Resenha – Necropolítica, de Ratos de Porão

Resenha – Necropolítica, de Ratos de Porão

Ratos de Porão criticam a situação política brasileira em seu novo álbum “Necropolítica”. Foto: Clayton Clemente/Reprodução

Em 13 de maio de 2022 foi lançado o álbum “Necropolítica”, da banda Ratos de Porão – 13º álbum de estúdio do grupo. Em sua longa trajetória de mais de 40 anos de estrada, todos os álbuns da banda retrataram a situação política do país. Até então, o álbum “Brasil” (1989) foi o mais preciso em sua forma de representar o contexto histórico, entregando um panorama sobre a economia e cultura da época, em especial sobre a gerência de turno de José Sarney e suas frustradas tentativas de garantir uma mínima estabilidade ao país. Há muito tempo os fãs cobravam um trabalho parecido da banda, sendo “Século Sinistro” (2014) o que se mais se aproximava até então, já que descrevia bem a efervescência das combativas jornadas de luta de 2013 e 2014.

Se no álbum de 1989 o principal alvo era Sarney, em seu mais novo álbum o foco é o presidente genocida Jair Bolsonaro. Muitas músicas são dedicadas ao principal responsável pelas mais de 600 mil mortes decorrentes da Covid-19, causadas por sua política genocida, obscurantista e serviçal do imperialismo sob tutela dos militares.

A seguinte análise tem por objetivo se aprofundar nos aspectos positivos do álbum, sem fugir da crítica e apontando os problemas, mas, sobretudo, exaltando as contribuições da cultura para o atual momento do Brasil. 

O nome “Necropolítica”, nas palavras do vocalista João Gordo, é um termo criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe que significa a política que define quem vive e quem morre, concedendo o direito à vida para as classes dominantes e decretando a morte para populações em situação de vulnerabilidade e “minorias”. É mais um conceito que entra no rol de novas terminologias como “neocolonialismo”, “neoliberalismo”, entre outras, usado para referir-se a temas que já possuem suas nomenclaturas e definições há muito tempo e que, fundamentalmente, nada tem de novo. A “Necropolítica” tratada na obra, nesse momento em que vivemos no Brasil, nada mais é que o capitalismo burocrático que, a partir da crise geral do imperialismo, se aprofunda nas semicolônias para extrair o máximo de riquezas ao garantir uma repressão a altura dos levantamentos de massas causados por essa mesma crise. Já são públicos os crimes cometidos por esse governo militar genocida desde o início da pandemia, porém essa política de beneficiamento das classes dominantes, acompanhada da fome, miséria ou morte das massas é a tônica do nosso país desde que o Estado brasileiro surge como representante dos senhores de terras, dos comerciantes mais poderosos e dos representantes dos interesses dos países capitalistas mais avançados (sobretudo a partir do século 19) e constitui-se como instrumento de repressão do seu povo.

A capa do álbum foi baseada na arte do álbum “Sabbath Bloody Sabbath” (1973) da banda Black Sabbath, em que o paciente em uma maca é cercado por criaturas que estão sugando sua vida. Não confundam com uma crítica às enfermeiras de nosso país! As criaturas ao redor da maca são a velha classe política, militar e as lideranças de  arcaicas instituições que se utilizam das crenças das massas para proveito próprio. Elas induzem a contaminação sem cura e finalizam o “serviço” nos leitos dos hospitais precarizados, vide situação da pandemia em seu auge na cidade de Manaus em 2021.

Capa de “Necropolítica” foi inspirada em Sabbath Bloody Sabbath, da banda Black Sabbath. Foto: Reprodução

A estética musical do álbum, diferente da maioria dos lançamentos da banda, é pouco experimental e mais coesas. Algo visto como positivo para os fãs, já que as faixas de maior sucesso não fogem do que o punk/hardcore/crossover pode oferecer. O sucesso da banda se explica pelo pioneirismo em entregar essa mescla não muito eclética (embora pareça) com maestria desde seus primórdios, além de cantar em português – raridade entre as bandas do estilo.

As mensagens das canções serem bem diretas é reflexo do curto espaço de tempo em que o álbum foi produzido. João Gordo precisou escrever as letras rapidamente para gravá-lo, uma vez que o instrumental já havia sido feito anteriormente. Os próprios membros da banda dizem que poderiam ter entregado um trabalho melhor, entretanto a urgência dos tempos atuais falou mais alto. Sendo assim, a crítica precisa partir desses pressupostos. 

Principais faixas

A primeira faixa “Alerta Antifascista” é um chamado para todos os progressistas e verdadeiros democratas do país se posicionarem e lutarem contra o governo militar representado pelo genocida Jair Bolsonaro. Uma denúncia contra a extrema-direita golpista que sonha em culminar o golpe de Estado reacionário e instituir regime militar fascista.

Genocida depravado
Ditador que come gente
Um perigo eminente
Mentiroso imoral
Ser humano decadente
Especialista em matar
Privatizando o presente
Sem futuro para sonhar”

Ainda que em sua campanha Bolsonaro tenha dito que faria um governo sem corrupção, diversos escândalos já foram divulgados pelo monopólio de imprensa, como o momento em que disse que utilizava o auxílio aluguel fornecido para parlamentares às custas do povo para “comer gente” ou a recente divulgação do desvio de verbas no ministério da Educação, na época chefiado pelo bolsonaristsa Milton Ribeiro. A venda da Eletrobrás e a intenção de privatizar a Petrobrás também entram no conteúdo da letra.

A faixa seguinte se chama “Aglomeração”. A canção tem como foco a denúncia do obscurantismo do governo militar durante a pandemia com suas proposições anticientíficas, como o uso do “Kit-covid” para “tratamento preventivo” ou subestimação da eficácia das vacinas e do uso de máscaras num momento em que não existiam tratamentos tão efetivos quanto atualmente. Num contexto em que era necessário instruir toda a população sobre as medidas de proteção contra o vírus, Bolsonaro dizia que a Covid-19 era apenas uma “gripezinha” e um de seus aliados da extrema-direita, o deputado Osmar Terra (MDB), dizia que não morreriam mais de 2 mil pessoas em decorrência da doença no Brasil. 

Milhões de trabalhadores saíam de suas casas todos os dias durante o auge da pandemia, assim como os autônomos perdiam toda sua fonte de renda sem auxílio algum do governo. O “fique em casa” propalado pela Rede Globo e acatado pelo oportunismo não era uma opção para os trabalhadores e trabalhadoras do nosso país. A aglomeração era inevitável e as medidas de proteção que poderiam amenizar os problemas causados por ela eram subestimadas publicamente por Bolsonaro e sua trupe:

“Tomou sopa de osso
Resto azedo caiu mal
Não tem vaga no SUS
Tá lotado o hospital

Jesus te protege na aglomeração”

Algumas lideranças religiosas, aproveitando-se da crença das massas, corroboravam com os discursos obscurantistas divulgando tratamentos não-comprovados cientificamente para proveito próprio em cerimônias religiosas ou plataformas digitais de longo alcance:

“Virou um puta drama
Uma bíblia em cada mão
Recebi kit covid
Sem miséria, sem perdão

Mais um meme esquisito
No whatsapp da ilusão
Motociata paia
Rumo ao evangelistão”.

“Passa pano pra elite” é a terceira faixa do disco. Reduzindo a velocidade em comparação com as anteriores, faz a denúncia dos membros do governo que tinham investimentos em “paraísos fiscais”, em especial Paulo Guedes. Como é possível um ministro da economia que disse que traria investimentos de todas as partes (especialmente de estrangeiros) não investir no próprio país? Ou seja, independente do que aconteça com o país, ele não será afetado, já que suas economias estão em outro local e cotadas a dólar…

“Aposto que sabia
Boi que pasta
É mais um dia
Sabotando a eleição
E a constituição
O Brasil fudeu
Mas tá tudo bem
No paraíso fiscal, paraíso fiscal!

Organização criminosa no poder
Organização criminosa no poder
Organização criminosa no poder
Organização criminosa no poder”

A despeito das críticas aos apoiadores de internet do Bolsonaro que ainda sonham com uma reviravolta positiva em seu governo, algo secundário em nossa discussão, a música também critica a exaltação do latifúndio como algo moderno e fundamental para nossa economia. Ainda que as mortes no campo sejam frequentes e milhares de massas são reprimidas diariamente ao lutarem por seus direitos fundamentais nessas regiões, a Rede Globo faz propaganda em seus comerciais e Bolsonaro ameaça a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) publicamente.

“O agro é Pop
O agro é Top
O agro é Tech
O agro é Morte!”

A quarta faixa do álbum é a faixa-título “Necropolítica”. A música condensa bem a ideia principal da obra. No período da pandemia, Bolsonaro escolheu o genocídio das camadas populares, sobretudo dos que precisavam se deslocar diariamente independente das medidas de proteção. Enquanto a Rede Globo e outros veículos de comunicação se atentavam às festas que influenciador X ou atleta Y participava, ônibus abarrotados transportavam trabalhadores para seus postos de trabalho nos horários de pico.

Isso evidencia-se pela quantidade imensa de pretos e pardos que morreram em decorrência da Covid-19. Sendo maioria entre os pobres da população brasileira, na maioria das estatísticas essa fatia da população é a que mais sofreu com a contaminação.

“Poder decidir quem deve viver
Poder decidir quem deve morrer
Poder decidir quem deve viver
Poder decidir quem deve morrer
QUEM DEVE MORRER

NECROPOLÍTICA
NECROPODER

Foda-se a vida!
Morte massificada
Vidas descartáveis
Agenda macabra
Máquina racista”

“Guilhotinado em Cristo” é a quinta faixa do disco. Simples e direta, denuncia as diferentes formas pelas quais as classes dominantes assassinaram e assassinam o povo. Entubado, fuzilado, numa câmara de gás ou em decorrência de um suicídio? Um cardápio diversificado está à disposição dos que não têm escrúpulos para manter a exploração.

“Decapitado
Dependurado
Cabeça pra baixo
Pulmão queimado

Câmara de gás
Emparedado
Até sufocar
Morte indolor

Que tal enforcado?
Pelo cadafalso
Morte natural
Baque letal

Executado
Fuzilamento
É profissional

Suicídio
Suicídio
Suicídio
Suicídio”

Pormenorizando sobre o drama de quem foi entubado durante o período pandêmico, a faixa nove “Entubado” denuncia os milhares de assassinatos cujo responsável é  o velho Estado brasileiro através do obscurantismo propagado por Bolsonaro que nega a eficácia das vacinas e das medidas de prevenção, pelo não-investimento na saúde de governantes locais, como é o caso de Manaus. Nessa última, enquanto os hospitais privados tinham oxigênio suficiente para atender os pacientes que podiam pagar por tal tratamento, milhares morriam nas filas dos hospitais públicos buscando atendimento, num verdadeiro genocídio.

Pandemia
É a câmara de gás
Velho, pobre ou preto
Leva a morte eficaz
Sem oxigênio
Manaus já sucumbiu
Gado esperando
Sua vida por um fio
Entubado
A seco a frio
Enganado
Pelo inimigo
Sufocado
Final sofrido
Enterrado
Morte cruel”

Em síntese, o disco é bastante importante no cenário atual, já que é uma banda de grande expressão nacional e internacional denunciando o que vem ocorrendo no país na atualidade. Tal qual o álbum “Brasil” (1989), as futuras gerações terão uma clara noção do que aconteceu no passado e que caminhos tomar no futuro. Precisamos de mais artistas que denunciem os crimes cometidos pelas classes dominantes que, através do velho Estado, assassinam as massas em chacinas, reintegrações de posse e em leitos de hospitais.

Ratos de Porão lança novo álbum seguindo o estilo clássico do punk/hardcore/crossover. Foto: Felipe Diniz/Reprodução

Apesar de em alguns momentos as músicas do álbum entrarem em debates que só se restringem à internet – talvez por influência do isolamento social feito por alguns dos artistas progressistas e seu consequente distanciamento das massas no cotidiano – é fundamental o posicionamento daqueles que defendem uma vida digna para o povo e sua contribuição certamente será formação e combustível de muitos que conhecem a luta de classes através da cultura ou se apoiam nela para se manterem firmes na batalha. É crucial que os artistas populares não se limitem a falar sobre temas totalmente dispensáveis enquanto seus pares sofrem nas favelas, periferias e áreas camponesas. Urge-se a criação artística classista, combativa e revolucionária.

Ficha técnica

Artista: Ratos de Porão

Membros: Boka (bateria), Jão (guitarra), João Gordo (vocal) e Juninho (baixo).

Álbum: Necropolítica

Ano: 2022

Faixas

1 – Alerta Antifacista

2 – Aglomeração

3 – Passa Pano Pra Elite

4 – Necropolítica

5 – Guilhotinado em Cristo

6 – O Vira Lata

7 – G.D.O

8 – Bostanágua

9 – Entubado

10 – Neo Nazi Gratiluz

REFERÊNCIAS

[1] RENATO ALVES, Alves. Ratos de Porão explica letras do álbum “Necropolítica”: “contra família fascista”. Igor Miranda – Música e jornalismo, abril de 2022. Disponível em: https://igormiranda.com.br/2022/04/ratos-de-porao-necropolitica-letras-explicadas/

[2] SANTOS, Gabriel dos. AM: Massas protestam contra falta de oxigênio e colapso do sistema de saúde. A Nova Democracia, fevereiro de 2021. Disponível em: https://anovademocracia.com.br/no-238/15155-am-massas-protestam-contra-falta-de-oxigenio-e-colapso-do-sistema-de-saud

[3] JUNIOR, Homero Pivotto. Entrevista: Ratos de Porão num papo sobre Brasil, pandemia, indústria farmacêutica, genocídio e “Necropolítica”, o novo álbum. Scream & Yell – 22 anos de Cultura Pop, abril de 2022. Disponível em: http://screamyell.com.br/site/2022/04/20/entrevista-ratos-de-porao-num-papo-sobre-brasil-pandemia-industria-farmaceutica-genocidio-e-necropolitica-o-novo-album/

[4] “Três tarefas reacionárias: 1) Tirar o país da crise e impulsionar seu capitalismo burocrático; 2) Reestruturar o velho Estado para impor o regime político correspondente e necessário a manter a velha ordem; e 3) Conjurar o perigo de Revolução através da restrição máxima da liberdade de organização e manifestação das massas, do incremento das leis de criminalização do protesto popular, do endurecimento penal e da escalada da ação violenta dos órgãos de repressão do Estado com a intervenção das Forças Armadas, além da descaracterização e demonização das organizações classistas combativas das massas populares. E se a Revolução se desencadeia, tratar de esmagá-la a ferro, sangue e fogo o mais rápido possível”. EDITORIAL – Nem Bolsonaro e nem Mourão! Fora Forças Armadas reacionárias! A Nova Democracia, maio de 2019. Disponível em: https://anovademocracia.com.br/no-223/11042-editorial-nem-bolsonaro-e-nem-mourao-fora-forcas-armadas-reacionaria

[5] SOUZA, Taís. LCP responde a Bolsonaro: ‘Não vão conseguir parar a luta pela terra’. A Nova Democracia, maio de 2021. Disponível em: https://anovademocracia.com.br/noticias/15782-respondendo-a-ataques-de-bolsonaro-lcp-afirma-nao-vao-conseguir-parar-a-luta-pela-terra.

[6] Ironicamente, a Rede Globo se impressiona com a maioria de negros mortos também em bairros mais abastados, mas desconsidera o número de domésticas, babás e enfermeiras particulares que moram nessas regiões e não tiveram a mesma “sorte” que seus patrões ao serem contaminadas. SANTIAGO, Tatiana. Negros morreram quase duas vezes mais de Covid- 19 do que brancos no Itaim Bibi em 2021, diz pesquisa. G1 SP, setembro de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/13/populacao-negra-morreu-17-vez-a-mais-de-covid-19-do-que-populacao-branca-no-itaim-bibi-em-2021-diz-pesquisa.ghtml.

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