirou do local na década de 1960 para a instalação do Parque Florestal do Rio Vermelho, com a falsa promessa de que retornariam em breve e poderiam utilizar o Parque, coisa que foram proibidas de fazer. O sexagenário Odílio Izidro Vidal, a pessoa mais velha da comunidade, conta: “Tiraram a gente e meu pai teve que comprar aquele pedacinho de terra. Mas fomos impedidos de continuar entrando no terreno onde hoje está o Parque do Rio Vermelho”.
A saga da família Vidal Martins, conforme o jornal local Notícias do Dia teria começado em 1748, quando negros da África foram trazidos à Ilha de Santa Catarina (antiga Desterro) para servir a senhores de engenho, religiosos, militares e comerciantes,a maioria de origem açoriana. Escravos, foram a mão de obra explorada durante a urbanização que deu início ao povoamento e à colonização daquele trecho da Ilha (Florianópolis).
A comunidade é formada por familiares de escravos levados ao Rio Vermelho em meados do século 18, e que após libertos, permaneceram nas terras cedidas pelos antigos senhores.
Em 2012, Helena e Shirlen Vidal, integrantes da família Vidal Martins começaram a busca pelo histórico cultural e familiar. A extensa pesquisa feita a partir de documentos de cartórios, igrejas e arquivos públicos revelou diversos dados históricos importantes sobre a história da escravidão em Florianópolis.
O reconhecimento oficial da comunidade foi feito através de certificado da Fundação Cultural Palmares em outubro de 2013, com imediato encaminhamento do processo ao Incra (Instituto Nacional de Reforma Agrária) para elaboração de laudos antropológicos e demarcação da área.
Helena foi uma das criadoras, em 2014, da Associação dos Remanescentes Quilombolas Vidal Martins. Segundo sua irmã, a também líder Shirlen Vidal, é importante resgatar a memória dos antepassados e manter o vínculo da família com a terra. “Eles deram suor e sangue para construir o Rio Vermelho, mas sempre foram mantidos à sombra da história da colonização”, observou ela ao jornal local. “A cultura da Ilha não é só açoriana; é indígena e escrava africana também”, sublinhou Helena.
O caminho para a obtenção do território, devidamente regularizado, não tem sido fácil. O preconceito de classe e de raça foi um dos grandes entraves. “Chegaram a ser registrados como brancos e com sobrenome diferente para não ter acesso à terra”, denunciou Joana Zanotto na página do Jornalistas Livres, no ano passado, após ouvir relatos dos quilombolas.
As irmãs Shirlen e Helena sabem bem o que é preconceito. Quando meninas, fingiam não se importar de serem as únicas alunas sentadas sozinhas nas carteiras duplas da sala de aula, na escola pública do Rio Vermelho. Nem entendiam as risadas quando chegavam à igreja ou passavam pelo comércio da freguesia. “Racismo hoje dá cadeia, mas antes era escancarado. Diziam o que queriam, e tínhamos de ouvir caladas”, lamenta Shirlen.
O quilombo Vidal Martins, que hoje representa o núcleo oficial de resistência da cultura negra na Ilha de Florianópolis, é um conjunto de casas mistas, amontoadas em poucos metros ao lado da rodovia João Gualberto Soares, dividido por rendeiras,operários, artesãs, estudantes, tranceiras, músicos, artistas plásticos, diaristas e (na baixa temporada turística) desempregados.
Para combater a grave situação econômica do grupo, o quilombo tentou a opção de trabalhar no Parque, cuidando do Camping. Mas enfrentou uma barreira inesperada e injusta por parte do IMA (Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina),que foi definida como racismo institucional pelo Ministério Público Federal. Por causa disso o MPF entrou com uma ação no dia 14 de dezembro de 2018 contra o IMA, contestando o processo licitatório para a contratação de uma nova entidade para assumir a gestão do Camping do Rio Vermelho.
Na ação a procuradora Analúcia Hartmann acusa o IMA de “racismo institucional” porque, segundo ela, embora a comunidade do Vidal Martins tenha recebido a promessa, por parte do Instituto, de assumir a administração do Camping, durante a licitação que daria esse poder à comunidade, os quilombolas foram desclassificados. Perdendo pontos justamente no quesito “comunidade tradicional”.
A história de Vidal Martins
Filho de Joana e de pai desconhecido, neto de Jacinta, negra trazida da África em meados do século 18, Vidal Martins morreu em 1910, aos 65 anos. Conforme pesquisaram as bisnetas Shirlen e Helena, ele era bebê quando Joana passou a servir ao padre Antônio Mendes Pulcheria Mendes de Oliveira, primeiro residente da Paróquia de São João Batista do Rio Vermelho.
O mesmo padre, em 1850, a casou com Manoel Fonseca do Espírito Santo, escravo do tenente-coronel Antonio José Diniz. Libertos, tiveram 13 filhos. Todos batizados e registrados no Rio Vermelho, conforme certidão emitida pelo Museu da Cúria Metropolitana de Florianópolis.
No ano de 1845, vinte e seis anos antes da Lei do Ventre Livre no Brasil, nascia Vidal. Casou-se com Maria Rosa, de origem indígena, e juntos construíram a sua família na região do Porto, no Rio Vermelho. Um dos filhos do casal, Boaventura Linhares Vidal, que faleceu no Rio Vermelho aos 95 anos, contava aos seus familiares que eles tinham direito a terras na região para que formassem um quilombo – relato que anos depois levou suas descendentes a iniciarem o árduo processo de investigação acerca do passado da família. Assim como outros quilombolas brasileiros, os familiares de Vidal permaneceram em suas terras até que o governo os expulsou para a construção do Parque Florestal do Rio Vermelho, que sob a justificativa de ter que barrar urgente o avanço de dunas introduziu plantas exóticas (pinus e eucaliptos) que acabaram por praticamente destruir a vegetação nativa nos anos 1960. Após algum tempo, os Vidal Martins conseguiram comprar pequenos terrenos na região, vivendo às margens do território que historicamente lhes pertencia por direito.
Alguns dos primeiros moradores do distrito do Rio Vermelho foram os senhores de escravos, seus respectivos escravos e a população proveniente das ilhas dos Açores e da Madeira. As casas dos senhores eram em sua maioria de pedra, assim como as senzalas. Já as casas dos escravos alforriados eram de taipa, ou pau-a-pique e barro, e se localizavam na parte sul do povoado, mais distante do centro.
No Rio Vermelho localizava-se a maior área da ilha cultivada com mandioca, e era onde ficava também, a maior concentração de engenhos, que antigamente eram manuais e mais tarde foram substituídos por engenhos movidos à força dos bois.
O bairro hoje possui cerca de 15 mil habitantes,
Os invisíveis
Ilka Boaventura Leite em Negros no Sul do Brasil (Fpolis, Letras Contemporâneas, 1996) diz que a historiografia de SC repetidamente negou a presença de populações afrodescendentes na formação da sociedade estadual. Para ela, isso carregava um forte pressuposto ideológico de valorizar o branqueamento da sociedade de SC, que se apresenta como o estado mais “europeu” do Brasil. “…o mecanismo da invisibilidade se processa pela produção de um certo olhar que nega sua existência (do negro) como forma de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade”.
SC mais negra do que se pensa
Um grupo de pesquisadores da UFSC, ao procurar desvendar a presença de africanos na capital do estado, relatou em 2010 que “pouco se sabia sobre a presença de africanos no cotidiano da Ilha de Santa Catarina entre o final do século 18 e o início do século 19”.
Num trabalho, o grupo formado por professores e estudantes de História, buscou avançar em relação a pesquisas anteriores que denunciavam a invisibilidade do negro e se preocuparam em demonstrar sua presença em SC.
A escravidão na Ilha de Santa Catarina foi por muito tempo percebida como doméstica e menos importante do que a dos engenhos de açúcar, dos cafezais ou das charqueadas. Os agricultores açorianos foram descritos como pobres, sem condições de possuir escravos. Porém trabalhos recentes sobre a produção de gêneros para o abastecimento e sobre o comércio transatlântico de escravos inspiraram um novo olhar sobre a realidade de Florianópolis e do litoral catarinense.
O levantamento dos registros de batismo dos africanos recém-desembarcados, jovens ou adultos, mostrou que o auge da sua chegada na Ilha aconteceu entre 1808 e 1830, coincidindo com a dinamização da economia do sudeste, desencadeada pela mudança da corte portuguesa ao Brasil.
Esses africanos iam trabalhar nas propriedades rurais ilhoas que produziam farinha de mandioca, açúcar, feijão, milho, cachaça e outros produtos básicos.Quatro em cada 10 famílias do Ribeirão da Ilha em 1843, por exemplo, tinham escravos (geralmente até cinco). Eles complementavam a mão-de-obra familiar dos agricultores, muitos deles descendentes dos primeiros migrantes dos Açores chegados aqui.
A Freguesia da Lagoa da Conceição era um verdadeiro celeiro, cultivava-se de tudo. Isso também com a ajuda de escravos, o que indica que seus proprietários não eram pobres, pois um africano custava caro. Os agricultores da Ilha compravam negros dos comerciantes do Rio de Janeiro e pagavam com farinha, cachaça, etc.Depois de 1830, a chegada de africanos diminuiu muito por causa da proibição do tráfico. A população escrava cresceu pelos nascimentos, e ficou mais crioula.
Até hoje, o centro de Florianópolis guarda construções, espaços e símbolos da cidade de Desterro do tempo da escravidão.
Um quarto da população era composta por escravos. Uma em cada quatro pessoas era propriedade de alguém e trabalhava para o proprietário (ou proprietária – havia muitas mulheres proprietárias também) apenas em troca de casa, roupa e comida.
Depois da chamada Independência do Brasil, o espaço social ocupado pelos africanos se restringiu.Na Constituição do Império (1824), só são reconhecidos como cidadãos aqueles indivíduos nascidos no país. Escravo, por definição, não era cidadão.Mas uma vez alforriados, os crioulos passavam a ser reconhecidos como cidadãos brasileiros,enquanto os africanos libertos ficavam num limbo, sem cidadania. Em Desterro, as festas de coroação de reis, que eram ocasiões festivas da comunidade africana aceitas no período colonial, passaram a ser proibidas. Os batuques e danças também.
Em outros lugares do Brasil, os africanos eram tantos que ficava difícil impor a proibição. Aí entra a especificidade de S.Catarina: como a província recebeu muitos imigrantes europeus, a população negra ficou com pouco espaço para defender seus costumes e direitos.
Em Santa Catarina são 12 comunidades reconhecidas oficialmente, com certidão da Fundação Cultural Palmares e processos encaminhados ao Incra para regularização territorial. Seis delas já receberam laudos, e as outras seis estão na fila de espera para abertura de licitação e contratação de pesquisas e relatórios antropológicos. Algumas áreas, como Vidal Martins, na Capital, e Tabuleiro, em Santo Amaro da Imperatriz, estão sobre parques estaduais.