Quem não for cortador de águas que levante o dedo…

Sobre o filme Dois dias, uma noite
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Quem não for cortador de águas que levante o dedo…

Sobre o filme Dois dias, uma noite

para Wenna A.

I

Sandra Billat tem contra si as amarras do tempo. Dois dias, uma noite é o de que ela dispõe para reverter o curso das horas, para fazer girar para trás os humores que amoldam a decisão de seus colegas de trabalho. Mas não apenas. Sandra está a um redemoinho de afetos, de urgências, de demandas; seus passos são solavancos nos que tropeça, equilibra-se, cai de joelhos, levanta com o auxílio dos punhos, torna a cair agora com o rosto lanhado, Sandra se ergue de pronto e vai, não há tempo a perder quando parece que tudo conspira em contra; na cabeça a gira dos ponteiros, ela tem de continuar, tem de cruzar o próximo obstáculo, saltar do ônibus em movimento, estreitar-se pelo vão das portas do trem, ela cai outra vez, limpa o rosto com a palma da mão, levanta como se não sentisse o joelho arranhado, e segue até a curva, até a esquina, até a dobra do quarteirão; Sandra faz que gira e é como se fora o horizonte largo o que se aproxima quando, em verdade, o que lhe surge é o beco. Um beco de razões estapafúrdias, o muro de pedras e farpas nos que são todos ‘cortadores de água’; e eis que lhe seria o salto um desafio, Sandra poderia tentar o voo, um par de asas à fantasia quando, de fato, o que tem às mãos é o pacote de remédios. Pacote de que é usuária contumaz. Ou que vinha sendo, mas Sandra tem agora o pacote. São as drágeas que lhe servem ao equilíbrio da performance demandada a cada novo dia. Sandra é paciente no que os dedos cumprem a tarefa de sacar do invólucro o comprimido, dois, quatro, seis, dez, uma dúzia deles, até que esteja de posse de todos de uma só vez e sem economia de modos; a bula e o receituário já não lhe servem de guia cartográfico, de medida das coisas, Sandra Billat escancara a boca e os arremessa para dentro. Será como num arranjo de alternativas, o clamor do gesto? Até quando isto?

2

Sandra Billat, a personagem do filme dos irmãos Dardenne, acabara de voltar de uma temporada a uma clínica de repouso e recuperação. Seu corpo fora o terminal de resposta da crescente demanda de produção na empresa em que trabalha. Signos inequívocos do tempo no que a hiper exploração das relações de trabalho atinge dimensões estratosféricas. Espremido ao tanto dos quefazeres, o corpo de Sandra foi sendo contido, enregelado, destituído de viço, tornado frio distante opaco, como se, à revelia, tivesse sido costurado nas bordas e pregas, desterrado do mundo, deprimido a minguar para dentro. 

Sandra, então, sofrerá uma primeira queda, profunda desmedida nadificadora; fora interditada, levada aos cuidados médicos, intoxicada até às raias da dependência, todavia agora ousara se erguer, enchera-se de coragem, de crença, de desafios; soergueu-se dos vazios de que estivera preenchida e, se diz refeita ou quase. Que não haja um escape fácil, todos sabemos, ela sabe, e quando se apronta para retornar à empresa, não há mais trabalho, a porta está fechada, Sandra Billat está presa do lado de fora; fora descartada numa decisão referendada, em votos, pela equipe de colegas com os quais dividia as tarefas cotidianas. É que em sua ausência, o coordenador de produção Jean-Marc se pôs a fazer cálculos, medições, testagens, notações diárias na planilha de produção. Ao final de tanto, chegara à conclusão de que Sandra poderia ser dispensada; bastava para isto que os colegas se empenhassem mais, que os colegas ‘ocupassem’ o tempo deixado vago pelo adoecimento de Sandra. Em troca deste ‘esforço de cooperação conjunta’, os colaboradores seriam brindados com um abono temporário. Nos termos da diretoria, são os ares do tempo, o tal do mercado, afinal não há como competir em condição de igualdade com os fornecedores chineses, e é preciso urgentemente aumentar o plano de metas, operar o receituário de enxugamento de gastos de acordo com as prescrições da ‘engenharia funcional’ que atende ao interesse de ‘todos’

Noutros termos, lá onde havia 17 empregados, fazer que caibam tão somente 16, sobrelevando em três horas diárias o tempo de trabalho e oferecendo como ‘abono’ certa quantia acrescida aos vencimentos.  Noves fora zero, será Sandra ou o abono, será ela ou cada um de vocês! – talvez que tenha sido nestas palavras que Jean-Marc, o obstinado coordenador de produção, barganhara adesão. Talvez que fizera uso de outros argumentos, a ameaça direta ou velada. Uma política do medo espalhada sob a forma dos boatos que o vento costuma fazer o favor de espalhar. Talvez que Jean-Marc, estafeta dos interesses da empresa, tenha manipulado a cada um dos colegas de Sandra lhes tocando fundo na ferida exposta de suas vulnerabilidades. Afinal, sabe-se, sabemos, eles todos sabem, que o salário que cada um deles troca por sua dedicação de colaborador mal e mal lhes fecha a conta do mês – talvez porque o final do mês é mais longe do que o final do mundo; talvez porque os direitos básicos e fundamentais tenham sido afetados pela privatização de setores estratégicos como o energético, a previdência social entregue à voracidade do saqueio privatista, o pacote de cortes nos gastos sociais, etc, e que a resultante de tudo sejam as tarifas exorbitantes e pela hora da morte; talvez porque os imigrantes sejam os responsáveis, ou talvez porque o Estado seja pesadão e lhes falta a varredura neoliberal que nunca será bastante e suficiente, e porque e porque e porque, enquanto é o mundo do trabalho o que se desfolha diante de todos.

Desnecessário dizer que, sob a pressão da barganha, coube a decisão de enxugamento do quadro funcional. Sandra está demissionária. Ao se preparar para retornar à empresa na sexta feira, será comunicada da decisão; a enquete, os votos, o caldo grosso das horas e humores que temperou a decisão de cada um. Juliette, a sua amiga, é quem lhe antecipa os resultados. Mas não apenas. Juliette a convence de que se possa reverter o jogo, fazer girar ao revés os ponteiros decididos, os veredictos de martelo batido. Quem sabe se apelando ao empresário. Alega-se que o voto dos colegas se dera sob a brasa viva das ameaças. Faz-se alusão aos escândalos de imprensa. Dumont, o empresário estica a corda. Aceita que uma nova votação seja realizada na 2ª feira, agora sem a presença de Jean-Marc, mas também sem a presença de Sandra. Dumont simula e dissimula. Dissimula no que faz que não pactua com Jean-Marc, seu capataz de primeira hora. Dumont simula ao oferecer a Sandra um desafio que lhe esteja ao alcance das mãos. Como se lhe fora de um bastão a pegar mais a frente como quando a uma corrida de obstáculos. Tarefa coletiva comunal na que de mão a mão se fecha a trama do fazer. Mas o que não fala Dumont é que em seu jogo, Sandra está sozinha, solta, sem prumo. Condenada ao cárcere desta solidão povoada na que se esbalda o charco lucrativo das apostas de Dumont, Jean-Marc e companhia.

Sandra terá dois dias e uma noite para a façanha, para vergar o arco de Ulisses, para uma gira de testagem no que serão os seus limites postos a prova: a ver se ela aguenta, a ver se ela não quebra, se ela não cai de vez, a ver se ela não se enterra, a ver o quanto que ela insistirá apesar da exposição a que se presta diante dos olhos de todos. Diante dos interesses de cada um. 

Será que valerá o esforço? Sandra pondera. Será que serei capaz deste passe de mágica? Sandra Billat reflete. Sabemos, ela sabe, que não lhe cabe alternativa. Que será o desalojo, o aluguel a vencer, o distrato por inadimplência, o fiador interpelado, a denúncia vazia. Ela sabe, ficamos sabendo, que será o Conselho Tutelar que lhe arrancará as crianças numa manhã interminável; Sandra sabe que ela não será capaz de honrar com os cuidados, com a alimentação, com o material escolar, com as notas estampadas no boletim a se multiplicar em acusações de desleixo, desatenção, os olhares do mundo em reprimenda – como se fossem peças em contra a assomar ao calhamaço jurídico de que Sandra Billat seria réu. Não há alternativa. Sandra sabe, parece saber. É que Sandra traz consigo as escaras sublinhadas, em alto relevo, do fogo morto; ela sabe que a caldeira das horas não é reversível ao espontaneísmo do homem-solitário que de duas, uma: ou se prosta em esperar o milagre e a redenção; ou se engasta ao espontaneísmo dos gestos soltos, dos voos curtíssimos de andorinha, dos esforços da obstinação individual. E nada é o que salva. E nada é o que compõe. E nada o que precipita em transformação. Pois que Sandra Billat sabe que nenhuma das duas alternativas fecham a conta do erro. Tão somente que são as bandas complementares do continuísmo. Entretanto, e ainda assim, Sandra irá bater de porta em porta, de casa em casa.

3

Seremos todos uns cortadores de água? Será que se está deixado à própria sorte, lançado ao ingrato desta missão? Seremos, todos, àqueles que chegam quando do tórrido das horas, na que se está em agonia, com a missão de cortar o fornecimento de água[2]? Seremos cortadores de água indiferentes, obstinados, indiferentes? E não importa que se tenha sede, que se esteja extenuado. E não importa que se se desespere aos prantos, aos gritos, à saraivada dos atropelos, nada o que desmontará a consumação do serviço, o protocolo dos fazimentos?! Será a isto que se está entregue, mãos e rostos atados, encarnados à vergonha desta empreitada? Como se tudo se justificasse porque se tem às mãos a papeleta de verificação, o alicate que engatilha, o lacre que encerra, a legitimidade do fazer, a bonificação por tarefa executada? 

Sandra telefona para Kader – que não vai estar na cidade durante o final de semana. Sandra não pode esperar. Fora Robert quem lhe passara o número do celular do colega. Sandra tem à ponta da língua a ladainha pronta, o verso trágico, o relato-corrimento do que lhe afronta. Kader diz que não é ele quem decide. Que talvez se abstenha, que se recuse a votar. Sandra vai ao encontro de Mirelle. Ao interfone, seu companheiro comunica que ela não está. Mas que não demora. Sandra Billat a espera, e a encontra. Sandra retoma o refrão, sôfrega, mas decidida. Mirelle conta que gostaria de ajudar, mas que não pode. Que não fora ela quem inventara o game, que estava há pouco divorciada e que o abono lhe seria a possibilidade do recomeço de tudo. Sandra segue.

Nadine como destino. Acontece que Nadine orientara a sua filha a contar de sua ausência quando do toque ao interfone. Sandra a escuta por trás da voz da filha. Não há o que fazer senão seguir, Sandra segue. Anne a recebe na porta de sua casa. Evitando que Sandra se repita, Anne adianta a Sandra que já sabe do que se trata, que Nadine a telefonara. Parece que há uma rede que se estica em defesa do que não se pode perder. Parece que há uma colcha de retalhos costurada desde as fímbrias para que a costura custe o que custar e não ceda. É que o abono caíra como uma luva em meio a tudo o que não se pode completar: uma vida, a dignidade do comezinho, do que seria simples e objetivo e básico, mas que se lhe toma a todos em saqueio, a rapinagem de Dumont, o financista. Parece que Dumont, o empresário, acertara na mosca o seu festim de ensaio, o seu estande de tiros no que tudo é farsesco. Parece que Dumont se travestira de estratego a preparar divisões em avanço e retaguarda afim de murar as saídas de um jogo sem final. 

Anne tem reformas a fazer na casa para conter os riscos de que o telhado ceda. Mais tarde recuará da decisão. Não sem antes entrar em briga de tapas e empurrões com o marido que lhe impõe o rechaço ao pleito de Sandra Billat. Mas qual? Anne se dirá liberta. Sandra terá um alento em meio a travessia. E será Julien, e será Timo, e será Icham – este a varar, clandestino, de bico em bico, as horas que lhe restam do dia afim de fechar o orçamento. Icham sabe que não pode deixar pistas, que não pode dar margem a investigações. Que a polícia não tarda ao encalço. Que ela sempre chega, que ela nunca se vai, que ela se presta em ser uma peça estratégica a esta estância contínua, a este estado permanente de exceção a tragar, a sorver para dentro, a invaginar em retenções, e a expelir em catapultas o que estiver suficientemente gasto e maltrapilho. Icham é estrangeiro, sem papéis talvez, ou com papéis forjados para uso diário. Mas, de certa forma, Icham é Julien, que é Timo, que é Icham – como num arco roto que se encerra numa espécie de jogo de azar, de cartas viciadas, mal ajambradas como numa roleta com destinação prévia. 

É que todos, ou quase que todos, se multiplicam, se dividem, se distribuem em tantas partes para fazer caber no tampo de um dia um cardápio variado de afazeres e de bicos e de biscates. Seja na escolinha de futebol do bairro, seja na oficina ao fundo do quintal, ou na quitanda da esquina. Seja montado a uma bicicleta sem dono com uma caixa enorme e quadrada amarrada às costas destecendo um bailado agônico de pernas entre carros e transeuntes. Seja nos acertos ao ilegalismo como se se fizesse girar um plantel de tormentas e desafogos a ver o quanto que dura até que a batida dos homens da lei e da ordem lhes chegue com seu repertório de exumações. E será a pancada, o empurrão, o soco na cara, o xingamento, o um contra o outro, o cada um por si, o engalfinhar de fragilidades, o cerzir de promessas de compromissos que não duram. Que tardam. Que não resolvem.

G1 - Estreia: 'Dois dias, uma noite' é retrato preciso do trabalho  contemporâneo - notícias em Cinema

Mas Sandra não desiste, ela é forte, é feita de pedra e de poeira, de poesia concreta. Tem às mãos o pacote de comprimidos. Talvez que fosse mais fácil tomá-los uma outra vez, arremessar-se da janela, recomeçar o périplo dos corredores, a fornalha das luminárias brancas, o contorcer das ressacas e abstinências. Mas qual? Até quando que isto? E para onde? Sandra Billat é forte. Conhece em si os trâmites da recusa. Sabe que não tardará a segunda feira, o novo escrutínio, e deste o que será é o empate que nada resolve. Sandra Billat foi tentativa e erro. Mas não esteve parada, catatônica, à mercê das alopatias de toda ordem. 

Sandra está despedida. Entre os abraços dos companheiros e a retirada dos apetrechos no guarda-roupas, será a voz de Dumont a lhe chamar em reunião. É que Dumont, o empresário, se mostrará em peles de cordeiro, um boníssimo burguês, cordial a ver navios e a plantar as batatas do tráfico de ilusões, ele interpelará a Sandra. Não mais se trata de velha quadra, da disjuntiva de ainda pouco: ou Sandra ou o abono, ou ela ou cada um de vocês. Dumont propõe a ela que ela fique. Não será demitida. Basta que ela escolha alguém para tomar a sua vez; basta que ela quebre o protocolo e que diga o que quer, que alguém/algum contrato que não seja renovado. À revelia de tudo. Em contraprova do que, há pouco fora decidido. Agora é assim, talvez tenha dito Dumont a Sandra Billat, agora é assim que se fará, agora é a sua voz a do comando, talvez Dumont tenha exercido o seu ofício de simulador, é que Dumont está lhe dizendo em alto e bom som que agora será ela quem decide, que é ela quem tem às mãos o martelo para ser batido nalguma cabeça; talvez Dumont esteja dizendo que a partir de então e para frente: será Sandra por um lado, e um qualquer pelo outro a despencar em profusão, hoje um, amanhã mais um, dezesseis, quinze, catorze, e que será Sandra quem decidirá quantas novas horas serão acrescidas ao turno diário. Talvez que Dumont esteja sugerindo a Sandra Billat um abono permanente em contraposição aos abonos que serão como acenos e assopros que o vento traz, que o vento leva. Dumont estica a corta e a repuxa. Dumont simula e dissimula. Sandra lhe é uma peça funcional no seu joguete calculado. E que Sandra terá a faca e o queijo. E que Sandra poderá enfim se assentar em luxo e calmaria. Dumont estica a corda até que Sandra a segure.

Acontece que Sandra é forte, franco belga operária trabalhadora de sol a sol. De tanto atravessar caminhos e cair e levantar, Sandra aprendeu a sorte dos nós górdios, dos saltos e dos giros de meia banda, de perna capoeira. Talvez que Dumont não esteja à vontade sob espinhos do abraço de cactos que Sandra lhe preparou, sorrateira. 

André Queiroz – Escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF) 


[1]  O filme Deux jours, une nuit (Dois dias, uma noite) foi dirigido, roteirizado e produzido por Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne, em uma coprodução belga-francesa, e lançado em 2014. O filme se encontra disponível no Streaming MUBI.

[2]  São palavras de Marguerite Duras: “Eram pessoas que não tinham condições de pagar suas contas de gás, eletricidade e água. Viviam numa grande pobreza. E, um dia, chegou um homem para cortar a água na estação onde viviam. Viu a mulher, silenciosa. O marido não estava em casa. A mulher um pouco retardada com uma criança de quatro anos e um bebê de um ano e meio. O empregado era um homem aparentemente como qualquer homem. Esse homem, denominei-o o Cortador de água. Ele viu que era verão. Sabia que era um verão muito quente porque o vivia. Viu a criança de um ano e meio. Havia recebido ordem de cortar a água, foi o que fez. Respeitou o seu emprego do tempo: cortou a água. Deixou a mulher sem água para dar banho nas crianças, para lhes dar de beber”. Cf. DURAS, M. “O Cortador de água”. IN: A VIDA MATERIAL. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989. (p.90)

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