Um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produzido em 2005 investigou profundamente as origens e ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na tentativa clara de estabelecer uma base para a perseguição ideológica e política contra a organização. O conteúdo do relatório é todo marcado pela classificação e perseguição ideológica anticomunista ao movimento, com referências ao “socialismo cientifico” e “revolucionários proletários” em conotação negativa. O relatório deixa claro ainda a conivência do governo, admitida pela própria organização, com a repressão à luta pela terra. Pelo documento, não é possível saber se ele foi produzido com informações abertas ou por meio de agentes de espionagem infiltrados.
Acessado pela Lei de Acesso à Informação e divulgado pelo jornal monopolista Folha de São Paulo, o relatório conta com 32 páginas e foi produzido em setembro de 2005, mês em que a agência havia sido passada ao comando do militar reacionário Márcio Paulo Buzanelli. Décadas antes, o oficial havia sido do órgão de espionagem do regime militar, o Serviço Nacional de Inteligência (SNI).
O conteúdo ideológico do documento persecutório é claro. Em uma dos trechos, o relatório aponta que “mesmo que publicamente não assuma ou admita, tem e acredita no socialismo científico, inspirado nas teorias de Marx e Engels, desenvolvidas por Lênin e outros revolucionários proletários, como referência filosófica para superar o capitalismo”. Em outros, o trecho analisa toda a estrutura interna de funcionamento do MST, vinculando-a com a “concepção leninista de partido”, o “Partido Comunista (PC)” e outros aspectos ideológicos.
‘O problema é a questão agrária’
Esse recém-revelado relatório da Abin faz parte de um conjunto de ações do velho Estado brasileiro no âmbito da repressão, por diversos meios, à luta pela terra no País como um todo. Um ano antes da produção do relatório, o policial federal e ex-chefe da Abin, Paulo Lima e Silva, já havia admitido a prática da agência repressiva de acompanhar de perto a luta pela terra como um todo. Em entrevista à Folha de São Paulo, o agente afirmou que o “problema” não era o MST, mas que “o problema é a questão agrária”.
Não à toa, a política de repressão, seja por meio das operações policiais em acampamentos, repressão a protestos, prisões de lideranças ou na espionagem, foi mantida e aprofundada governo após governo. No fundo, é uma política de Estado.
Repressão independe de governo
Antes do relatório produzido sob a gestão de Lula, o presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) já havia usado serviços de espionagem contra a luta pela terra, conforme revelou o The Intercept Brasil. As espionagens foram feitas entre 1995 e 1999 por meio da Subsecretaria de Assuntos Estratégicos, sucessora do SNI e antecessora da Abin.
A repressão de FHC foi destacada também no relatório da Abin, em trecho que a agência destacou que, para o MST, o ex-presidente “tratava os movimentos sociais como inimigo de classe e adotava a estratégia dentro da concepção de guerra da ‘baixa intensidade’, visando destruí-los politicamente; empregava como tática o uso intensivo da mídia para desmoralizá-los; aplicava a repressão da polícia, por intermédio de órgãos de inteligência; e inviabilizava os assentamentos por meio da asfixia de recursos econômicos; criava entulhos autoritários para criminalizar a reforma agrária, e desmobilizava a luta e desgastava os dirigentes do MST”.
Espionagem e violência
Justamente por tratar-se de política de Estado voltada a manter o sistema latifundiário no País, a repressão foi continuada sob Luiz Inácio. A manutenção foi tão clara que mesmo o MST, segundo o relatório da Abin, entendia que, se as ocupações crescessem, “o governo […] acionaria o aparelho do Estado por meio do Judiciário, da PF, da Abin, e utilizaria a Lei para manter a ordem pública”, bem como “não acreditava que o governo do presidente Luís (sic.) Inácio Lula da Silva tinha sepultado a ideia de ameaçar o movimento com repressão e violência”.
E não só o recém-divulgado relatório comprova isso. Em 2009, o jornal monopolista Folha de São Paulo divulgou que a Abin contratava empresas privadas para espionar, dentre diversas entidades, o MST, tudo com conivência do governo. Dois anos antes, o governo havia lançado também a “Operação Paz no Campo”, marcada pelo assassinato sistemático, torturas, perseguições e prisões contra camponeses em luta pela terra, com destaque ao caso da Fazenda Forkilha, onde mais de 400 policiais militares torturaram e prenderam cerca de 200 camponeses.
Hoje, novamente no governo, e em cenário muito mais agudo da luta pela terra no País, a prática de Luiz Inácio não deu sinais de mudanças. O seu primeiro ano e um mês de governo foram marcados por crimes brutais cometidos por latifundiários, principalmente aqueles de extrema-direita, bandos pistoleiros e policiais militares contra camponeses e indígenas, como a tortura e o assassinato de dois camponeses na Área Tiago Campin dos Santos, em Rondônia, logo em janeiro de 2023, e o ataque à indígenas Pataxó na Bahia nos últimos dias. Nenhum deles foi punido de forma significativa.