Em 25 de janeiro de 1835, uma multidão de centenas de negros escravos (cerca de 600 a 700) realizou em Salvador (BA) o maior levante urbano antiescravismo da história do Brasil: a Rebelião dos Malês. A palavra deriva de “imalê”, que significa muçulmano na língua africana iorubá. “Imã” é sacerdote/guia espiritual, em árabe.
Os escravos muçulmanos da Bahia vieram principalmente do Benin, África. O Islã foi levado ao Benin pelos árabes hauçás. Os hauçás/haussás, iorubás, jejes, mahis e mandingas são os povos com os quais a etnia nagô tem vínculo.
Todos os rebelados da Bahia eram islâmicos e vários tinham conhecimentos matemáticos e sabiam ler e escrever em árabe, ao contrário de seus patrões, cuja maioria era analfabeta.
A luta incomparável
“Àquela época, já saltava aos olhos a grande quantidade de revoltas e rebeliões praticadas pela população escrava e pela plebe livre, mas de todas nenhuma é comparável à dos Malês, sem dúvidas o mais sério levante urbano de escravos ocorrido no Brasil, que teve como palco as ruas e vielas de Salvador”, informam o professor e procurador de Justiça do Ministério Público baiano Rômulo de Andrade Moreira (artigo publicado no site Conjur, em janeiro 2023 Revolta dos Malês: 70 escravizados foram mortos pelo governo) e o livro Bahia de Todos os Negros – As rebeliões escravas do século XIX, de Fernando Granato.
Dia de festa dos brancos, dia de luta dos pretos
Conforme Rômulo e Granato, “a Revolta dos Malês foi programada meticulosamente, com muita antecedência, para acontecer no amanhecer do domingo, 25 de janeiro, Dia de Nossa Senhora da Guia, data em que a cidade de Salvador estaria em festa e, portanto, os escravos ficariam mais livres da vigilância de seus senhores, e coincidia também com o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos praticantes do Islã, como eram os africanos malês”.
O movimento, por um fato imprevisto, foi precipitado para o início da madrugada do domingo, portanto entre 24 e 25, surpreendendo seus líderes, o que facilitou a repressão policial e fez com que os revoltosos não conseguissem libertar da cadeia um importante líder: o alufá Pacífico Licutan.
Antes de serem derrotados, no entanto, os malês lutaram bravamente contra as forças da Província travando batalhas na Praça Tomé de Souza (ao lado do Elevador Lacerda), na Praça Castro Alves, Terreiro de Jesus, Largo do Pelourinho, Baixa do Sapateiro, entre outros locais, até que, na localidade de Água de Meninos (área portuária de Salvador), quando os insurgentes tentavam fugir para o Recôncavo, ocorreu a última e a mais sangrenta batalha.
Cadê o carrasco? Ninguém se apresentou
Apesar de a rebelião ter sido sufocada em curto período, as classes dominantes escravocratas também tiveram seus fracassos.
O primeiro deles foi vexatório e significativo da solidariedade aos negros: não houve ninguém que quisesse matar os rebeldes nas forcas a serem inauguradas. Assim os brancos tiveram que fuzilar, o que resultou em menos sofrimento aos presos.
Contam Rômulo e Granato: “A cerimônia de execução lembrava as execuções do Santo Ofício, na Inquisição, durante a Idade Média. Algemados, os condenados rumaram pelas ruas num cortejo silencioso. No local destinado ao sacrifício, forcas novas, feitas especialmente para a punição daqueles rebeldes, não puderam ser usadas porque não houve candidato ao cargo de carrasco. Sendo assim, por determinação do presidente da província, foram fuzilados e em seguida postos numa cova coletiva.”
Organização da Boa Morte: alforrias e dignidade
Outro fracasso das classes dominantes foi que, ao reprimir a luta dos Malês, fez surgir e crescer um grupo de mulheres negras, que se organizaram com eficiência para obter a liberdade de muitíssimos escravos (alforrias) e para financiar sepultamentos dignos aos escravizados, como nunca houve antes.
O grupo resiste até a atualidade. Em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, existe até hoje a Irmandade da Boa Morte. Dizem Rômulo e Granato que é uma “instituição de mulheres negras cujo embrião se deu na Igreja da Barroquinha, na cidade de Salvador e (muito provavelmente) deslocou-se de lá em função da forte repressão aos africanos estabelecida depois da Revolta dos Malês”.
A Irmandade da Boa Morte, “conhecida como uma das primeiras instituições representantes do feminismo negro no Brasil, firmou-se desde o início como força de resistência ao escravismo, servindo, desde seus primórdios, como apoio aos injustiçados, fornecendo empréstimos para obtenção de alforrias, além de providenciar funerais dignos à sua gente, daí o nome ‘boa morte'”.
Uma jihad viva
A palavra jihad pode ser traduzida como guerra santa/divina, mas também como energia de luta e combatividade. Forças que o povo baiano possui de sobra, como observa o historiador João José Reis, da universidade UFBA, autor do livro Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835.
Elediz que a insurreição deixou um legado importante que perdura até agora, até em detalhes.
São exemplos o hábito de usar roupas brancas às sextas-feiras; os abadás/túnicas; os turbantes das baianas do acarajé e o famoso arroz de hauçá.
Paralelo a isso, o sentimento de ajuda mútua, aliança e solidariedade tornou-se algo intenso na Bahia. Também legado do episódio.
Explica o antropólogo Juarez Malta Sobreira, da Universidade Fed. Rural de Pernambuco (UFRPE) que na África Ocidental, diversos reinos viviam em guerra no Califado de Sokoto, um Estado do Islã fundado em 1809 pelo califa Usman Dan Fodio e que ocupou parte do norte da atual Nigéria. Inimigos na África, os prisioneiros de guerra da jihad de Sokoto viraram aliados em solo baiano.
“Como eles pertenciam a diferentes etnias, o Islã proporcionou a esses muçulmanos um sentimento de fraternidade. Tornou-se, portanto, um elemento civilizatório que transformou heterogeneidade étnica em homogeneidade religiosa.”
SC é o maior em injúria
Santa Catarina foi o estado brasileiro que mais registrou casos de injúria racial em 2023. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, o estado contabilizou 2.280 casos no ano retrasado, uma média de 6,2 registros por dia. O racismo e injúria racial aumentaram 51,7% em SC em 2023.
Talvez a injúria mais “antiga” publicada no Estado tenha sido a cometida, em 1951, pelo historiador Oswaldo Rodrigues Cabral contra a professora e jornalista Antonieta de Barros, ao definir seus textos na imprensa como “intriga barata de senzala”.
Antonieta rebateu de bate-pronto, num jornal, comparando o preconceito de Cabral à Alemanha nazista e aos USA.
Ela, nascida em 1901 e criadora do Dia do Professor (15 de Outubro) e de um Curso de Alfabetização gratuito em sua casa para alunos carentes, teve seu nome inscrito no Livro de Aço dos Herois e Heroinas Nacionais em 2023, mesmo ano do recorde catarinense de injúria.
Entre as pessoas ofendidas em 2023 esteve justamente uma professora, Naida Marques, da escola estadual Henrique Stodieck, de Florianópolis, que foi chamada de “macaca (que dá aulas) de inglês” por uma outra professora, branca.