Relatos de Juan Nadies (7)

“Julio Reibaldi, meu pai, oficial de inteligência do exército argentino, manejava informações de sequestro e desaparecimento de pessoas em toda América Latina...”

Relatos de Juan Nadies (7)

“Julio Reibaldi, meu pai, oficial de inteligência do exército argentino, manejava informações de sequestro e desaparecimento de pessoas em toda América Latina...”

1

Bibiana Reibaldi foi categórica em sua resposta: sim, é exatamente isto que eu havia dito. É que, em meio ao exaustivo trabalho de transcrição de nossa entrevista, realizada em 19 de março de 2024, no seu apartamento em Villa Crespo, bairro de Buenos Aires, me pareceu que Bibiana tivesse dito outra coisa que não certa frase seca e definitiva, frase aterradora que lhe parece custar ainda hoje. Contava ela que, em muitas ocasiões, pensava no que se dizia dos desaparecidos, contava das dissimulações forjadas, das escabrosas mentiras, dos álibis construídos pelas bandas paramilitares que operacionalizavam sequestro e morte em nome de um projeto terrorista de Estado; Bibiana conta das inúmeras vezes em que ouvia dizer dos desaparecidos que eles haviam sido mortos em enfrentamento, e que sentia que poderia ser assassinada em ‘um destes enfrentamentos’.1 E Bibiana completava a sentença que me custava escutar tamanha a sua gravidade. Será que Bibiana está dizendo o que pensei ouvir de seu depoimento?  Contactei-a por celular, transcrevendo a ela o que pensara ter escutado de suas palavras. É que na organização de suas ideias, na formulação da frase inteira, ela havia ousado certo riso irônico e aturdido – ainda hoje, mas era aquilo mesmo que eu pensara ter ouvido, Bibiana me confirmava a frase derradeira sem meias voltas, frase custosa e dolorida, ela dizia que seu pai se tivera oportunidade… 

Passado este dia, iniciei esse ensaio-nota, nomeando-o com a sentença-veredicto que custa dizer, que custa acolher em si. Mas qual que as palavras me chegavam, e adiei a empreitada. Manhã seguinte, noutra mensagem de zap, Bibiana me pediu que não esticasse a frase até o fim, que mantivesse a frase cindida, cortada ao meio; Bibiana me pediu que não repetisse por inteiro o que ela havia confirmado ter dito; que repartisse a frase em metades que não se juntam; que rompesse, da frase, o círculo de um fogo peremptório; que fizesse uso de reticências que não encerram fatos, que os mantém em aberto como a uma palavra que não completa, como a uma palavra que não entrama de todo os laços da teia do sentido; que a frase se acomodasse entre o que ela diz e o que ela cala, frase que acolhe em si hiato elipse suspensão.

Talvez que Bibiana sequer me tenha falado tudo o que disponho acima, talvez que eu tenha escolhido este trânsito de ideias para que o silêncio ganhasse força e pontaria. 

Necessário acolher os cuidados de Bibiana, os passos em círculo e a frente, os modos do dizer, do narrar, do testemunhar, que parecem se distender no que vai contando, e que se faz desenrolando carretéis de há tempos, e que segue um pouco em ritornelo, em repetições que reafirmam o que lhe custou tanto tempo até que fosse a palavra uma cesta de fatos, um dispositivo de ocupação de espaços à vida – que se organiza e que se recompõe mais além dos golpes baixos de outrora. Porque Bibiana, e outros e outras desobedientes, estiveram sob golpes que tantas vezes as/os fizeram calar, ou que as/os fizeram dobrar-se sobre si mesmo, mirando de perto os olhos de fogo da górgona, seus cabelos de serpente que paralisam. 

Imprescindível ingressar no depoimento de Bibiana Reibaldi para que se possa compreender os rumos de uma história eivada de obstáculos e de ressignificações.

2

Pergunto a Bibiana como era sua relação com o pai e como a verdade dos fatos se lhe impôs para além das idealizações de infância:

Foi um longo processo porque meu pai, desde muito jovem, foi oficial de informação do exército. Eu nasci em 1956, durante a ditadura de Pedro Eugenio Aramburu que se autodenominava A Revolução Libertadora, mas que hoje em dia a conhecemos como A Revolução Fuziladora, meu pai formou parte deste governo. Era ainda um jovem tenente da casa militar. Ou seja, já estava tomado por uma ideologia de direita, de uma extrema direita recalcitrante típica dos militares àquele instante. No ano de 1963, ele permaneceu durante vários meses na Escola das Américas, no Panamá, e também, nos Estados Unidos. Àquela época, durante minha infância e adolescência, tudo me parecia natural. 

Meu pai trabalhava na Central de Inteligência, no edifício situado entre as ruas Viamonte e Callao, a Central do 6012. Era o batalhão de Inteligência que reunia e centralizava informações de todo o país. Ele se reformou como major no ano de 1970, porém em 1971, retornou ao Centro 601 como analista. Primeiramente, como informante e depois como analista por ser especialista em trabalhos de Inteligência, e ali seguiu sua empreitada criminosa junto aos seus companheiros militares e, não somente na Argentina. Quando se deu o Massacre de Trelew, em 1972, estava trabalhando como informante, e alguns anos depois, quando se implementou o terrorismo de Estado, com a morte de Perón em 1974, quando a [organização terrorista de extrema-direita] Triple A começou a realizar os seus sequestros, seus crimes aberrantes durante o governo democrático de Isabel Perón; em 1975, por ordem deste mesmo governo, se instalou a Operação Independência, no Estado de Tucuman – que, em verdade, foi um massacre, a implementação do terror em toda esta província; meu pai também estava bastante ativo e começou a desempenhar a função de analista, que eram as pessoas que coletavam as informações obtidas sob tortura nos Centros Clandestinos de Detenção, mas que antes, indicavam às patotas – que eles chamavam de Grupo de Tarefas, ou seja, os que executavam os sequestros – para quais destes Centros deveriam levar os sequestrados para que fossem torturados e dar prosseguimento a obtenção de informações. Essa foi uma dentre as várias atividades exercidas por meu pai no ‘601’; tarefas que pressupunham uma espécie de compromisso abominável, desprezível, fatos estes sobre os quais pude tomar conhecimento, não somente pelo que eu vivia no interior de minha família, mas sobretudo pelo que me chegou ao ler os seus arquivos.

Pergunto a Bibiana:

– Teu pai atuava em uma franja móvel entre a legalidade e a ilegalidade?

No interior da família ele era uma pessoa, não era propriamente um bom pai, mas era a única pessoa com quem eu podia contar. Era meu ponto de sustentação. E tal franja de legalidade se fazia valer aí. Ele era um homem muito culto e, como filha de militar, íamos estudar em um colégio de freiras, e circulávamos em um meio social muito estreito, restrito ao círculo militar, ao círculo de policiais; nas férias, frequentávamos os hotéis que eram os destas Forças, e isto durante toda a infância e adolescência; a franja de legalidade era esta na que meu pai se fazia presente. Em 1972, quando eu completava quatorze anos, ele se separou de minha mãe, e então eu já não convivia com ele dentro de minha casa, embora seguisse visitando-o com certa frequência, e ele continuou sendo esta pessoa da família com a qual eu podia me sentir segura. Mais tarde, quando estava maior, já com meus dezoito anos, era o ano de 1974, eu havia começado a cursar a Universidade de Buenos Aires, comecei a me inteirar de que o mundo transcendia os muros de meu pequeno círculo; eu vivia no bairro Belgrano, minhas amigas eram as colegas do colégio de freiras, ou do círculo militar, tudo muito fechado, vivíamos em um prédio de militares. Para me desatar desta mentalidade, dessa formação, desse pensamento, algo em mim havia que se romper, havia que romper com aquelas ideias, com aquela forma de ver as coisas, e aí foi o que se deu quando de meu ingresso na universidade; ali descobri que havia uma outra forma de ver a vida, de pensar; outra forma de viver, e me encantei com isto, com os livros que ia lendo. 

Na medida que isto ia se aprofundando em mim, fui me dando conta de que havia na vida de meu pai um lado obscuro, de ilegalidade, era a face de um mundo que ia se descortinando e que era perigoso. Estávamos em 1974, em pleno período de atuação da Triple A, e meu pai era muito ativo, e não somente como informante, mas como ele se autodenominava – frase que escutei dele anos depois: caçador de subversivos. Quando eu decidi que ia fazer o curso de psicologia, ele não aprovou a minha decisão, porém já não tinha ingerência sobre a minha vida, eu já tomava as minhas próprias decisões. Um dia ele me disse que eu não me sairia bem nessa faculdade, que estavam me fazendo a cabeça, que os comunistas estavam me lavando o cérebro, assim como aos meus colegas. Senti esta frase como uma ameaça. Não somente como algo que ele não aprovava – eu que sempre tinha tido o seu apoio incondicional para tudo o que eu quisesse estudar. Eu era muito estudiosa, era uma espécie de refúgio que me inventava. Mas não sabia de que tipo era a ameaça de meu pai porque não tinha clara as coisas, era meu pai, eu não podia naquele momento ter a dimensão exata do que estava vivendo, porém senti que ele estava me retirando o seu apoio.3

Bibiana conta que insistiu em seguir o curso de psicologia, porém, aquele ano, a faculdade fora fechada, reabriram no ano seguinte, e logo depois, tornaram a fechá-la. Sigamos suas palavras:

Em 1976, voltei a ingressar no curso, porém já não na Universidade de Buenos Aires. E essa frase ameaçante de meu pai ecoava em mim, como que gravada a fogo, que acabei não conseguindo prestar nenhuma das provas finais neste ano. Estava angustiada e não sabia dizer o porquê. Durante estes anos, eu era acometida por muitas depressões e não sabia por quê. Estava de fato muito deprimida. Trabalhava e tentava cursar psicologia, porém com uma depressão terrível. Me refiro a terrível no que tange a sua dimensão anímica, e a tal ponto que tive que retomar o acompanhamento analítico que foi o que me salvou. Tinha pesadelos repetidos todas as noites. Foi uma época muito difícil para mim, sem ter muito clara as razões que me levavam àquilo que eu estava vivenciando, tudo se passava de forma inconsciente, eu sabia que meu pai estava diretamente ligado com mortes, com temas criminais. E eu não podia encarar isto, porque se admitisse aquilo me sentia dilacerar. Não conseguia me manter de pé, me aguentar sozinha porque a esta altura meu pai seguia sendo àquele que me havia apoiado durante toda a vida. Ele era a única pessoa em quem eu encontrara até então apoio. Mas percebia tal ilegalidade que pairava no ar. Comecei a me inteirar que estavam desaparecendo pessoas. Era o ano de 1976. E isto se me foi ficando visível na medida mesma em que começaram a desaparecer vizinhos de meu bairro. Eu vivia em Almagro. 

Me recordo que de me haver inteirado, no dia seguinte, em um armazém do bairro, que havia desaparecido um casal que tinha uma criança pequena e cuja mulher estava grávida. Tempos depois ficaria sabendo que esta mulher grávida, desaparecida, era irmã de uma professora com quem viria a trabalhar, e que seu marido, desaparecido, era engenheiro. A criancinha do casal havia sido entregue a sua avó. Foi desta forma que começaram a me chegar o tema dos desaparecimentos.

Pergunto a Bibiana se ela chegou a comentar algo com seu pai.

Àquela época eu trabalhava junto a assistência social de Correios Argentino e o marido de minha chefa havia sido sequestrado no dia 7 de janeiro de 1977. Ele fora arrancado a força de sua residência. Eu senti isto de forma muito profunda e me aproximei bastante dela. Sentia sua dor e desespero, nós conversávamos muito, íamos a sua casa, compartilhávamos o mate e lembro que lhe disse em certa ocasião: ‘Olha, Isabel, eu vou perguntar ao meu pai, que é militar, se ele pode me esclarecer isto porque não é possível que uma pessoa desapareça, que uma pessoa seja sequestrada em sua própria residência da maneira como se deu e que ninguém saiba como encontrá-lo’. 

Isabel estava fazendo a sua via crucis, que era parte da perversão de tudo aquilo, porque faziam com que todos os familiares fossem daqui a ali, batendo de porta em porta, marcando reunião com o bispo tal, com o cardeal tal, com o coronel fulano, e tudo para nada! E as pessoas seguiam este périplo de se prestar a tais entrevistas, a tais reuniões e a única coisa que elas obtinham eram perguntas e mentiras. Perguntas para lhes sacar informações e mentiras. E, certo dia, enfrentei a meu pai, lhe interpelei sobre como era possível que estivesse ocorrendo isto no país. Ele me respondeu: Vou averiguar. Eu não podia associar meu pai com o que estava acontecendo. Não tinha capacidade emocional para isto – sentia que se transpusesse este limite, e o associasse a tudo, me desmantelaria toda. 

Passado um tempo, nos encontramos, e ele me disse: Diga a sua companheira que não adianta procurá-lo mais porque está morto. Esse foi o primeiro enfrentamento que tivemos. Pensei que meu pai me tivesse feito um favor; favor de se meter na cova dos lobos para averiguar o que se passara com Ruben Salinas. Porém, em verdade, essa informação meu pai já a tinha, ele tinha pleno conhecimento do que se passara com Ruben Salinas. Isso eu sei agora. Mas naquele momento não, não tinha como associar uma coisa a outra porque, voluntariamente, eu virava o rosto para o outro lado. Não tinha suporte emocional e psíquico para me dar conta de que meu pai era um criminoso de lesa humanidade. Era como se tivesse ainda que agradecê-lo por haver buscado a informação. Claro que não lhe agradeci coisa alguma, eu tive uma crise nesse momento. Mas repito: essa informação ele já a tinha. Não havia tido que buscá-la em qualquer parte. Não me estava fazendo qualquer favor. Era como seu eu te perguntasse, André, você sabe se no Brasil existe sapatos de número 38, e você me diz que vai procurar saber, quando em verdade você é o próprio fabricante destes sapatos de número 38. Meu pai era um dos que tinham essa informação porque foram milhares os que trabalharam ali, e assim se foram passando os anos.  

– É quando se vai alargando aquela franja de ilegalidade na que teu pai estava envolvido, concorda?

Não sabia ainda dos campos clandestinos mesmo sabendo que durante a ditadura havia muitíssimas coisas que eram ilegais. Eu percebia que a vida do meu pai ia, a cada dia, ingressando mais e mais neste lado obscuro. Até que um dia lhe fiz a pergunta: A quantas que anda teu trabalho porque eu já não entendo mais?! Eu sabia que ele se mantinha nas fileiras do batalhão 601, no edifício de Viamonte e Callao. E, pela primeira vez, meu pai me respondeu de forma ríspida. Ele era muito correto comigo. Não digo que fosse afetuoso, mas era correto, frontal, sempre me respondendo tranquilo, sem me levantar a voz, me explicando as coisas. Eu sentia que com ele podia conversar porque, desde que era criança, ele me escutava e até mesmo depois de crescida – com ele podia falar de frente, de igual para igual. Quando comecei a compreender que meu pai vivia na ilegalidade, mas veja bem, era uma meia ilegalidade, porque para o governo, para a ditadura, era legal o que ele fazia, aliás, não apenas legal, ele era aplaudido. Nos informes que tive acesso, vejo apenas felicitações pelo seu nível de compromisso, de entrega, e tais compromissos e dedicação dizia respeito a ações criminosas.4

3

Todavia para que possamos deslindar mais a fundo o quão estava envolvido o oficial de inteligência Julio Juan Felipe Reibaldi nas ações de genocídio planificado durante os largos anos do terrorismo de Estado na Argentina nos parece necessário ingressarmos pelos corredores e pavilhões labirínticos do Batalhão 601 – que funcionava no edifício situado a Rua Viamonte 1814/16, na esquina com a Avenida Callao; nosso intento é o de avançar um pouco na compreensão da centralidade ocupada pelos serviços de informação diretamente ligados ao Comando Geral do Exército durante o autointitulado Processo de Reorganização Nacional. Centralidade operacional-estratégica dos serviços de inteligência por um lado, e por outro, o diagrama tentacular e rizomático que coordenava as distintas etapas de captação, análise técnica e formulação de informação, além da distribuição em rede de relatórios que orientavam todo um cabedal de procedimentos e de grupos operativos. Ou noutros termos, Comunidades Informativas, Central de Reunião de Inteligência (CRI), Grupos de Tarefas (GT), Agentes e Encarregados, Intermediários e Centro de Operações Táticas (COT). 

Importante ressalvar que a criação do Batalhão 601 transcende ao período da última ditadura empresarial militar (1976-83), ela remonta ao Boletim Confidencial do Exército (BCE) n°374 publicado no dia 1° de janeiro de 1968 – ainda durante a ditadura anterior, no governo de fato de Juan Carlos Onganía. Se tratava de uma Reestruturação Orgânica da Área de Inteligência e foi neste momento que o Batalhão de Inteligência Militar 601 foi criado. Tal batalhão atuava em apoio ao comando do Iº Corpo de Exército e mantinha um representante na Central de Reunião deste Iº Corpo.

Sigamos alguns trechos da diretiva 404/75, no marco do Operativo Independência5, quando se definiu a função a ser cumprida pelo Batalhão 601 no que tange a luta contra a subversão. No anexo 1, inteiramente dedicado ao assunto Inteligência, são delimitadas as instruções particulares relativas aos meios de reunião e às fontes de informação. No item a) ‘meios de reunião’; foram destinadas as manhãs das quartas-feiras para a reunião dos Comandos do Exército com os oficiais e técnicos de Inteligência para a apreciação dos documentos correspondentes a esta condução. Se destaca ainda que será efetivado um fluido e permanente intercambio informativo, por canal técnico, entre as unidades de inteligência e o Batalhão 601 em tudo o que for relacionado as ações executadas de inteligência6. Já no que diz respeito ao item b) as fontes de informação estão divididas em uma hélice tripla: detidos, material capturado, documentação capturada. Descrevemos ipsis litteris tais termos da diretiva:

b) Fontes de informação

1) Detidos

É de particular interesse, a reunião de informação obtida do pessoal que se encontra detido nas unidades carcerárias, para tal é necessário um permanente controle dessas unidades.

2) Material capturado

Quando se capture material ou armamento desconhecido, se remeterá o mesmo por canal técnico de Inteligência ao B. Icia. 601. Esta unidade o centralizará e distribuirá aos órgãos competentes, encarregados de produzir a inteligência técnica correspondente.

3) Documentação capturada

É de particular importância a imediata classificação da mesma em dois grandes segmentos:

  • A que realiza a condução, às políticas, às estratégias, às táticas, aos modos de operar, às suas organizações, assim como outros que constituem valiosos aportes para a atualização da apreciação de situação de inteligência.
  • A que possa viabilizar a identificação e localização de pessoas, localização de refúgios etc. e que fundamentalmente sirva a face executiva de inteligência e aos consequentes procedimentos policiais, ou ações militares…7

Posteriormente, a partir do golpe de 24 de março de 1976, e mais precisamente, na diretiva 405/76 de maio deste ano, quando se tratará de aprofundar o espectro de atuação do aparato repressor do terrorismo de Estado, ou nos próprios termos da diretiva, a intensificação gradual e acelerada da ação contra subversiva com a finalidade de completar o aniquilamento do oponente na zona onde mantém maior capacidade, e para tal se fará uma ampla reordenação de jurisdições e a adequação orgânica para o incremento das operações contra a subversão. No texto desta diretiva, será especificado que “o Batalhão de Inteligência 601 estabeleceria no comando da zona IV (Institutos Militares, Campo de Mayo) uma seção de inteligência, afiançando o apoio que o Batalhão 601 vinha outorgando a Institutos Militares há já algum tempo”8

Além disto, se poderá atestar seguindo a documentação reunida no Programa Verdad y Justicia – El Batallón de Inteligencia 601, publicada pelo Ministério de Justiça y Direitos Humanos da Presidência de República em novembro de 2015, que o raio de intervenção deste organismo perpassava às áreas sob o comando dos Corpos de Exército II, III e V nos que os seus respectivos comandantes solicitavam o envio de seu pessoal técnico, assim como se fazia presente com agentes e representação no Iº Corpo do Exército e nos Institutos Militares, conforme já salientado acima.

Eis o que afirma o documento:

Desta forma foi estruturado de forma regulamentar uma organização de controle centralizado de informação e inteligência que, desde o órgão executivo da Chefatura II – o Batalhão de Inteligência 601 – recebia e distribuía a todo o país e aos países vizinhos, os informes referidos à luta contra a subversão9.

No que se avança na leitura do documento, se pode perceber a clara articulação entre as distintas esferas da produção da informação como trabalho de inteligência organicamente articulado aos grupos de trabalho e grupos de tarefa diretamente responsáveis pelas ações de sequestro, repressão, tortura e desaparecimento forçado de pessoas ao longo do Processo de Reorganização Nacional, tal como se autointitulava o governo de fato ao longo da última das ditaduras argentinas. 

Vejamos este trecho que sintetiza as chamadas comunidades informativas:

As comunidades informativas eram um organismo constituído pelos serviços de inteligência locais (Forças Armadas, Forças de Segurança, Serviço de Inteligência do Estado), encarregado de recolher informação da população por meio da inteligência e contrainteligência dos informantes. O objetivo era compartilhar a informação coletada entre os distintos integrantes sobre o acionar das organizações políticas, gremiais, estudantis etc. Além disso, identificar e elaborar listas de pessoas que consideravam perigosas, abastecer com tais dados às chefaturas correspondentes – áreas, subzonas, zonas – e o Batalhão de Inteligência 601; e depois acionar, através dos grupos de tarefa ou dos operativos levados à cabo pelas unidades das Forças Armadas e/ou das Forças de Segurança, no cumprimento das diretivas que foram geradas10.

Podemos perceber que a alegoria utilizada por Bibiana Reibaldi – a do fabricante de sapatos como sendo o principal responsável e conhecedor dos meandros em que circulavam o produto de seu trabalho – era bastante pertinente no que tange às relações umbilicais entre o trabalho desenvolvido por seu pai, Julio Reibaldi, no Batalhão de Inteligência 601 e a perfeita deflagração continuada e em crescendo do terrorismo de Estado na Argentina daqueles 60-80.

Bibiana conta que seu pai se manteve ativo no Batalhão de Inteligência 601 entre os anos de 1971 até 1986; tal informação lhe chegou do acesso à microfilmagem do dossiê relacionado ao Oficial de Inteligência Julio Juan Felipe Reibaldi, material este apenas disponível quando da reabertura, no ano de 2005, do julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura e da desclassificação dos arquivos que eram mantidos até então como segredos de Estado. Ainda que os documentos liberados não avancem para além do ano de 1983, Bibiana diz saber que seu pai se manteve no Batalhão 601 à frente das tarefas de inteligência pelo menos por mais três anos. 

– Inclusive durante o regime democrático? – lhe pergunto.

No governo democrático de Alfonsín, o partido militar tinha muito poder ainda, e os sobreviventes eram fiscalizados pelo pessoal civil de inteligência, eram visitados em suas casas – não como você, André, que chegou e tocou o interfone, e esperou que eu descesse para abrir a porta para você. Eles chegavam e entravam na residência das pessoas sem qualquer comunicação ou mandado, eles entravam quando e como bem queriam fazer, quando tinham vontade, para ver como viviam os sobreviventes, o que estavam fazendo; eles seguiam controlando a vida da população por muito tempo. Quando Alfonsín decide fazer o juízo das Juntas foi um ato de coragem desse governo porque os militares ainda tinham muito poder e se mantinham muito ativos. Meu pai esteve ativo pelo menos até o ano de 1986 – pelo menos que eu saiba, mas provavelmente se manteve por mais tempo ainda.

– E o que você soube por intermédio dele? Ele respondia as suas interpelações?

Ele nunca respondeu as minhas perguntas. Eu lhe pedia que ele me dissesse se sabia onde estavam os restos dos desaparecidos. Eu lhe pedia que me dissesse o nome de uma família que havia se apropriado de um bebê nascido em cativeiro e ele nunca me respondeu. Morreu sem me responder a tais perguntas, e eu constantemente lhe repetia isso: Onde estão? Me conte um lugar onde haja restos de desaparecidos? E ele respondia: “Essa informação foi toda queimada, não existe mais, todo informe que falava sobre isto foi queimado”.

– Então ele dizia que havia corpos?

Ele não dizia que não, nem dizia que sim. Apenas isto: que havia sido queimada a informação.

– Ou seja, uma forma perversa de se responder.

Muito, muito perversa, somente agora eu posso ressignificar tudo isso. Naquele momento era tão doloroso para mim que eu não podia dar conta totalmente da dimensão que tinham as suas palavras. Porque quando ele me respondia que haviam sido queimados todos os papéis que continham tais informações, que haviam sido destruídos os papéis em que estavam registrados esses informes, ele estava me dizendo que sabia que existiam tais papéis, tais documentos, ele estava me dizendo que haviam desaparecidos que tinham sido sequestrados, e que seus corpos haviam sido enterrados em lugares não revelados a ninguém, ele estava me dizendo que sabia sem propriamente me dizer que soubesse. Estes enfrentamentos já foram na década de 1990. Eram enfrentamentos muito intensos. Isso que muitas vezes se informava acerca dos desaparecidos: ‘fora morto em um enfrentamento’, eu… eu sentia que poderia ser assassinada em um desses enfrentamentos… acredito que se houvesse oportunidade talvez…11

A palavra derrapa da boca de Bibiana Reibaldi, lhe escapole na direção do que silencia – um golpe que estanca, ou quase, Bibiana desvia o olhar, talvez se remeta a imagens que não ouse nomear, imagens irresgatáveis que ainda pesam demasiado, que ainda insistem em rodopios, em giras que atormentem; parece lhe custar uma conclusiva, a síntese que pontue o sentido à frase que falta, como se lhe ativasse uma carga afetiva por onde talvez ainda não possa seguir, ou quiçá não creia que valha a pena a esta hora de uma manhã de março diante do estranho que apenas há pouco lhe tocara o timbre da casa, talvez. Arrisco um contorno, uma forma de avançar com cautela e cuidados para com ela. 

– Mas haveria um ponto de inflexão, um limite de ação que pudesse deflagrar um gesto como este da parte de teu pai? Por exemplo, testemunhar em contra ele em um juízo contra os crimes da ditadura?

Eu não poderia participar de nenhum juízo contra ele porque nesses momentos… Primeiro, uma filha não pode testemunhar nem denunciar a seu pai; segundo, ainda não se havia reaberto os juízos. Existiam as leis de obediência devida e de ponto final12, e os militares não poderia ser julgados de maneira alguma.

– Estavam soltos então?

Todos estavam soltos, todos estavam levavam suas vidas tranquilamente, viajando pelo mundo, montando suas empresas no exterior com o dinheiro roubado – porque além de investir contra outras vidas, eles se apropriaram de muitas empresas, sequestraram seus donos, assassinando-os inclusive, não sem antes obriga-los a assinar escrituras de transferência do título de propriedade de tais empresas aos genocidas13. Meu pai não embarcou nessa, morreu pobre, diferente da grande maioria deles. Certa vez, logo no princípio da ditadura, lhe perguntei: Como pode ser que a maioria dos militares, pais de amigas minha do colégio, são tão ricos, se eles tinham o mesmo posto militar que você? Como pode ser que eles tenham acumulado tanto dinheiro e você não? E ele me respondeu: – ‘Porque eles roubaram’14.

Julio Reibaldi viajava a negócios, seu trabalho no setor de informação e inteligência exigia dele que se deslocasse constantemente ao exterior, e mais especificamente a certos países da América Latina. Bibiana conta que como seus pais já haviam se separado, o convívio com ele ficara restrito às visitações espaçadas, e àquela época, nestas condições, os motivos do contínuo trânsito de seu pai lhe escapavam de todo.  Quando interpelado por Bibiana, como de costume, Julio Reibaldi tergiversava:

Durante esses anos [1978-1980], ele viajava muito pela América Latina – porque a Operação Condor estava organizada por todo o continente desde a Guatemala, para onde iam muitos dos companheiros de arma de meu pai. Como ele estava casado com outra mulher, muitas vezes eu ficava sabendo de suas viagens quando ele já havia retornado. Lembro que ele havia viajado para o Rio de Janeiro, São Paulo, não me contava praticamente nada sobre isto. Quando eu o encontrava – e não eram muitas vezes, eu lhe perguntava: fiquei sabendo que você esteve no Brasil, e ele dizia coisas como: -‘Sim, fui ao Rio de Janeiro, que lindo que são as praias, as pessoas jogando rosas brancas no mar, fazem cerimônias, todos vestidos de branco’, ele contava essas coisas como se estivesse viajado a passeio, me entende? Em outra viagem, desta vez a São Paulo, ele me contou de um episódio em que foi assaltado na rua. Porém não me contava o motivo de ter viajado que, claro, sobre isto não se falava, isso era segredo, era segredo de Estado. 

– E a nova companheira dele, você imagina que soubesse as razões?

Claro que sabia!

– E sua mãe, ela sabia?

A esta altura não sabia de nada.

– Porém, antes, havia uma cumplicidade interna na sua casa entre eles?

Minha mãe não se metia no trabalho dele. Ela vivia o seu pequeno mundo de salão de beleza, era uma senhora distinta de classe média, vivia em reuniões com suas amigas, um jantar aqui, a modista ali, ela vivia a sua vida, a vida que lhe era permitida por ser esposa de um oficial do exército argentino. No que tange às viagens de meu pai, de fato fiquei sabendo quando tive acesso ao seu dossiê, aí soube para onde tinha ido, em quais datas, quem o havia mandado, isso porque estava lá assinada a designação. 

– E havia alguma informação no dossiê sobre as razões destas viagens?

Não! Os detalhes da operação não constam nos documentos, porém está lá a ordem do dia de cada uma das viagens, com as assinaturas dos oficiais que comandavam cada uma dessas operações. O que conheço mais desta história, foi ressignificado depois – o que ele ia fazer era identificar pessoas para que fossem sequestradas, no caso, argentinos que haviam se exilado em outros países latino-americanos; ele ia colaborar com os especialistas em informação no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Guatemala, em diversos países, sempre para identificar pessoas a serem sequestradas. Tal coisa eu compreendo apenas agora. Naquela época eu sequer suspeitava disso. Eu pensava que ele fosse de férias, mas não era nada disso, não se tratava de rosas brancas atiradas ao mar, ele viajava para cometer crimes, as informações que ele ia obter eram instrumentos fundamentais às práticas de sequestros e assassinatos. 

– Seu pai participava nas cenas de tortura?

Não sei, não fiquei sabendo. Lembro de uma vez em que ele veio me ver e se pôs a chorar. Jurou que nunca havia participado de sessões de torturas. Eu não havia lhe perguntado nada – até mesmo porque não estava em condições de escutar uma resposta afirmativa da parte dele. Nessa vez que estou te contando, ele chorava, e sabe o qual foi a minha reação? Não acreditei no que ele dizia, não acreditei em nada daquilo, apenas lhe disse que era uma coisa que ele teria que resolver com a consciência dele, que era algo que ele não teria como me provar de fato, se estava ou não envolvido com torturas era algo que lhe dizia respeito. Lembro que depois me retirei, fui para casa, e desmoronei, me vi chorando sem parar, porque não havia conseguido interpela-lo como fizera um de meus irmãos, mas não consegui, não tive essa coragem – te repito -, não tive essa coragem, não estava em condições de escutar o que ele poderia me dizer, enfim, não posso te afirmar, André, se ele participava ou não, não consta nos documentos que tive acesso15.

4

Resolvo ingressar por esta via – a da família tomada de assalto pelas revelações que vão emergindo aos poucos, e num crescendo, as informações surgindo de todos os lados e por meios diversos; teria se mantido incólume o núcleo que restara uma vez a gravidade das injunções histórico-sociais? 

Em nossa entrevista, Bibiana Reibaldi começara evocando as memórias de sua infância; a presença distinta da figura paterna em sua formação; o entorno da instituição militar alargada em diversos tentáculos ideológicos conformadores de identidade: a escola primária e secundária, as atividades no clube recreativo, a colônia de férias restrita ao oficialato, o pequeno círculo de amizades, certo projeto de futuro idealizado e quase unívoco – espécie de atmosfera monocromática tangendo a paleta de cores. E no agora, o que restara daquilo? Quais os rebatimentos uma vez o desembrulhar dos fatos?

A família se rompeu. O irmão mais novo foi dependente químico durante toda a sua vida – até há uns quinze anos atrás, ele viveu esse submundo da dependência e suas convicções ideológicas são espantosas; não posso nem conversar com ele, é alguém que está totalmente roto, desintegrado. Tenho também dois irmãos do segundo casamento de meu pai, um irmão e uma irmã. Um destes irmãos foi o que teve coragem de enfrentar a meu pai, ele lhe interpelou sobre a questão da tortura; mas depois que me organizei em Histórias Desobedientes, eles se afastaram, não sei por que. 

Bibiana avança no tema das fraturas psíquicas. Para ela, assim como para muitos dos filhos e filhas de genocidas, lançar-se à investigação destes indícios, afundar as mãos no pacote assombroso de tais fatos, por vezes, tantas vezes, lhes custou profunda desintegração emocional e psíquica como numa espécie de naufrágio subjetivo sem retorno ou superação. Ainda hoje, algumas décadas depois, preponderam entre os que não se identificam de forma direta com o legado da ideologia militar de seus pais, casos de filhos e filhas que não são capazes de enfrentar, de forma crítica, o peso desta filiação – como se o passado não lhes tivesse passado de todo, como se a história particular e pessoal que vivenciaram resistisse sobremaneira a uma viragem de sentido e significado. 

Vejamos o que nos conta Bibiana Reibaldi:

Temos muitos companheiros e companheiras que estão muito destruídos emocionalmente. Sabemos de gente que não está militando em Historias Desobedientes porque não tem suporte emocional; alguns estão em estado de depressão profunda. 

– Como se o passado lhes fosse ainda presente nos seus cheiros e sabores?

Sim, sim, porém estão bastante feridos, machucados, como se os cortes na pele tivessem em carne viva, e quando se está com o ferimento em carne viva não se pode tocar, se achegar. Muitos não têm força para sair, se levantar e reagir, necessitando serem protegidos, e se se lhes toca, gritam de dor.

– E como se se tratasse de um paradoxo infernal: como modificar o que se teve trocando-o por algo que, de fato, nunca se terá. Você me falou da vergonha que te provocava o olhar dos outros, imagino que se portava algo como uma insígnia, qual? A de ser filho ou filha de um militar genocida. É uma forma desde a qual o outro te olha e te compreende. Como se pode apagar este passado – uma vez que este passado, de algum modo, te conformou e se faz, a todo tempo, presente?

Sim, sim, é verdade que o que nos coube não se pode modificar, não poderíamos, por exemplo, ter tido a família que gostaríamos de ter. É o caso dos netos recuperados de pessoas que os havia roubado; bebês nascidos nos cativeiros em cárceres clandestinos, e que foram roubados, apropriados, é verdade, eles não tem o poder de modificar o que se lhes passou, porém podem transformar o sentido de suas vidas uma vez que passaram a ter acesso à verdade do que se lhes ocorreu. Uma vez que a verdade se impôs, cada qual tem a possibilidade de decidir, a partir de uma perspectiva ética, como transformar isso; o que fazer com o que lhes aconteceu. Trata-se de uma postura particular e pessoal. O fato de se ter sido criado por pais apropriadores, não tens como modificar. Tampouco, se teus pais biológicos foram sequestrados, torturados, violados e desaparecidos, não há como se modificar este fato. Porém, se pode fazer algo com tudo isso. Desde uma perspectiva ética, se pode agir em face disto. E foi o que fizemos àqueles que de algum modo levou a vida na contramão de nossas famílias, porque sempre nos sentíamos assim, à contramão da família na qual crescemos. Foi um processo longo e doloroso que nos custou a vida, uma vida de vergonha, de dor e de sofrimento, nada se deu de forma gratuita e fácil, mas insisto que quando a verdade se nos impôs, de forma nua e crua, não tivemos outro remédio do que tomar uma decisão. Ou metíamos a cabeça debaixo da terra como faz o avestruz, ou nos arvorávamos à decisão ética de repudiar tudo aquilo que fizeram os nossos pais e familiares; os desobedientes, nós tomamos tal decisão. Se nossos pais foram criminosos de lesa humanidade, que vamos fazer com isso? Isso eu posso modificar – nossos familiares foram criminosos, genocidas, foi o que nos coube. Eu não sou uma criminosa de lesa humanidade, então eu tomo a decisão de repudiar fervorosamente, e testemunhar este meu repudio ao comportamento e ação de meu pai, de minha mãe, de meus avós, de meu tio, do meu irmão. 

– E os cristais de tempo que estão nas imagens do passado, as imagens da infância, tais cristais também se rompem?

Primeiro se rompem, e depois com ajuda, como foi no meu caso e no de outros também. Todos nós recebemos alguma ajuda para lidar com estas roturas. Ajuda psicanalítica, ajuda de alguns familiares, em meu caso das avós e de amigos. Ajuda para sanar essas feridas que sangravam. Que ocorra isto em uma vida dói bastante, e ainda mais quando tens vínculos afetivos com essa pessoa que cometeu crimes de lesa humanidade, é como se estivéssemos em um diálogo silencioso e constante que ficasse repetindo isso de eu te quero, porém o que fizeste é tão terrível, o que fizeste não se faz com pessoas, isso não se pode fazer; não se pode sequestrar, torturar, violar, desaparecer, não se pode jogar as pessoas dos aviões ao mar, não se pode roubar bebês, não se pode fazer parir uma mulher em cima de uma mesa imunda, em uma cela de um centro clandestino de detenção, atada e encapuçada, e roubar-lhe seu bebê, não se pode fazer isso. Isso, em verdade, nos ‘caiu na cabeça’ quando dos juízos que se reabriram em 2005. Isso fortaleceu nossa identidade, saber o lugar de onde viemos, escutar aos sobreviventes16.

5

Todavia sabemos que não se caminha sozinho – for o caso que se perspective um processo de luta que não fique restrito a imediatez do agora. Bibiana Reibaldi não está sozinha, ela se organizou em Historias Desobedientes. A esta altura de nossa entrevista, lhe pergunto pelo processo de conformação do agrupamento.

Foi aos poucos também, tal como a vida dos desobedientes foi atormentada e dolorosa – esse é o nosso denominador comum, o atravessamento por caminhos tortuosos, carregados de contradições e conflitos profundos. Quando começamos a perceber que nossos pais viviam na ilegalidade e que estavam comprometidos com crimes hediondos, algo que foi se dando de uma forma bastante lenta e cheia de reveses, carregada de silêncios e de solidão, um silêncio que nos salgava; até que uma companheira escreveu em uma revista, a Revista Anfibia uma nota do porque de ter resolvido mudar seu nome, e tal nota reverberou bastante17.

A nota mencionada por Bibiana foi escrita por Mariana Dopazo, que reivindicava a condição de ex-filha de Miguel Osvaldo Etchecolatz – genocida que acumulou sete condenações à prisão perpétua pelos crimes cometidos durante os anos em que fora Comissário Geral da Polícia de Buenos Aires (1976-79), quando sob sua órbita funcionaram cerca de 20 Centros Clandestinos de detenção, tortura e extermínio, assim como maternidades nas quais foram sequestrados inúmeros bebês nascidos em cativeiro18. Àquele então, o reclamo e a voz, em caráter público, de Mariana Dopazo ressoava como um drama coletivo e social vivenciado desde o íntimo de sua historia particular. Espécie de voz inédita, de enunciação primeira portadora dos efeitos da maquinaria de morte implantada pelo terrorismo de Estado que, agora, ousava ocupar um espaço que parecia não lhes pertencer, o das ruas – arena por excelência dos que se rebelam a contrapelo, em marchas de denúncia, rechaço e testemunho contra seus progenitores que se prestaram a ser mão de obra do genocídio de amplos setores da população argentina a serviço dos interesses imperialistas de saqueio da riqueza nacional e de controle absoluto de toda e qualquer forma de resistência, individual ou coletiva, espontânea ou organizada. Tal voz de recusa e afronta não era uma voz qualquer, tragada pelo medo e pelo abandono tal como a daqueles que sucumbiram no pântano de uma existência adicta e dependente, deprimida e paralisada, mas pelo contrário, se tratava de uma voz em levante, que se organiza em coro, equilibrando suas distintas modulações num vibratio comum. Mariana Dopazo acrescenta algo importante fazendo eco ao que afirmara Bibiana e tantas, e tantos, outros desobedientes – se tratava de superar o isolamento, o desconhecimento do comum de que se padecia e no qual se estava imerso, a impressão de que aquilo que se vivia não era experimentado por outros, os companheiros que faltavam até então19

Mas voltemos ao relato de Bibiana Reibaldi:

Ela [Mariana] sim, ela soube que seu pai esteve na sala de tortura, torturando e violando em distintos centros de detenção. Ela soube através dos testemunhos dos sobreviventes e nos Juízos. Então, começaram a escrever na página do Facebook que mantinha Analia Kalinec, que hoje [março de 2024] é presidenta da organização. Ao mesmo tempo em que se dava o tristemente famoso 2 por 1, quando o governo de Mauricio Macri pretendeu mandar para casa todos os genocidas que estavam presos; por meio da rede social elas estavam buscando pessoas que houvessem passado por algo parecido com o que elas tinham vivido, e foi neste processo que conheci a Analia, a Mariana, me comunicando por Facebook. Elas me pediram que eu telefonasse para elas, lembro perfeitamente da data, era 25 de maio de 2017; marcamos um dia para nos encontrarmos pessoalmente, uma semana depois, no dia 03 de junho, no cruzamento da Avenida Rivadavia com Riobamba – era por ocasião da marcha do nenhum a menos, eu cheguei muito cedo, sabia que esse seria um dia que ia marcar a minha vida, que seria um ponto de inflexão entre um antes e um depois. E foi assim que encontrei com Historias Desobedientes20. Lembro que, nessa ocasião, éramos umas poucas mulheres sob uma bandeira na que estava escrito filhos e filhas de genocidas pela memória, verdade e justiça, foi a primeira vez em que pensei em meu pai como um genocida. Até então, não pensava nele como um genocida, o via como alguém que tivesse cometido delitos que eu repudiava fervorosamente, como repudiava que ele tivesse feito parte da última ditadura, me envergonhava disto, e eu não me sentia capaz de contar isto para ninguém. Era inteiramente distinto do que eu estava experimentando àquela hora, não havia espaço para a vergonha entre os desobedientes, havia espaço e forma para o rechaço de tudo aquilo que nossos progenitores haviam proporcionado aos outros. (…) Foi um alívio muito grande, uma libertação porque neste dia da marcha vieram meios de comunicação de diversos lugares do mundo e pudemos falar, publicamente falar, nós, estas cinco ou seis mulheres que estávamos com aquela bandeira, pudemos falar, era a primeira vez que isso acontecia em minha vida, foi muito comovedor. Até hoje sinto o corpo todo tremer quando me lembro daquele dia, as pernas, a voz, o corpo todo treme só de lembrar, você está percebendo como está a minha voz?!21.

Peço a Bibiana que fale um pouco sobre as atividades de Historias Desobedientes:
Todos os meses, nos reunimos ao longo de um dia inteiro. Claro que também em modo virtual porque há integrantes em distintas localidades, em Tucuman, Mendoza, Córdoba, Santa Fé, Neuquén, Santa Cruz, em diversas partes do país, assim como também com outros desobedientes que fomos conhecendo em outros países; no Chile, por exemplo, fomos inaugurar Historias Desobedientes, convidados por organismos de direitos humanos de lá; nos dois últimos anos [2022 e 2023], no dia 11 de setembro, quando se rememora o Golpe de Estado, fomos convidados pela Casa de la Memoria. Inauguramos também Historias Desobedientes no Paraguai – um país onde reina um silêncio absoluto, onde nunca houve juízos tal como no Brasil. Lá ninguém fala sobre tal coisa, ninguém ousa falar nada. Estivemos lá antes da Pandemia, em 2019 com o Embaixador argentino. Na ocasião, nos reunimos com organizações camponesas que denunciam o assassinato de famílias inteiras de trabalhadores rurais que são mortos por capangas pagos por aqueles que acabam por se apropriar de suas terras. Eles chamam de tierras mal habidas – porque foram terras que lhes foram arrancadas na base de crimes que não se investigam. Os desobedientes no Paraguai são filhos e filhas de militares que não apenas atuaram durante a ditadura, mas que muitos destes se tornaram grandes proprietários de terra, terras conseguidas desta forma, assassinando famílias inteiras. Isso continua se dando lá. Escutamos o relato de diversos camponeses, assim como de organizações de mulheres camponesas que sofrem violações inclusive. Estas mulheres são as que denunciam os crimes.22

Fomos ao Uruguai inaugurar Historias Desobedientes. Ano passado [2023], Analia Kalinec viajou para a Espanha para se encontrar com descendentes de genocidas franquistas que haviam se comunicado conosco, e pode conhecer a Loreto Urraca e a outros desobedientes por lá. Eles estão se conectando com grupos que estão lutando para poder ter acesso às fossas comuns onde estão seus familiares; na Espanha também reina o silêncio até o dia de hoje. A equipe argentina de Antropologia Forense tem participado destas investigações. Além disto, tivemos contato com muitos descendentes de nazistas, inclusive, uma neta de um oficial nazista veio apresentar seu livro em um encontro internacional que organizamos. Durante sua estadia aqui, ela esteve sob os auspícios da embaixada alemã.

Em síntese, podemos afirmar que estamos nos expandido, pouco a pouco, não apenas na Argentina, mas na América Latina e na Europa23.

6

Era hora de falarmos um pouco sobre como Bibiana e os desobedientes estão percebendo o avanço das pautas encampadas por Victoria Villarruel, eleita vice-presidente na chapa de Javier Milei. Pergunto a Bibiana se ela percebia haver na Argentina de hoje um caldo cultural que viabilizasse estes avanços? E outro ponto que levanto diz respeito ao contraponto que parece ser a voz dos desobedientes em relação a de Villarruel que reivindica a condição de filha de herói de Malvinas, e que propõe uma espécie de leitura revisionista acerca dos julgamentos dos militares envolvidos no autodenominado Processo de Reorganização Nacional.

– Como você percebe o que se está vivendo na Argentina? A mim, me parece perigoso o tipo de revisionismo que está propondo Victoria Villarruel – sobretudo porque estão envolvidos amplos setores das instituições – passando pelo Judiciário, pelos meios de comunicação monopólicos e, é claro, passando pelas Forças Armadas.

Sim, concordo, ela forma parte do partido militar que está conectado com os grandes e poderosos grupos econômicos argentinos que sempre se utilizaram deste mesmo partido militar para alcançar os seus fins. Ela é uma filha obediente de genocidas, tanto seu pai quanto seu tio foram genocidas. Victoria Villarruel os reivindica – atitude que é muito mais perigosa do que a simples negação, e com isso ela pretende implementar novamente esse mesmo tipo de terror hoje em dia, terror que se volta contra a população, terror como política de Estado. 

Ela é uma filha obediente, nós compreendemos assim, porque ao reivindicar crimes tais como o sequestro, a desaparição forçada de pessoas, a violação, a tortura, o roubo de bebês nascidos em cativeiro, ela se torna cúmplice de todos estes crimes de lesa humanidade, ela é cúmplice ao colocar no governo funcionários que, tal como ela, pertencem ao partido militar; são filhos de genocidas exatamente como ela é, e tudo isto gera um clima de muito perigo. Os jovens militares que cresceram em épocas democráticas, creio, podem vir a ser um contrapeso nesta hora, talvez venham a se contrapor para evitar se envolver nos intentos da Vice Presidenta e de todo o grupo que lhe apoia. Pelo menos é o que suponho, não tenho qualquer certeza porque sei que os militares tem o hábito de se deixar seduzir por um pouquinho que seja de poder, e como são muito destratados e subjugados desde que entram no Colégio Militar, tendo que receber ordens e ser pisoteados pelo superior imediato, eles acabam por desfrutar do prazer de pisotear aos outros tal e qual se lhes passa no seu processo de formação.

– Ou seja, a humilhação e o destrato como uma herança, um mandato e um distintivo de valor…

Sim, aprendem a ser humilhados, a tolerar serem pisoteados, e de tal forma, que a humilhação pode ser para eles um signo de valor, porém também de sofrimento porque qualquer ser humano humilhado em algum lugar de seu ser padece de sofrimento, tendendo a proporcionar aos outros de uma forma ativa o que sofrera de forma passiva, e de tal maneira que nunca se sabe o que se pode esperar deles devido a tal característica. Em nosso país, atualmente, as forças de segurança nos causam inúmeros problemas – o que se dimensiona em escala elevadíssima pelo fato de que a atual Ministra de Segurança é uma assassina que deveria estar encarcerada, ela deveria ter sido julgada desde os governos de Fernando de La Rúa e de Mauricio Macri24. Essa assassina é uma velha conhecida do povo argentino, desde o princípio dos anos 2000 com o aumento exponencial da violência policial nos casos de Gatilhos Fáceis; no emblemático caso do jovem Santiago Maldonado que esteve desaparecido por 78 dias e apareceu afogado em um rio, e Patrícia Bullrich nem titubeou em encobrir tais fatos25

Atualmente, ela joga as Forças de Segurança contra os que estão na rua protestando; ela insulta a todos com um protocolo repressor quando o povo se manifesta em protesto, quando o povo se põe legitimamente protestando – em nossa Constituição figura tal direito, ou seja, é um direito constitucional protestar quando se aviltam as condições de vida e os direitos fundamentais. 

Entretanto, ela passa por cima de tudo isso, e instrui as Forças de Segurança a reprimir de forma absolutamente desproporcional e desumana.  E não importa que estejamos numa manifestação pacífica, não importa nada. Sei muito bem o que estou falando porque tenho estado nestas manifestações – todas muito prolixamente organizadas, marchando pelas ruas e avenidas, sem que haja qualquer tipo de distúrbio, e se por ventura, ocorre algum distúrbio, alguma confusão, já sabemos qual a sua origem e intento. 

Essa ministra manda que as Forças de Segurança nos lance gases de pimenta na cara, gases lacrimogênios, balas de borracha que ferem e que te derrubam. Na última vez em que eles atiraram com balas de borracha o faziam de forma tão absolutamente indiscriminada que até entre eles houve feridos. Atingiram idosos, mulheres, jovens – muitos foram atingidos. As forças de repressão são guiadas por uma assassina que se chama Patrícia Bullrich, repito mais uma vez, essa assassina reforça a crueldade da tropa, a crueldade das Forças de Segurança na proporção direta em que lhes aplaude e saúda o quanto mais cruel for tais operativos26.

– E como está Victoria Villarruel com relação a isto?

Victoria Villarruel endossa tudo isto porque é do mesmo partido que Bullrich, é da mesma estirpe, é da mesma categoria de pessoa, tipos abomináveis, desprezíveis, que aplaudem os crimes, que aplaudem que todo um povo seja jogado à condições de miserabilidade, que passem por situações de tortura sem igual – tal como a de não ter onde morar, não ter trabalho, não ter o que dar de comer a seus filhos, não ter assistência médica e simplesmente se chegar a óbito por causa disto. 

Essa é a forma de tortura que se está exercendo hoje em dia sob este mandato presidencial, sob as injunções de tais tipos, destas pessoas que são criminosas, que são cúmplices dos criminosos de ontem e dos criminosos de agora.

André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF).

Esse texto expressa a opinião do autor.

  1.  Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz, realizada no dia 19 de março de 2024, em Buenos Aires. ↩︎
  2. Atentemos este parágrafo do Relatório El Batallón de Inteligencia 601, do Programa Verdad y Justicia do Ministério de Justicia y Derechos Humanos de la Presidencia de la Nación: “Foi o órgão que teve maior poder na República Argentina; por um lado, centralizou a informação e a inteligência de todo o país, e inclusive dos países limítrofes. E por outro, foi o órgão executivo da chefatura II do Estado Maior do Exército” (Buenos Aires: Editorial del Ministerio de la Justicia y Derechos Humanos de la Nación, 2015, pág. XII). Destaque-se que isto em um contexto como o de 1975 quando a atividade de Inteligência foi destacada como prioritária no acionar das Forças durante o plano sistemático de violência estatal nos marcos da Directiva 1/75 do Conselho de Defesa que afirma: “O exército argentino conduziria com responsabilidade primária o esforço de inteligência da comunidade informativa a fim de alcançar uma ação coordenada e integrada. Esta tarefa se realizaria em absoluto segredo, com operações encobertas; seus integrantes manteriam, em sua maior parte, identidades falsas” (p. XI). Grifo nosso.
    ↩︎
  3.  Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz. Grifo nosso. ↩︎
  4.  Idem. ↩︎
  5.  Sobre o Operativo Independência como antessala do terrorismo de Estado na Argentina, sugerimos a leitura do artigo de Santiago Garaño: “Ensayo del terrorismo de Estado en Argentina: el Operativo Independência (Tucuman, 1975-1977)”. 
    Link de acesso: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/boletin/article/view/9533/8550 ↩︎
  6. Cf. Documento do Programa Verdad y Justicia – El Batallón de Inteligencia 601 (pág.12). Link de acesso: http://www.bibliotecadigital.gob.ar/items/show/1576 ↩︎
  7.  Idem, p.12. ↩︎
  8.  Idem, p.14. ↩︎
  9. Idem, p.15. Destaquemos também, nesta direção, o depoimento do general de brigada da reserva, no dia 15 de outubro de 1986, na causa ‘Comes César Miguel y otros s/infracción’, do Tribunal Oral no Criminal Federal n.5: “Perguntado acerca da atuação que teve o Batalhão 601 na luta contra a subversão, respondeu que por conta de certas dificuldades produzidas nos operativos efetuados em Tucumán no que se referia a luta contra a subversão, assim como também nas empreendidas em outras partes do território que o Comandante em Chefe dispôs em outubro de 1975 [nos marcos do Operativo Independência], ordenou-se a constituição da organização de informação de inteligência no país e tudo o que concernisse ao seu regime de funcionamento e manutenção. Que isto se deveu a que existia uma falha no aproveitamento da inteligência, ou seja, no que se refere a quantidade e qualidade. Como consequência desta ordem foi criado um sistema completo que incluía, através da Chefatura 2 e do Batalhão de Inteligência 601 a criação de um organismo integrado por representantes de todos os serviços de inteligência importantes do país, ao qual todos os organismos deveriam apoiar e contribuir com seus meios e por extensão, cada Comandante de zona, subzona do país devia constituir, sob o seu Comando e em todas as esferas de sua jurisdição em que houvesse comunidades informativas, pequenas centrais de reunião de informação que satisfizessem suas necessidades e contribuíssem de modo conveniente a Central de Reunião de Informação, organizada pelo Batalhão de Inteligência 601. Que a Central de Reunião de Informação estava integrada por pessoal dos serviços de inteligência mais importantes, como o da Força Aérea, da Marinha, pessoal do Batalhão 601, Institutos Penitenciários, a Superintendência de Segurança Federal, prefeitura e SIDE [Secretaria de Inteligência do Estado]” (p.15-16).
    ↩︎
  10.  Idem, p.18. Atentemos a dupla direção encetada por este entramado de informações: “(…) se pode notar a formação de uma rede nacional de comunicações, através da qual as comunidades informativas canalizavam – por telex, delegados ou estafetas (correio) – toda a informação registrada na zona. Se chagava, desta forma, com a informação a todos os organismos das forças armadas, das forças de segurança e delegações da Secretaria de Inteligência de Estado. E de modo inverso, partindo do Batalhão de Inteligência 601, e utilizando os mesmos canais de comunicação, se distribuía a informação que fosse de competência de cada zona. Em algumas oportunidades, inclusive, partindo do Batalhão de Inteligência 601 se solicitavam capturas ou se determinavam alvos para as forças locais atuarem no terreno”. (p.20).
    ↩︎
  11.  Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz. Grifo nosso. ↩︎
  12. Em seu livro El Estado Terrorista Argentino, Eduardo Luís Duhalde chama atenção para os malabarismos retóricos e a engenharia jurídica utilizados pelo governo de Raúl Alfonsín para a implementação das leis nº 23.492 de ‘Punto Final’, publicada no dia 29 de dezembro de 1986 e a de nº 23.521de ‘Obediencia Debida’, publicada no dia 09 de junho de 1997, que garantiam a impunidade de parte considerável dos responsáveis pelo genocídio impetrado pelos militares no autodenominado Processo de Reorganização Nacional. Nestes instrumentos jurídicos são comuns as seguintes expressões: ‘Os superiores interesses da Nação’; ‘A necessidade de construir uma sociedade distinta’; ‘A pacificação da República’, ‘Reconciliação e mútuo perdão’, etc. 
    Se acompanharmos o pronunciamento em Cadeia Nacional do Presidente Raúl Alfonsín acerca da implementação da Lei de Obediencia Debida, podemos destacar, entre seus argumentos, os seguintes eixos de interpretação tergiversantes acerca do terrorismo de Estado levado a cabo entre os anos de 1976-1983: a) A ditadura lida como um ‘desencontro’ entre civis e militares que expressa certa tensão vivida, desde que o mundo é mundo, entre estes dois setores da sociedade; b) A inevitabilidade da superação deste conflito fundado em uma filosofia militar que concebe as Forças Armadas um instrumento de Estado, regulado pelo poder político e à serviço das Instituições e da Constituição de cada país; c) O compromisso de regulamentar as Forças Armadas a partir de um estrito controle republicano a ser garantido por seu governo; d) A leitura do terrorismo de Estado como expressão de uma minoria militar tomada por um messianismo pretoriano apenas e tão somente possível por causa de uma sociedade débil, dividida, enfrentada e que, as vezes, havia perdido o respeito à lei (Aqui é claríssimo a presença da Teoria dos dois demônios como base tergiversante de interpretação do fato histórico); e) O vazio de poder popular, civil e republicano como condição de possibilidade histórica da tomada de poder por uma minoria militar iluminada por este messianismo pretoriano em defesa do Ser nacional. 
    A partir deste momento de seu pronunciamento, já com a imagem em primeiríssimo plano focada no seu rosto, Raúl Alfonsín se dirige explicitamente aos representantes do Partido Militar no intento de justificar a democracia e inocentá-la da situação em que estaria vivendo as Forças Armadas àquele então. Tal trecho é digno de transcrição, vejamos os termos de Alfonsín: “Que pensem os homens de armas qual foi o resultado, não somente para a sociedade em conjunto, mas para a Instituição Militar, qual foi o resultado desta aliança minoritária? Não é certamente porque hoje há democracia na Argentina, que muitos homens de armas se sentem à margem da transformação da sociedade. Não é porque hoje há democracia na Argentina que falta combustível para nossos tanques, navios e aviões! Não é porque hoje há democracia na Argentina, que alguns homens de armas devem enfrentar a Justiça. Pelo contrário, é porque não havia antes democracia! É porque abandonando a democracia alguns homens de armas se converteram em instrumentos de particularidades que os utilizaram e os desprestigiaram, que nos fez herdar a dramática situação em que nos encontramos”. Alfonsín então começa a falar da necessidade de reformar a concepção militar, mas que para tal coisa se dê se faz ‘necessário reconciliar as Forças Armadas com a sociedade argentina.  E concluirá, dizendo que apenas agora, com ‘a superação da condição de debilidade da sociedade, superação esta expressa na fortaleza de um governo da lei, do Estado de Direito, do Estado da Liberdade, e da vida de paz’. Isto posto, como ele dirá a partir do minuto 17’49segundos, ‘nestas condições enviamos ao Congresso da Nação, o Projeto de Lei de Obediencia Debida’. (Grifo nosso) 
    Link de acesso: https://youtu.be/4zFTg44J02Q?si=Kez_b3BMh1WKm3Nb 
    Para terminar esta longa nota, voltemos à crítica de Eduardo Luís Duhalde – na que este apontará o depoimento de Raúl Alfonsín no programa de TV Hora Clave, de 12 de março de 1998, no que o ex-presidente ‘confessará implicitamente que toda a tagarelice literária com que sustntou seus atos não era verdade e que eram outros os motivos. Alfonsín justificou que fizera avançar os termos em que se fundamentavam as leis de Obediencia Debida e Punto Final porque a democracia estava sob grave risco de ruptura institucional por parte das Forças Armadas”. E conclui, Duhalde: “(…) o pacto implícito cívico-militar que subjaz a eles [menciona o caso do governo Alfonsín e de Menem], que poderia se formular de ambos os governos da seguinte maneira: atento a necessária intervenção das Forças Armadas para por fim ao terrorismo, embora não se pudesse legitimar a metodologia empregada, se dispõe de mecanismos para impedir a aplicação de sanções penais aos autores, sob o acordo que não irão intervir na atual atividade do poder civil e no processo democrático, se mantendo como reserva disciplinar ante virtuais alterações sociais da ordem pública”. IN: DUHALDE, E.L. El Estado terrorista argentino. Buenos Aires: Colihue, 2014 (p.191e p.196). (Grifo nosso)
    ↩︎
  13.  Sobre o mencionado caso de Papel Prensa, Cf. https://chequeado.com/el-explicador/claves-para-entender-el-caso-papel-prensa/ e https://latinta.com.ar/2017/03/24/papel-prensa-cuatro-decadas-de-impunidad/ ↩︎
  14. Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz ↩︎
  15.  Idem. Grifo nosso.
    ↩︎
  16.  Idem. Grifo nosso. ↩︎
  17.  Idem. ↩︎
  18.  Cf. “Marché contra mi padre genocida” por Juan Manuel Mannarino. Mariana Dopaso descreve as inumeráveis dificuldades e infortúnios vividos por sua família acossada que era pela presença de seu pai Miguel Etchecolatz – descrito por ela como um pai ausente, irascível e violento. Vejamos um trecho de sua entrevista: “Bastava-nos sua presença para ficarmos aterrorizados. Conhecemos àquele monstro desde que éramos crianças. Não é que tivesse sido um dia um tipo carinhoso e depois tenha se convertido. Vivemos durante muitos anos conhecendo o horror, o que se multiplicou na adolescência – tanto na sua vida pública quanto na vida privada. Por isso é que também fomos vítimas. Ser filha desse genocida me causou muitos problemas. Carregar o seu sobrenome é como algo como um fardo, e a isso não me permito mais. Provocou em mim incomensuráveis angústias, cicatrizes de traumas infantis, e a isto se acrescente que, aos poucos, fomos nos inteirando de sua condição de criminoso no terrorismo de Estado. Foi a encarnação do mal em todos os âmbitos. Etchecolatz fez tudo o que um pai não faz. Era um ser invisível, que usava da violência, e que não podia ser contrariado. Aparentava ter uma família, porém nos tinha asco e era encantador com os de fora. Vivíamos arrastados por ele, eram mudanças o tempo inteiro, sem laços, sem amigos, sem relações de pertencimento. Uma realidade cerceada. Destroçou-nos a vida. Porém, pudemos nos reconstruir”. IN: Revista Anfibia, 12 de maio de 2017. 
    Link de acesso: https://www.revistaanfibia.com/marche-contra-mi-padre-genocida/
    ↩︎
  19.  Cf. Entrevista de Mariana Dopaso: https://youtu.be/UGrwzh-99Qs?si=3yebgBwEKY_cBWSg ↩︎
  20.  A Lei nº 24.390/1994, sancionada no dia 02 de novembro de 1994, previa alterações nos prazos de prisão preventiva. Vejamos o que descreve os artigos 1º, 7º e 9º. Artigo 1º: A prisão preventiva não poderá ser superior a dois anos. Não obstante, quando a quantidade dos delitos atribuídos ao processado ou a evidente complexidade das causas hajam impedido a finalização do processo no prazo indicado, esta poderá ser prorrogada por mais um ano por resolução fundada que deverá ser comunicada de imediato ao tribunal de apelação que corresponda a sua devida jurisdição. Artigo 7º: Transcorrido o prazo de dois anos previsto no artigo 1º, se computará a cada ano de prisão preventiva dois anos de prisão ou um de reclusão. Artigo 9º: A presente lei é regulamentária do artigo 7, ponto 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Cf. Site oficial do governo argentino. Link de acesso: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-24390-776/texto 
    Tal lei, em maio de 2017, foi utilizada em benefício de Luis Muiña que havia sido condenado por haver perpetrado crimes contra a humanidade durante a ditadura militar, e a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina, em decisão apertada, havia decidido pela aplicação do benefício. No entanto, devido à imensa repercussão provocada por tal decisão, nove dias depois foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei nº 27.362/2017, que impede a aplicação da ‘regra 2×1’nos casos de crimes contra a humanidade.
    Cf..https://www.casi.com.ar/ley-27362limitacion-aplicacion-ley-del-2-x-1-delitos-de-lesa-humanidad-y-ot/13
    ↩︎
  21.  Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz ↩︎
  22.  Sobre o tema das Tierra Malhabidas no Paraguai, Cf. https://elsurti.com/pt/oligarquia/reportaje/2021/11/02/recuperar-las-tierras-malhabidas-dificil-pero-no-imposible/
    ↩︎
  23.  Entrevista com Bibiana Reibaldi por André Queiroz
    ↩︎
  24.  Patrícia Bullrich exerceu o cargo de Ministra do Trabalho (em outubro de 2001) e de Ministra da Segurança Social (de outubro a dezembro de 2001) durante o governo de Fernando de La Rúa. Na presidência de Mauricio Macri, foi Ministra de Segurança (2015-2019), e atualmente, é outra vez, Ministra de Segurança (desde dezembro de 2023), no governo de Javier Milei ↩︎
  25. Cf. Resolução n° 956/2018 sobre o emprego de armas de fogo por parte dos membros das Forças Federais de Segurança, assinado pela Ministra de Segurança do governo de Maurício Macri, Patrícia Bullrich. Link de acesso: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/resoluci%C3%B3n-956-2018-316948/texto Para uma leitura crítica da normativa de Bullrich, Cf. https://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2018/12/doctrina47254.pdf
    Sobre gatillos fáciles, sugerimos a consulta à página da Cordinadora contra la represión policial y institucional (CORREPI). Link de acesso: https://www.correpi.org/nuestros-barrios/gatillo-facil/
    Sobre o caso do policial Chocobar, Cf. https://www.pagina12.com.ar/344519-chocobar-asesino-por-la-espalda-y-lo-condenaron-solo-a-dos-a
    Sobre o desaparecimento e assassinato de Santiago Maldonado, Cf. https://www.laizquierdadiario.com/Santiago-Maldonado-seis-anos-de-un-crimen-de-Estado-impune-gobierne-quien-gobierne
    Indicamos ainda o documentário Santiago Maldonado, un crimen de Estado, realizado por Dolores Contreras, Matias Gali, Agustín Trapo, Romeo Guerra e Ana Méndez. 
    Link de acesso: https://youtu.be/ODQnnMsX810?si=iHvAwtJ-pYl7ANFp 
    ↩︎
  26.  Importante destacar que a violência repressiva do governo Milei/Villarruel, referendada pelo Protocolo anti-piquete de Patrícia Bullrich, foi deflagrada já no primeiro trimestre do mandato, quando das marchas contrárias a chamada Lei Õnibus. A matéria de Pagina 12 que disponibilizamos destaca a repressão sem limites às gentes que se manifestavam pacificamente na Plaza del Congreso, em Buenos Aires. Link de acesso: https://www.pagina12.com.ar/709384-palos-balas-de-goma-y-gases-en-otro-dia-de-furia-frente-al-c
    Fundamental ressaltar que a violência de Estado não arrefeceu ao longo do ano de 2024, pelo contrário, o governo segue operando de forma planificada e, a um crescendo, tais ações opressivas como forma de contenção dos protestos populares que tem se massificado à medida que avança o plano de ajuste neoliberal e sua política de saqueio da riqueza nacional. Recentemente, no dia 12 de março/2025, durante marcha dos aposentados em luta contra a precarização de sua condição de vida, o corte nos subsídios aos medicamentos, e a ameaça de suspensão do pagamento do salário àqueles que atingiram o tempo de contribuição, foram inúmeros os casos de detenção arbitrária de manifestantes, assim como foi numeroso o saldo de feridos pelos agentes de repressão do Estado. A repercussão internacional pode ser medida por esta nota da Federação Internacional pelos Direitos Humanos (FIDH): https://www.fidh.org/es/region/americas/argentina/brutal-represion-de-la-protesta-de-los-jubilados-en-argentina
    Sobre a repercussão da violência desatada, ver esta nota bastante ampla de Pagina 12: 
    https://www.pagina12.com.ar/810141-la-marcha-de-los-jubilados-con-los-hinchas
    Sobre a desfaçatez de Patricia Bullrich e sua arena midiática (La Nación) pode ser comprovada neste depoimento da Ministra de Segurança do governo de Javier Milei/Victoria Villarruel: https://youtu.be/yQlp11KEJXA?si=lUnm_HuQSAB2SKyp
    Há de ser destacado que os argumentos de Bullrich são expressão de uma reversão de narrativa e de interpretação dos fatos políticos no intento de justificar o sua violência planificada, ela ressalta que se tratava, durante o protesto dos aposentados em marcha, de uma tentativa de Golpe de Estado, se utilizando de mercenários agentes das torcidas organizadas custeadas por tramas do Kirchnerismo, entre outros. 
    ↩︎

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