Repensando a solidariedade: lealdade sem questionamento ou resistência ética?

O slogan “Estamos com a Palestina, certa ou errada” há muito tem sido uma palavra de ordem de solidariedade, ecoada por argelinos e outros povos que apoiam a causa palestina.
1º de março de 2025 - Estudantes protestam em Amsterdã contra a repressão e a violência do Estado em relação às vozes pró-palestinas e contra as pesadas sentenças aplicadas a três estudantes após os acampamentos de solidariedade de maio de 2024. Um estudante foi condenado a dois meses de prisão por subir em uma escavadeira, enquanto outro foi condenado por jogar uma garrafa de água. Mais uma vez, o protesto de hoje foi recebido com violência e repressão. Três pessoas foram presas: dois estudantes e uma mãe. Foto: Wahaj Bani Moufleh / Activestills

Repensando a solidariedade: lealdade sem questionamento ou resistência ética?

O slogan “Estamos com a Palestina, certa ou errada” há muito tem sido uma palavra de ordem de solidariedade, ecoada por argelinos e outros povos que apoiam a causa palestina.

Por Drª Samah Jabr para o Palestine Chronicle

Traduzido por Caio Porto

O slogan “Estamos com a Palestina, certa ou errada” há muito tem sido uma palavra de ordem de solidariedade, ecoada por argelinos e outros povos que apoiam a causa palestina.

Embora tal sentimento reflita laços históricos profundos e um apoio inabalável, também levanta uma questão crucial: será que a verdadeira solidariedade significa lealdade cega? Ou ela também exige transparência1

O apoio genuíno deve ir além dos slogans — deve comprometer-se com a justiça em suas complexidades, garantindo que a resistência esteja enraizada em integridade e não na imunidade ao escrutínio.

Certa vez, um ativista europeu, profundamente empenhado na causa palestina, perguntou a um grupo palestino sobre a transparência de para onde iam os frutos de seu trabalho da organização. Essa pessoa havia mobilizado apoio, angariado fundos e organizado campanhas. 

No entanto, quando o camarada estrangeiro fez perguntas sobre o devido processo, a resposta foi rápida e indignada:

“A sua pergunta é condescendente, orientalista e fede a salvacionismo branco. Quem é você para exigir transparência [accountability] de nós? Estamos profundamente magoados com a sua pergunta!”

O ativista, desconcertado, havia passado anos defendendo os direitos palestinos, boicotando produtos israelenses e enfrentando consequências pessoais por sua solidariedade. Ele não esperava ser repreendido por simplesmente fazer uma pergunta — uma pergunta que teria feito a qualquer movimento que apoiasse.

Este não é um incidente isolado. Pertence a um padrão mais amplo, em que a luta pela libertação é utilizada como um escudo contra a demanda por transparência [accountability]; em que a retórica do antirracismo é utilizada para suprimir discussões legítimas; em que a solidariedade é interpretada não como um envolvimento mútuo, mas como uma lealdade cega. 

Em nome da resistência à arrogância colonial, enraíza-se uma forma inquietante de exclusão: aquela que substitui o diálogo construtivo com o silenciamento e substitui a responsabilidade com imunidade.

O paradoxo do racismo antirracista

Há uma tendência crescente, na Palestina e alhures, de confundir crítica política com preconceito racial e autoridade moral com dor e sofrimento históricos. Este paradoxo manifesta-se de várias formas:

1.º Instrumentalização da identidade: Rejeitar críticas com base na identidade do orador em vez da substância das suas palavras. Um camarada ocidental solidário que levanta preocupações sobre a condução do movimento é rotulado como arrogante; um crítico interno, por sua vez, é acusado de minar a unidade.

2.º A imunidade do oprimido: a suposição de que o sofrimento confere automaticamente pureza moral. Os oprimidos são considerados pessoas irrepreensíveis, e as suas ações são inquestionáveis. No entanto, a opressão não produz necessariamente virtude, tal como o privilégio não produz necessariamente vício.

3.º Normatividade seletiva: alguns movimentos exigem que os camaradas estrangeiros desafiem a injustiça nas suas próprias sociedades, mas resistem a um escrutínio semelhante quando se trata das suas próprias estruturas. Um ativista que questiona a corrupção num governo ocidental é aplaudido; o mesmo ativista, se questiona a corrupção num movimento de libertação, é vilipendiado.

4.º Repressão às críticas internas: no seio da própria luta, a dissidência interna é frequentemente desencorajada em nome da unidade. Aqueles que questionam a liderança, a má gestão financeira ou as decisões estratégicas são acusados ​​de serem traidores, como se a crítica fosse um ato de traição e não um exercício necessário de integridade.

O preço

Embora tais atitudes possam oferecer uma sensação temporária de satisfação consigo, não servem para a luta. Afastam os aliados empenhados, enfraquecem a posição moral do movimento e permitem que as injustiças internas persistam sem controle.

Um movimento que rejeita o exame de si não cresce — estagna.

A transparência [Accountability] não é uma imposição colonial; é um princípio humano. A causa palestina, como todas as causas justas, deve permanecer aberta à reflexão, à crítica e à reforma. A nossa legitimidade não deve basear-se apenas no nosso sofrimento, mas nos padrões éticos pelos quais conduzimos a nossa resistência e nos governamos.

Rumo à reciprocidade na solidariedade

A verdadeira solidariedade não é um ato de submissão; é um ato de compromisso compartilhado. É preciso ter a mente afiada e o coração pulsante para se envolver em conversas difíceis e ter humildade para ouvir e para falar. Rejeitando tanto a arrogância colonial como uma vitimidade defensiva, devemos promover uma cultura em que a solidariedade seja construída com base na verdade e não na lealdade performativa.

Resistir à opressão é resistir a todas as formas de exclusão e de silenciamento — incluindo as que se disfarçam de resistência. Um movimento baseado na integridade será sempre mais forte do que aquele que é sustentado pelo medo da crítica.

Drª. Samah Jabr é uma psiquiatra clínica que trabalha na Palestina, servindo às comunidades de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia. Foi chefe da unidade de saúde mental do Ministério da Saúde da Autoridade Palestina. É professora clínica associada de psiquiatria e ciências comportamentais na Universidade George Washington, em Washington, DC. Integra o comitê científico da Iniciativa Global contra a Impunidade (GIAI) para Crimes Internacionais e Violações Graves dos Direitos Humanos, uma organização cofinanciada pela União Europeia.

  1.  Accountability, no original. Difícil de traduzir, pode indicar transparência, prestação de contas, responsabilidade, responsabilização. A versão francesa optou por traduzir contextualmente. Importante conceito na ciência política, opto por manter a palavra original em colchetes em todas as suas ocorrências. [Nota da tradução]. ↩︎
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