RS: Grandes vinícolas impõem servidão e torturas a 200 camponeses

No dia 22 de fevereiro, quase 200 camponeses foram encontrados em situação “análoga à escravidão”, na cidade de Bento Gonçalves.
Alojamento em que eram mantidos os camponeses. Foto: Reprodução/PRF
Alojamento em que eram mantidos os camponeses. Foto: Reprodução/PRF

RS: Grandes vinícolas impõem servidão e torturas a 200 camponeses

No dia 22 de fevereiro, quase 200 camponeses foram encontrados em situação “análoga à escravidão”, na cidade de Bento Gonçalves.
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No dia 22 de fevereiro, quase 200 camponeses foram encontrados em situação “análoga à escravidão”, na cidade de Bento Gonçalves. Os camponeses eram em sua maioria migrantes baianos que haviam sido contratados por uma empresa terceirizada, Oliveira & Santana, dona das terras, para realizar trabalho temporário na colheita de uva para três grandes vinícolas: Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. Os camponeses foram torturados após uma tentativa de denunciar suas condições de trabalho por telefone celular e de fugir do local.

O responsável pela empresa terceirizada, Pedro Augusto de Oliveira Santana, de 45 anos, natural de Valente (BA), chegou a ser preso, mas vai responder pelo crime em liberdade, pois pagou fiança no valor irrisório de R$ 40 mil.

As condições

Um camponês que trabalhou na colheita, que se identificou com o nome fictício de Marcelo em entrevista ao jornal do monopólio de imprensa GaúchaZH, afirma que foi da Bahia à Serra Gaúcha pois estava desempregado e havia recebido proposta de salário de R$ 3 mil, com alimentação e alojamento inclusa. Foram enviados links para sites da empresa aos camponeses e realizadas palestras pelo aliciador para enganar os trabalhadores. Os camponeses, em alguns dos alojamentos, eram todos do mesmo bairro e alguns da mesma família.

Marcelo conta que, ainda na estrada, o gasto com comida nas paradas – em lugares caros – já estava sendo descontado do salário. A promessa de banho quente e descanso logo caiu por terra: o banho era em uma torneira gelada.

— Tinham dito que íamos acordar 6h da manhã para trabalhar, mas não aconteceu nada disso. Às quatro horas nós estávamos sendo acordados para ir trabalhar. Logo no primeiro café da manhã faltou pão e café para trabalhadores, não só na roça que eu trabalho — complementa. 

Além das condições de alojamento horríveis, os camponeses trabalhavam das 5h às 20h, sem pausa, com direito de folga apenas aos sábados. Apesar disso, eram obrigados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos. 

— Eles nos acordavam gritando “bora” seu demônio, dormiu a noite inteira e “tá” com preguiça?. Era um bocado de gente num quarto só, um abafamento, não tinha ventilador, não tinha TV, comida ruim. Uns dormiam no chão, porque o quarto estava cheio — diz outro trabalhador que não quis se identificar.

Tortura e fuga

Marcelo conta que foi torturado com choques elétricos e outras agressões após divulgar, em um grupo de rede social, um vídeo relatando que era obrigado a trabalhar com roupa molhada e que era alimentado com comida estragada.

— Tomei cadeirada, spray de pimenta, estou com os dentes moles. Eu escutei eles falando que um carro estava vindo para levar para me matarem. O tempo dos escravos eu não vivi, acho que nem minha bisavó viveu. Hoje vai existir escravo de novo? Não vai. O que depender de mim, não vai, eu vou abrir minha boca, eu vou falar que está errado — afirmou, Marcelo.

O camponês, em um momento de distração dos capatazes, pulou de uma janela, correndo até um mato próximo. Ele e mais dois trabalhadores que fugiram com ele, através do telefone de um deles, entraram em contato com a família e receberam uma transferência bancária para conseguir pegar um ônibus. Pararam em Caxias do Sul, onde entraram em contato com a Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Enquanto o trabalhador fugia, os outros camponeses eram ameaçados para falar seu paradeiro: “Eles falavam ‘você vai ter que dar (o número do telefone) ou você vai morrer. Todos que vieram com ele vão ter que morrer’”, contou o outro camponês, que também havia conseguido escapar para Porto Alegre após as ameaças de morte.

Relações de trabalho pré-capitalistas

Outros trabalhadores relataram ao portal do monopólio de imprensa G1, sobre a situação de trabalho no local: “Todos os dias, a gente amanhece com o pensamento de ir para casa. Mas não tem como a pessoa ir para casa, porque eles prendem a gente de uma forma que ou a gente fica ou, se não quiser ficar, vai morrer. Se a gente quiser sair, quebrar o contrato, sai sem direito a nada, nem os dias trabalhados, sem passagem, sem nada. Então, a gente é forçado a ficar”.

Além disso, acrescentaram que eram indicados a comprarem comida em uma loja que praticava preços elevados, como um saco de feijão por R$22, para manter os camponeses endividados com a empresa latifundiária.

Essas relações de trabalho pré-capitalistas são fruto da grande concentração de terras (1% dos proprietários possui quase metade das terras agricultáveis), fator primeiro que gera toda a desgraça para o campesinato. 

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Ao contrário de incorporar esses camponeses em relações mais avançadas de trabalho (capitalistas), os latifúndios se aproveitam da situação calamitosa daqueles para estabelecer as relações de trabalho mais brutais, interior adentro, como se registra à exaustão nos chamados “trabalhos análogos à escravidão” (formas semi-escravistas e semifeudais). Mesmo o “agronegócio”, que emprega força de trabalho extensiva, não absorve tal massa camponesa senão que em atividades complementares à produção, como rescaldo após colheita nos cultivos pelos maquinários, em formas variadas de servidão.

Na Bahia, estado de onde vieram os camponeses em questão, atualmente ocorre uma intensa mobilização do campesinato em luta pela terra. Do dia 30 de janeiro ao dia 13 de fevereiro, cerca de mil camponeses baianos participaram das mobilizações, tomando terras, fechando rodovias ou ocupando prédios do velho Estado.

Leia também: Camponeses se mobilizam com ocupações e protestos e estremecem a Bahia

A Bahia é, de acordo com o relatório de conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2021, o terceiro estado no número de conflitos agrários no Brasil.

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