De frente pro crime [2]
Copa do Catar
O campeonato mundial de seleções organizado pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) foi o evento esportivo de maior repercussão em 2022. Com sede no Catar, Estado de regime teocrático-feudal e serviçal do imperialismo, foi a Copa do Mundo de Futebol mais cara da história com custo estimado em US$ 220 bilhões (R$ 1,15 trilhão) [3]. Os lucros desse “espetáculo” foram divididos entre empresas multinacionais de 43 países, principalmente do USA e da Grã-Bretanha[4]. Como foi denunciado, principalmente pela imprensa popular, toda opulência do evento foi construída em cima dos cadáveres de milhares de operários (ao menos 6,7 mil) forçados a trabalhar em regime de servidão [5].
O evento no Catar pode ser comparado à Copa do Mundo de Futebol de 1934 realizada na Itália fascista de Mussolini, aos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, promovido pela Alemanha nazista e ao campeonato mundial de seleções de futebol de 1978, ocorrida na Argentina sob a égide da ditadura sanguinária de Videla. São todos exemplos do chamado sportswashing (lavagem esportiva), termo utilizado para definir o uso do esporte por Estados reacionários para criar uma imagem positiva a nível internacional escondendo seus atos de violação de direitos básicos dos trabalhadores, imigrantes, mulheres, enfim contra o seu próprio povo e a favor do imperialismo e da classe dominante do país.
Ainda na Copa do Catar, um episódio envolvendo jogadores da seleção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) causou indignação e revolta: o banquete com carne folheada a ouro 24 quilates ao preço médio de R$ 3 mil. A cena grotesca protagonizada pelo glutão Ronaldo “fenômeno” serve para corroborar o desprezo que parcela significativa do povo brasileiro nutre pela imensa maioria dos milionários jogadores e ex-jogadores de futebol que são ferozes defensores do status quo.
Após o torneio mundial de seleções de 2022, veio a tona o caso do “bom cidadão brasileiro” que defende “o Brasil acima de tudo e deus acima de todos”, Daniel Alves, preso pela polícia da Catalunha acusado de estuprar uma jovem em uma boate de luxo. Esse caso se soma à vários outros de violências praticadas contra as mulheres por jogadores de futebol [6].
Sociedades Anônimas do Futebol (SAF)
Desde 1998, ano em que foi promulgada a Lei Pelé, existe a possibilidade de um clube de futebol mudar sua natureza jurídica e se tornar um clube empresa. Mas foi a partir da aprovação pelo parlamento brasileiro da lei federal 14.193/2021 que o chamado movimento Sociedade Anônima do Futebol (SAF) ganhou força no país. Todo o processo foi marcado pelo lobismo de clubes tradicionais do futebol sobre os poderes legislativo, executivo e judiciário do carcomido Estado brasileiro. O principal argumento para a aprovação das SAFs foi de que elas seriam a salvação dos clubes que se encontram em dramática situação financeira. Desde então, clubes como Cruzeiro, Botafogo, Vasco e Bahia já foram vendidos à “investidores” (leia-se grupos empresariais) representados por testas de ferro como Ronaldo “fenômeno” no Cruzeiro Esporte Clube, os empresários estadunidenses John Textor no Botafogo de Futebol e Regatas e Josh Wander no Clube de Regatas Vasco da Gama e City Football Group (leia-se sheik Mansour dos Emirados Árabes) no Esporte Clube Bahia. Vale destacar que outros clubes como Palmeiras e Atlético Mineiro, embora não tenham aderido formalmente à SAF, são controlados por grandes empresários, verdadeiros donos do time, Leila Pereira (Crefisa) e Rubens Menin (Construtora MRV, Banco Inter e filial brasileira do canal de TV CNN), respectivamente.
O valor de mercado das 20 principais ligas de futebol do mundo foi estimado no início de 2023 em 39,7 bilhões de euros (R$ 220,54 bilhões de reais). A Premier League da Inglaterra foi avaliada em 10,32 bilhões de euros e o atual Campeonato Brasileiro (Série A) em 1,32 bilhões de euros [7]. Esse universo, em que rola tanta grana, é um campo fértil para a lavagem de dinheiro. São públicos e notórios os casos em que isso ocorreu: (i) Parma, equipe italiana controlada pela Parmalat que enviava recursos para paraísos fiscais; (ii) Envigado, time colombiano que lavava dinheiro do narcotráfico; (iii) Querétaro, Irapuato FC, Necaxa, Santos Laguna, Puebla e Salamanca, todos do México, investigados por movimentação de dinheiro de origem ilícita; (iv) Cittanova, Sapri Calcio e Rosarnese, equipes que serviam para movimentar recursos da máfia calabresa Ndrangheta [8]. No Brasil em 2005, a parceria entre Media Sports Investment (MSI) e o Sport Club Corinthians Paulista foi acusada de ser uma fachada para lavar dinheiro do magnata russo Boris Berezovsky (um dos vários canalhas que rapinaram o patrimônio construído com sangue e suor pelo povo soviético). Ninguém foi condenado pela justiça [9].
Num cenário em que os resultados financeiros estipulados não sejam alcançados, as SAFs podem decretar a extinção de um time de futebol. A solução para a má gestão dos clubes é entregar o time querido pelos torcedores na mão de um “investidor”? Ou o caminho a seguir não seria reformar os estatutos de forma a tornar a gestão mais transparente e democrática permitindo a participação de sócios-torcedores e o estabelecimento de mecanismos de fiscalização mais rigorosos?
Sites de apostas esportivas
Em 2018, o escroque Michel Temer legalizou os jogos de azar de quota fixa o que levou à febre atual das apostas esportivas realizadas pela internet. Nos meios de comunicação existe uma enxurrada de publicidade, que usa jogadores e ex-jogadores de futebol como garotos-propaganda, com o claro objetivo de entrar na mente do povo brasileiro e passar a imagem de que apostar nesses sites (são mais de 400 em atividades no país) não é jogo de azar, mas sim de técnica e conhecimento sobre esportes. Sites de apostas patrocinam 19 dos 20 clubes da série A do campeonato brasileiro. Estima-se que o valor movimentado com recebimento e pagamento nos sites de apostas no Brasil gire na casa dos R$ 100 bilhões [10]. Se as negociações de jogadores, direitos de transmissão, construção de estádios, etc, já são um prato cheio para a lavagem de dinheiro, imaginem o que ocorre em sites de apostas hospedados em paraísos fiscais como Curaçao no Caribe?
A gerência de turno do Estado brasileiro apresentou no início de abril de 2023, no bojo do famigerado arcabouço fiscal capitaneado pelo ministro petista da fazenda Fernando Haddad, a proposta de taxar os sites de apostas online. Vale destacar que foi o ultra-reacionário general Eurico Gaspar Dutra quem proibiu, em 1946 quando ocupava a cadeira de presidente do Brasil, o mercado de jogos de azar sob o argumento de que essa prática era degradante para o ser humano. Pois caberá ao governo do petê legalizar a jogatina, inicialmente a virtual e quem sabe daqui a pouco os cassinos e bingos. Para o governo do oportunismo vale tudo, inclusive adoecer uma parcela da população no vício da jogatina, para juntar alguns vinténs e tentar fazer caixa para o cumprimento de algumas promessas realizadas durante a farsa eleitoral.
“E o bate-bola do meu coração?”[11]
Diante desse cenário de terra arrasada em que o dedo podre do capitalismo contaminou o esporte amado por bilhões de mulheres e homens mundo afora, o que cabe aos democratas e progressistas fazer? Abrir mão da paixão?
Canhoteiros
No futebol, assim como na vida, ser de direita é fácil, basta seguir a corrente. Mas será que no mundo do futebol existem somente jogadores reacionários e conservadores? No livro “Futbolistas de izquierdas” [12], o jornalista esportivo espanhol Quique Peinado traça o perfil de atletas profissionais que se levantaram e se levantam contra a oligarquia hipócrita que reina no futebol. Nesse artigo falaremos um pouco sobre alguns deles.
Doutor Sócrates
Uma grande referência como jogador, democrata e progressista é Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, também conhecido como Doutor Sócrates – formado em Medicina aos 24 anos pela USP. Liderou, juntamente com Wladimir e Casagrande, a chamada “Democracia Corintiana” que reivindicava a participação de todos, do roupeiro ao motorista passando pelos jogadores, nas decisões do clube de futebol do Parque São Jorge. Esse movimento, ao mesmo tempo levava para o gramado a luta popular pelo fim da ditadura militar fascista e por eleições diretas para presidente no Brasil. Sócrates aprendeu, pequeno ainda, o que era o regime de repressão imposto pelos gorilas de coturno, títeres do imperialismo ianque, ao ver seu pai Raimundo queimando boa parte dos livros que possuía.
Na Copa do Mundo de 1982, realizada na Espanha, foi o capitão do escrete brasileiro que se tornaria conhecido como a equipe que não ganhou, mas encantou. Na Copa do México de 1986, Sócrates entrou em campo com uma faixa na cabeça com os dizeres: “México sigue em pie”. Para além da solidariedade com o povo mexicano, castigado no ano anterior por um terremoto que matou 40.000 pessoas, a faixa era um protesto contra os absurdos que existem na humanidade [13] , como a falta de apoio do governo daquele país aos principais atingidos pela tragédia, ou seja, operários e camponeses [14].
Sócrates usava o futebol para fazer política. Sempre denunciou a corrupção na CBF e na FIFA, se posicionava contra a pobreza, a guerra e o imperialismo. Ainda em 2004, no primeiro mandato de Luiz Inácio, manifestou seu descontentamento com o governo do petê em entrevista à BBC Brasil: “Não temos necessariamente que dar um voto de confiança para o governo Lula. Podemos questionar a política econômica, por exemplo, que é idêntica à que sempre foi feita (…) O país continua nas mãos dos americanos.” [15]. Passados quase 20 anos a crítica do Doutor continua atual.
Em seus artigos publicados mostrou sua indignação com a realização da Copa da FIFA de 2014 no Brasil, principalmente os despejos de famílias pobres que viviam em área onde seriam construídos os estádios.
Dizia querer morrer num domingo e com o Corinthians campeão. Assim foi. Sócrates faleceu aos 57 anos, no dia 4 de dezembro de 2011.
Ángel Cappa
Jogou como volante central no modesto Olimpo da cidade de Bahía Blanca, Argentina. Após se aposentar prematuramente dos gramados, se formou em filosofia e psicopedagogia. Nesta época, seu país estava sob o jugo da ditadura militar e a Cappa não restou outra opção que a resistência política. Foi militante do grupo Peronismo de Base.
De acordo com o ex-jogador: “A Argentina viveu praticamente, desde que eu era pequeno (ele nasceu em 1946), sob golpes militares. Primeiramente se sente medo sobre tudo isso. Depois tomamos consciência de que os golpes militares sempre foram realizados para impor medidas econômicas que prejudiquem a classe trabalhadora. Dessa forma, depois do medo vem a fome e a repressão. Me lembro do primeiro golpe que vivi, em 1955 com a derrubada de Perón [16]. Os militares são os enviados dos grupos econômicos para impor suas medidas contra os trabalhadores e em favor dos grandes capitais e dos grandes empresários.”
Com a forte repressão da ditadura militar na Argentina, que resultou na prisão e morte de vários de seus companheiros, sua organização se dispersou. Cappa seguiu para o exílio na Espanha onde se reuniu com outros militantes argentinos realizando a campanha de boicote à Copa da FIFA de 1978. Se estabeleceu como treinador e comentarista de futebol, comandando como técnico principal ou assistente equipes como: (i) Barcelona, Tenerife, Real Madrid, Las Palmas, na Espanha; (ii) Seleção Argentina, Banfield, Racing Club, Gimnasia y Esgrima (Argentina); Peñarol (Uruguai), etc.
Sobre a situação que muitos atletas vivem no mundo do futebol, Cappa declara com lucidez: “Metem os jogadores numa armadilha. Fazem com que eles vivam a ilusão da ascensão social, quando na realidade não é assim. Tiram eles de sua classe social e os deixam no ar apartando-os da realidade. Não é que se esquecem de suas origens, mas sim que se distanciam delas. Assimilam os costumes, o modo de falar, os restaurantes, os perfumes, as roupas do opressor. Ficam deslocados, perdidos, por que jamais são admitidos nesta classe que os fazem crer que pertencem. As pessoas se aproximam deles pela fama e depois dos cinco minutos de fama ficam novamente no ar, não são nem da comunidade e nem da alta sociedade” [12].
Cristiano Lucarelli
Livorno foi a cidade que viu nascer o Partido Comunista Italiano (PCI) liderado por Antonio Gramsci em 21 de janeiro de 1921. Pouco mais de meio século depois nos subúrbios de Shangai, bairro operário da cidade, veio ao mundo um bambino, chamado Cristiano Lucarelli, que tinha como canção de ninar Bandiera Rossa (Bandeira Vermelha), hino dos comunistas italianos.
A história de Lucarelli e a Associazione Sportiva Livorno Calcio é talvez uma das mais bonitas do futebol contemporâneo. O Livorno esteve a maior parte de sua existência nas divisões inferiores do futebol italiano. Seus torcedores estão acostumados ao sofrimento. O pequeno Cristiano conduzido pelas mãos de seu babbo, Maurizio (militante do PCI e trabalhador do porto de Livorno), tinha nas arquibancadas do Estádio Armando Picchi sua segunda casa. Enquanto a maioria dos meninos de sua idade queriam as figurinhas dos jogadores do Inter de Milão ou da Juventus em suas coleções, os preferidos de Lucarelli eram os que defendiam a cor amaranto. “Somos livorneses e temos que torcer pelo Livorno Calcio. Os outros que sejam segundos times” dizia.
Ainda adolescente se converte em uma máquina de fazer gols. No entanto seu primeiro contrato, aos 17 anos, foi com o Cuoiopelli time da cidade de Santa Croce sull’Arno, província de Pisa, distante 50 km de Livorno. Quando contratou um agente para cuidar de sua carreira como jogador de futebol disse categoricamente: “Quero jogar no Livorno, esse é meu sonho de menino”. Sonho que o agente não atendeu. Assina contratos com Perugia, Cosenza e Padova e chega a seleção italiana sub-21, onde marcou oito gols em seus três primeiros jogos.
No dia 27 de março de 1997, os italianos enfrentaram a seleção da Moldávia no Estádio Armando Picchi. Lucarelli estava em casa, o cenário de seus sonhos infantis de torcedor amaranto. No setor norte do estádio estava a torcida organizada do Livorno, a mais radical de esquerda da Itália, muitos eram amigos de Cristiano, cujo sonho sempre foi dedicar um gol para eles. Toda vez que Lucarelli tocava a bola havia um murmúrio no estádio, era a expectativa de um gol. Até que finalmente saiu o gol. Na comemoração Lucarelli levantou a camisa da seleção e por baixo dela havia uma outra: branca, com o rosto do revolucionário argentino Che Guevara e com a frase nas cores de seu clube do coração: “O Livorno é uma fé e os seus torcedores seus profetas” [17]. No final do jogo estava pulando com a torcida que não parava de vibrar. Parte da Itália não gostou da manifestação política do atacante. Lucarelli só voltaria a jogar pela seleção em 2005, quando era artilheiro da série A do Campeonato Italiano.
Na partida seguinte que disputou pelo Padova, gritos de “Lucarelli, comunista, volta para Livorno”, “Não te queremos mais aqui” vinham da torcida organizada fascista do seu time. Até o final da temporada os insultos não cessaram. Depois do Padova, passou por Atalanta (já na série A do Campeonato Italiano), Valencia (Espanha), Lecce e Torino. Em 2003, foi emprestado ao Livorno, realizando seu sonho de criança. Para sua carreira, o empréstimo para um clube medíocre da Segunda Divisão era uma péssima opção. Não há caso como esse na história do futebol profissional. Lucarelli decidiu condicionar sua carreira ao desejo de defender seu Livorno. Sua decisão vai contra o habitual quando se torna um adulto: trocar os sonhos por dinheiro e obrigações.
Adota o número 99 na camisa, alusão ao ano de criação da Brigada Autônoma Livornesa, a torcida organizada mais vermelha da Itália. Na temporada 2003-2004, o Livorno consegue depois de 55 anos o ascenso à Primeira Divisão do Campeonato Italiano, com Lucarelli marcando 29 gols em 43 jogos. Seu contrato era co-propriedade do Torino e visando viabilizar sua contratação pelo seu time do coração baixou o valor do seu passe. Em resposta, o Torino ofereceu dois milhões de euros ao Livorno para recomprar os direitos do atacante e ao atleta um contrato multianual com salário de mais de meio milhão de euros por temporada. O acordo asseguraria o futuro econômico do atleta e de sua família. Mas o jogador rejeita a proposta e continua jogando na equipe amaranto. Lucarelli resumiu em uma frase sua decisão: “Outros jogadores compram Ferraris ou iates. Eu comprei a camisa do Livorno”.
Durante a temporada 2004-2005, Lucarelli comemorava seus gols no setor norte do Armando Picchi onde haviam faixas e bandeiras que denunciavam a demissão de operários de uma fábrica ou exigiam a libertação de algum ativista político preso. Cristiano sabe que cada celebração de gol com a torcida do Livorno é uma foto que irá ajudar a causa. Em três anos de Série A jogando pelo time amaranto, o atacante fez 72 gols. Outro feito importante foi a participação da equipe na Copa da UEFA na temporada 2006-2007.
Mas chegou um ponto em que a paixão de Lucarelli e o Livorno esgotou a ambas as partes. O atacante não conseguiu sustentar a situação e assinou com o Shaktar Donetsk a peso de ouro. Sua estadia na Ucrânia durou poucos meses. Em janeiro de 2008 estava de volta à Itália dessa vez no Parma.
Voltou ao Livorno no ano seguinte para tentar escrever um novo capítulo da sua novela. Mas a equipe foi rebaixada para a Série B. A sua despedida não poderia ser de outra forma: apaixonada. Na partida de 9 de maio de 2009 contra a Lazio foi substituído, mas levou consigo a braçadeira de capitão. De repente caminhou até o setor norte do Armando Picchi e lançou a braçadeira para os torcedores. A aliança entre Lucarelli e sua Brigada Autônoma estava selada, das arquibancadas se ouviam aplausos e a seguir a canção partigiana “Bella Ciao”[12].
Egil Olsen
Cresceu num bairro operário da cidade de Fredrikstad, na Noruega, o que lhe marcou politicamente e lhe imprimiu um sentimento de classe. Era chamado de Drillo, diminutivo de drible em inglês, devido sua habilidade e rapidez para driblar. Jogou em equipes norueguesas pouco conhecidas fora do país. Tinha grande potencial como jogador, vestiu por 16 vezes a camisa da seleção nacional, mas sua ideologia e seu aspecto revolucionários não agradavam ao treinador que não achava nenhuma graça naquele comunista.
Em 1973 foi fundado em Oslo o AKP [Partido Comunista dos Trabalhadores (Marxista-Leninista)] para se contrapor ao Partido Comunista da Noruega, revisionista e pró social-imperialismo soviético. O AKP reivindicava na época o pensamento Mao Tsetung. Nunca se soube quem eram os membros da organização, mas Egil Olsen é reconhecido como um deles. Depois de se aposentar como jogador, seguiu os preceitos do Partido em relação aos estudos, se formou pela Escola Norueguesa das Ciências do Esporte na qual se tornou professor em 1982. Fala fluentemente inglês, francês e alemão e é um atlas geográfico ambulante.
Como estudioso do futebol, Olsen incorporou ao esporte elementos científicos que seguem vigentes até hoje. Obteve seu doutorado em 1974 com a tese “Como marcar gols no futebol”, em que defende o sistema 4-5-1, do passe longo desde a zaga como forma de montar o ataque. De acordo com Olsen, com passes curtos e contínuos corre-se o risco de perder a bola em zonas perigosas do campo. Acredita que com uma defesa organizada a possibilidade de se levar gols é muito pequena.
Em 1990 foi contratado como técnico da seleção de futebol da Noruega. Conseguiu levar a equipe nórdica, cuja última participação em Copas do Mundo havia sido em 1938, ao torneio de 1994 realizado no USA. Quatro anos depois, na França, a seleção norueguesa voltou a participar do campeonato da FIFA e venceu a seleção brasileira na fase de grupos por 2 x 1. Após a partida, Olsen comentou: “Ganhamos essa partida porque a defesa do Brasil estava tão organizada como o cesto de lixo da minha casa”.
Ainda como treinador da seleção norueguesa, em 1995, usou um de seus três votos para indicar a jogadora de futebol Hege Riise como melhor do ano da FIFA. A premiação para as mulheres só foi instituída pela Federação Internacional de Futebol em 2001. Em 2010, assinou, juntamente com 99 personalidades norueguesas, um documento em solidariedade à causa do povo palestino em que se reivindicava um boicote cultural e acadêmico contra Israel.
Na temporada 1999-2000 quando foi treinador do Wimbledon [18], Olsen foi repreendido por um jornalista por defender excessivamente seu jogo rude e direto, o que poderia insinuar que ele era melhor que o técnico do Manchester United, Sir Alex Ferguson, conhecido militante do Partido Trabalhista Inglês. Para explicar porque fazia seu time jogar assim, disse sem meias palavras: “Não sou socialista. Eu sou comunista” [12].
Rachid Mekhloufi
Em 8 de maio de 1945, data oficial da derrota da horda nazista alemã na Europa, o povo da região de Sétif, na Argélia, tomou as ruas para celebrar. A derrota do fascismo alemão era o mote para derrotar o fascismo francês no país do norte da África em que 800.000 colonos gauleses oprimiam oito milhões de argelinos. Os militantes da Frente de Libertação Nacional (FLN) não perderam a oportunidade de marchar levantando bem alto a bandeira argelina exigindo o fim da invasão francesa. O exército francês respondeu os protestos matando 50 mil crianças, mulheres e homens argelinos. Um menino de apenas oito anos foi testemunha desse massacre.
Dez anos mais tarde, esse menino chamado Rachid Mekhloufi foi contratado pelo Saint-Étienne, equipe de futebol da região do Maciço Central da França. Dessa forma, ele fugia da Guerra de Independência de seu país em busca de um futuro melhor, mas mesmo assim não conseguiu esquecer os horrores do massacre de Sétif.
Se sagrou campeão francês de 1957 com o Saint-Étienne e neste mesmo ano jogou pela seleção militar francesa e ganhou o mundial militar de futebol na Argentina. Mas não era nada disso o que Mekhloufi queria. Não lhe interessava nem mesmo jogar a Copa do Mundo da FIFA de 1958, para a qual foi convocado, ao lado de Raymond Kopa e Just Fontaine. Na sua cabeça só martelava uma ideia: fazer alguma coisa por sua Argélia, algo mais que os 15% do seu salário que doava para ajudar as tropas da FLN (estima-se que quase todos os jogadores argelinos que atuavam na França nesta época faziam o mesmo). Foi então que Rachid Mekhloufi e outros 10 jogadores argelinos, da noite para o dia, simplesmente desapareceram.
A FLN elaborou um plano para mostrar aos franceses e ao mundo que até os jogadores de futebol profissional apoiavam a luta pela independência da Argélia. Criou-se assim a Seleção da Frente de Libertação Nacional. Os jogadores foram recrutados em solo francês por Mohamed Boumezrag, ex-jogador argelino que atuou na França e que estava a cargo de treinar a equipe revolucionária. Muitos jogadores rechaçaram a proposta. Foi uma aventura inédita na história do futebol: os jogadores saíram da França de trem ou automóveis rumo a Roma de onde seriam levados até a Tunísia. Mekhloufi chegou a Itália com outros dois jogadores, Mokhtar Arribi que jogava no Avignon e Abdelhamid Kermali do Olympique de Lyon, todos atacantes como ele, todos nascidos em Sétif.
Entre 1958 e 1962 a Seleção da FLN realizou jogos na Bulgária, China, Tchecoslováquia, Hungria, Iraque, Jordânia, Líbia, Marrocos, Vietnã do Norte, Polônia, Romênia, União Soviética e Iugoslávia. Na China os jogadores argelinos se encontraram com o primeiro-ministro Chou En-Lai [19]. A Seleção da FLN tinha um estilo de futebol alegre, muito parecido com o que apresentava a seleção de futebol do Brasil naqueles tempos.
Após sua aposentadoria como jogador, Rachid Mekhloufi treinou a seleção argelina sendo campeão dos Jogos do Mediterrâneo de 1975 e dos Jogos da África em 1978. Na Copa do Mundo da FIFA de 1982 venceu a Alemanha Ocidental por 2 a 1 e o Chile por 3 a 2. Foi uma campanha satisfatória, a seleção da Argélia conseguiu os mesmos 4 pontos que a Alemanha Ocidental e a Áustria não avançando à 2a fase (triangular) devido ao último critério de classificação, o saldo de gols.
No livro “Os condenados da terra”, o revolucionário da FLN Frantz Fanon, destaca: “A concepção capitalista do desporto é fundamentalmente diferente da que deveria existir num país subdesenvolvido. O político africano não se deve preocupar em formar desportistas, mas homens conscientes que, aliás, sejam desportistas. Se o desporto não se integra na vida nacional, isto é, na construção nacional, se se formam desportistas nacionais e não homens conscientes, depressa se verificará a ambição do desporto pelo profissionalismo e pelo comércio. O desporto não deve ser um jogo, uma distração para brindar a burguesia das cidades. A tarefa mais importante é compreender a todo o momento aquilo que se passa no país. Não devemos cultivar o excepcional, procurar o herói, outra forma de “leader”. É necessário elevar o povo, conscientizá-lo, enriquecê-lo,
distingui-lo, humanizá-lo” [20].
Para alguns Mekhloufi arruinou sua carreira como jogador profissional em troca de defender seu povo nos campos de futebol. Rachid se define como um jovem revolucionário que lutou pela independência de seu país. Segundo ele: “Na França, nós jogadores de futebol não podíamos falar de política, de forma que eu não fiz isso em público. Até que me juntei à Seleção da FNL. Muitos franceses e outras pessoas ao redor do mundo souberam do que ocorria na Argélia graças a seleção da FNL.” E continua: “Existem pessoas que dizem que fui ameaçado para me integrar à luta da FLN. Isso não é verdade. Qualquer menino de Sétif faria o mesmo que eu fiz” [12].
Do alto de seus 86 anos, a consciência do menino Rachid está tranquila.
Volker Ippig
A cidade de Hamburgo é a segunda maior da Alemanha, constitui-se em importante centro comercial e é conectada pelo rio Elba ao Mar do Norte. Nela está sediado o Hamburgo, time de futebol campeão da Champions League na temporada 1983 e que perdeu a Copa Intercontinental UEFA/CONMEBOL para o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense daquele ano. Mas a cidade portuária é sede de outro time de futebol, o St. Pauli, que apesar dos resultados modestos dentro de campo (disputou a Primeira Divisão em oito temporadas) é reconhecido por sua cultura social ligada ao campo progressista. Pois foi o “primo pobre” do futebol de Hamburgo que contratou, em 1981, o jovem goleiro Volker Ippig.
Ippig entrou em contato, quase imediatamente à sua chegada, com o movimento que estava agitando a vida do bairro operário de St. Pauli: os okupas – que transforma imóveis sem uso social em espaços para habitação coletiva e para o desenvolvimento de atividades culturais e comunitárias. Ele vivia e pensava o movimento integralmente. No começo dos anos 1980, a camisa marrom do FC St. Pauli se tornou o centro gravitacional em que orbitavam trabalhadores, punks, ativistas políticos e os fora do padrão da sociedade. Ele ia treinar de bicicleta ou de ônibus e era o jogador que melhor representava aquilo tudo. Entrava em campo com o punho levantado e a torcida o idolatrava.
A construção do perfil progressista do clube levou um tempo. Quem desempenhou o papel mais importante foram os torcedores. Em 1999, conseguiram mudar o nome do estádio da equipe, que se chamava Wilhelm Koch, presidente da agremiação de forma quase ininterrupta entre 1931 e 1969, depois de descobrirem que ele havia sido membro do partido nazista e espoliado vários judeus. A partir de então o estádio passou a se chamar Millerntorn Stadion com capacidade de aproximadamente 30.000 pessoas [21].
Ippig defendeu o gol do St. Pauli de 1981 a 1991, com alguns períodos de interrupção em que desenvolveu outras atividades. Em 1983 passou um ano trabalhando em uma creche de crianças com necessidades especiais. Construiu uma cabana na sua cidade natal onde passava os finais de semana e durante os dias de trabalho vivia na comunidade okupa de Haffenstrasse, em St. Pauli. Se alistou em uma brigada de trabalho voluntário na Nicarágua sob o comando da revolução sandinista ajudando a construir um hospital no país latino americano. Aos 29 anos uma grave lesão pôs fim a sua carreira de jogador. Vestiu 109 vezes a camisa da única equipe em que jogou como profissional.
O FC St. Pauli teve um dia o propósito de mudar o futebol profissional. Não conseguiu. Hoje tem uma torcida de esquerda, é um clube de esquerda. Mas nunca chegou a ser o que sonhou o goleiro cabeludo dos anos 80. Ippig assim define a atual St. Pauli de forma nostálgica: “Millerntorn foi um laboratório ao ar livre para o futebol alemão, a relação estreita entre jogadores, treinadores e a torcida foi um sucesso. Naqueles tempos tudo era real. Hoje é algo orquestrado, artificial. Só ficou o mito”,
Continua vivendo no bairro do seu time do coração. Mantém uma escola de goleiros e para ajudar a família (companheira e dois filhos) trabalha como um operário a mais no porto de Hamburgo. Ippig continua sendo o que sempre foi: um dos seus [12].
Ivan Ergic
A eclosão do conflito na ex-Iugoslávia fez com que Ergic, ainda menino, e sua família emigrassem para a Austrália. Em 1991, com 18 anos, teve seu primeiro contrato como jogador profissional de futebol no Perth Glory Football Clube. Jogou na Juventus de Turim, Itália, em 2000, se transferindo no mesmo ano para o FC Basel (Suiça) onde permaneceu por oito temporadas. Em 2004 foi internado em um hospital psiquiátrico para tratar uma depressão profunda. Isso impactou profundamente o mundo do futebol e várias pessoas se perguntavam: como pode um atleta de alto rendimento passar por isso?
Depois que se recuperou, Ergic deu uma entrevista em um programa da TV suiça em que falou do seu tratamento e de como a competitividade no futebol devora os jogadores, principalmente aqueles que demonstram seus sentimentos e saem do estereótipo do jogador machão. Para ele, essa competição puramente capitalista que se desenvolve no futebol de alto nível foi a responsável por sua depressão. O entrevistador perguntou se ele estava fazendo uma pequena crítica ao capitalismo, ao que Ergic respondeu: “Não. É uma crítica grande ao capitalismo. Devo dizer que uma das minhas grandes fontes de inspiração é Karl Marx, que escreveu que o capitalismo destruiria a natureza humana dando lugar à alienação absoluta.”
Em um dos artigos que publicou no jornal sérvio Politika, Ergic denunciou que o falso sonho do jogador de futebol substituiu o sonho americano: “O futebol atual serve para distrair e mostrar aos filhos das classes trabalhadoras que elas têm as mesmas oportunidades que os filhos das classes dominantes de se tornarem ricos e famosos. É a maneira mais pérfida de ser explorado, não só com um propósito ideológico, mas também como propaganda de um conto de fadas em que se pode fugir da miséria. Dessa forma, a indústria do futebol se beneficia daqueles que não podem ter o mais básico para viver. Esse conto de fadas serve para enganar crianças que vivem na pobreza e que nunca poderão ter acesso a educação necessária para se tornarem médicos, advogados ou banqueiros. E não se queixarão por isso”.
Atualmente Ergic tem se dedicado à poesia, se define como ex-jogador de futebol e pensador. Atende pelo apelido de “O Filósofo” [12].
Irmãs Döller e Irene Müller
Em 2007, Martin Graf, membro do ultradireitista partido da liberdade da Áustria e da organização fascista Fraternidade Olympia, chegou à presidência do FC Hellas Kagran, modesto clube da cidade de Viena. Ele injetou dinheiro no clube que estava à beira da falência e introduziu na diretoria do clube vários de seus correligionários. Em 2008, Graf foi nomeado para um alto cargo no parlamento austríaco o que acarretou grandes protestos dos setores democráticos do país. Dentre os manifestantes estavam três jogadoras do FG Hellas Kragan, as irmãs Lucia e Margarita Döller e Irene Müller. No dia seguinte foram demitidas da equipe [22].
Em solidariedade às jogadoras foi organizado um torneio de futebol antifascista que reuniu mais de 110 jogadores distribuídos em 15 equipes que representavam sindicatos, movimentos democráticos e populares e as comunidades palestinas, curdas e turcas da Áustria. Em seu discurso durante o evento, Margarita Döller destacou a importância da organização para se travar uma luta ativa contra o fascismo [23].
Que a “zona do agrião” vire um campo de batalha
O fim do futebol mercadoria só será possível com a derrocada do sistema de exploração do homem pelo homem. Muitas mulheres e homens tem trabalhado incessantemente por isso. Tornar a “zona do agrião” em mais uma frente do nosso campo de batalha e lutarmos como o ponta de lança Umbabarauma [24], sabendo que “fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão” [25], é um caminho a se percorrer.
Parafraseando o Camarada Stalin: Os cartolas vem e vão, os magnatas nascem e morrem, mas o Futebol permanece. Apenas o Futebol, esporte do povo, é eterno.
[1] Noel Rosa e Vadico, Conversa de botequim (1935). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ghOfAxJ0qnU
[2] Aldir Blanc e João Bosco, De frente para o crime (1975). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IBPIxnG6sjM
[6] http://brasilmfp.blogspot.com/2023/01/aviolencia-contra-as-mulheres-como.html
[8] https://ibccrim.org.br/noticias/exibir/6330/
[9] https://extra.globo.com/esporte/nove-anos-apos-pf-acusar-msi-corinthians-de-lavarem-dinheiro-de-magnata-russo-ninguem-foi-condenado-pela-justica-12959684.html
[10] https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/03/14/sites-de-apostas-regulacao-deve-alavancar-mercado-bilionario-e-setor-diz-nao-se-importar-com-imposto.ghtml
[11] Pixinguinha, Benedito Lacerda e Nelson ângelo. Um a Zero (1958). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qpqcwisNJ8w
[12] PEINADO, Q. Futbolistas de izquierdas. Madrid, España: Léeme Libros, 2013. (Existe uma tradução do livro em português com o título “Futebol à esquerda”).
[13] https://setentaequatro.pt/ensaio/este-campeonato-do-mundo-precisa-do-espirito-de-socrates
[14] http://mexicanadesociologia.unam.mx/index.php/v80numesp/293-v80nea1
[15] https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2004/11/041124_socratesrc
[16] Político argentino que ocupou a presidência do país em três ocasiões (1946 a 1952; 1952 a 1955; e 1973 a 1974).
[17] https://www.youtube.com/watch?v=QHZ5gyXVwSU
[18] https://premierleaguebrasil.com.br/afc-wimbledon-mk-dons/
[19] Saldanha, R. M., & Carvalho, V. (2022). Futebol e identidade na Argélia: a história da seleção da Frente de Libertação Nacional (1958-1962). FuLiA/UFMG, 6(2), 141–153. https://doi.org/10.35699/2526-4494.2021.25762
[20] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa, Ed. Ulisseia, 1961.
[21] https://www.ofutebologo.com.br/2020/05/st-pauli-1977-78-bundesliga.html
[22] https://www.derstandard.at/story/1225358948554/der-blaue-praesident-des-fc-hellas-kagran
[23] https://www.slp.at/artikel/erfolgreiche-gro%C3%9Fveranstaltungen-gegen-rassismus-und-krise-2636
[24] Jorge Ben Jor, Ponta de Lança Africano – Umbabarauma. (1976). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lp9uZKy6H7Y
[25] Gilberto Gil, Meio de Campo (1973). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=O3TogiCPKDw