Por Drª Samah Jabr para o Palestine Chronicle
Traduzido por Caio Porto
O slogan “Estamos com a Palestina, certa ou errada” há muito tem sido uma palavra de ordem de solidariedade, ecoada por argelinos e outros povos que apoiam a causa palestina.
Embora tal sentimento reflita laços históricos profundos e um apoio inabalável, também levanta uma questão crucial: será que a verdadeira solidariedade significa lealdade cega? Ou ela também exige transparência1?
O apoio genuíno deve ir além dos slogans — deve comprometer-se com a justiça em suas complexidades, garantindo que a resistência esteja enraizada em integridade e não na imunidade ao escrutínio.
Certa vez, um ativista europeu, profundamente empenhado na causa palestina, perguntou a um grupo palestino sobre a transparência de para onde iam os frutos de seu trabalho da organização. Essa pessoa havia mobilizado apoio, angariado fundos e organizado campanhas.
No entanto, quando o camarada estrangeiro fez perguntas sobre o devido processo, a resposta foi rápida e indignada:
“A sua pergunta é condescendente, orientalista e fede a salvacionismo branco. Quem é você para exigir transparência [accountability] de nós? Estamos profundamente magoados com a sua pergunta!”
O ativista, desconcertado, havia passado anos defendendo os direitos palestinos, boicotando produtos israelenses e enfrentando consequências pessoais por sua solidariedade. Ele não esperava ser repreendido por simplesmente fazer uma pergunta — uma pergunta que teria feito a qualquer movimento que apoiasse.
Este não é um incidente isolado. Pertence a um padrão mais amplo, em que a luta pela libertação é utilizada como um escudo contra a demanda por transparência [accountability]; em que a retórica do antirracismo é utilizada para suprimir discussões legítimas; em que a solidariedade é interpretada não como um envolvimento mútuo, mas como uma lealdade cega.
Em nome da resistência à arrogância colonial, enraíza-se uma forma inquietante de exclusão: aquela que substitui o diálogo construtivo com o silenciamento e substitui a responsabilidade com imunidade.
O paradoxo do racismo antirracista
Há uma tendência crescente, na Palestina e alhures, de confundir crítica política com preconceito racial e autoridade moral com dor e sofrimento históricos. Este paradoxo manifesta-se de várias formas:
1.º Instrumentalização da identidade: Rejeitar críticas com base na identidade do orador em vez da substância das suas palavras. Um camarada ocidental solidário que levanta preocupações sobre a condução do movimento é rotulado como arrogante; um crítico interno, por sua vez, é acusado de minar a unidade.
2.º A imunidade do oprimido: a suposição de que o sofrimento confere automaticamente pureza moral. Os oprimidos são considerados pessoas irrepreensíveis, e as suas ações são inquestionáveis. No entanto, a opressão não produz necessariamente virtude, tal como o privilégio não produz necessariamente vício.
3.º Normatividade seletiva: alguns movimentos exigem que os camaradas estrangeiros desafiem a injustiça nas suas próprias sociedades, mas resistem a um escrutínio semelhante quando se trata das suas próprias estruturas. Um ativista que questiona a corrupção num governo ocidental é aplaudido; o mesmo ativista, se questiona a corrupção num movimento de libertação, é vilipendiado.
4.º Repressão às críticas internas: no seio da própria luta, a dissidência interna é frequentemente desencorajada em nome da unidade. Aqueles que questionam a liderança, a má gestão financeira ou as decisões estratégicas são acusados de serem traidores, como se a crítica fosse um ato de traição e não um exercício necessário de integridade.
O preço
Embora tais atitudes possam oferecer uma sensação temporária de satisfação consigo, não servem para a luta. Afastam os aliados empenhados, enfraquecem a posição moral do movimento e permitem que as injustiças internas persistam sem controle.
Um movimento que rejeita o exame de si não cresce — estagna.
A transparência [Accountability] não é uma imposição colonial; é um princípio humano. A causa palestina, como todas as causas justas, deve permanecer aberta à reflexão, à crítica e à reforma. A nossa legitimidade não deve basear-se apenas no nosso sofrimento, mas nos padrões éticos pelos quais conduzimos a nossa resistência e nos governamos.
Rumo à reciprocidade na solidariedade
A verdadeira solidariedade não é um ato de submissão; é um ato de compromisso compartilhado. É preciso ter a mente afiada e o coração pulsante para se envolver em conversas difíceis e ter humildade para ouvir e para falar. Rejeitando tanto a arrogância colonial como uma vitimidade defensiva, devemos promover uma cultura em que a solidariedade seja construída com base na verdade e não na lealdade performativa.
Resistir à opressão é resistir a todas as formas de exclusão e de silenciamento — incluindo as que se disfarçam de resistência. Um movimento baseado na integridade será sempre mais forte do que aquele que é sustentado pelo medo da crítica.
Drª. Samah Jabr é uma psiquiatra clínica que trabalha na Palestina, servindo às comunidades de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia. Foi chefe da unidade de saúde mental do Ministério da Saúde da Autoridade Palestina. É professora clínica associada de psiquiatria e ciências comportamentais na Universidade George Washington, em Washington, DC. Integra o comitê científico da Iniciativa Global contra a Impunidade (GIAI) para Crimes Internacionais e Violações Graves dos Direitos Humanos, uma organização cofinanciada pela União Europeia.
- Accountability, no original. Difícil de traduzir, pode indicar transparência, prestação de contas, responsabilidade, responsabilização. A versão francesa optou por traduzir contextualmente. Importante conceito na ciência política, opto por manter a palavra original em colchetes em todas as suas ocorrências. [Nota da tradução]. ↩︎