Ruspo: resistência indígena em letras e sons
Vinicius Alves
- Ano XVI, nº 192 – 2ª quinzena de Julho de 2017
“Moleque agroboy, não nasci no pantanal, ando com meu pistoleiro para exterminar geral, andamo de Hilux, viemo pega terra, a chatuba do agroboy do bonde da Bunge, é”. Estes versos são da música “Chatuba do agroboy”, escrita e cantada por Ruspo, projeto musical do jornalista paulista Ruy Sposati. Com dois álbuns gravados – Esses Patifes, de 2013, e Dourados, de 2016 –, o músico tem se destacado com as suas letras que retratam o cotidiano do povo brasileiro, com especial atenção para os povos indígenas.
Diversidade, eis a palavra que define os dois álbuns de Ruspo. Diversidade de sons e temáticas em suas composições, reflexo da experiência vivida pelo músico ao longo de suas viagens feitas pelo país em seu trabalho como jornalista.
Inspirado pela diversidade cultural dos povos indígenas, o artista explora os sons de diferentes instrumentos (reais e virtuais) em suas canções, mesclando diferentes ritmos, potencializando assim as suas composições líricas.
O agro que assassina e destrói
“Tia Kátia vai no fórum e faz sua abordagem, pra eu sair de noitezinha e fazer uma sacanagem, pulveriza o veneno de cima do avião, te apresento aqui a minha soja tipo exportação, máquina agrícola, detono igual animal, com papai e o pistoleiro eu apavoro geral, moleque agroboy, não nasci no Pantanal, ando com meu pistoleiro para exterminar geral”. Os versos citados são da canção Chatuba do agroboy, contida no álbum Esses Patifes, que nos traz uma crítica ao sistema do latifúndio de nova roupagem, chamado “agronegócio”.
A canção satiriza os filhos dos latifundiários, os “agroboys”, que adotam práticas consumistas e degeneradas, com forte influência da cultura de massas do Meio-Oeste ianque, terra dos “cowboys” e da “country music”, que no Brasil influenciou o “sertanejo universitário”. O “agrobusiness”, com a sua “modernidade” simbolizada, por exemplo, no uso de máquinas, agrotóxicos e transgênicos, se mantêm sobre relações de produção e práticas sociais atrasadas, assentadas na semifeudalidade que se expressa inclusive militarmente, com o uso de bandos de pistoleiros para assassinar e expulsar camponeses, indígenas e quilombolas de suas terras, fato denunciado na música.
A “miss desmatamento”, isto é, a senadora latifundiária Kátia Abreu/PMDB, ministra da Agricultura no gerenciamento de Dilma/PT, entre 2015 e maio de 2016, aparece na canção pelo seu trabalho político e ideológico de defender o latifúndio no parlamento e por garantir os interesses deste dentro do velho Estado, permitindo que os “agroboys” possam farrear tranquilamente pelas cidades.
Em Tekoha, do mesmo álbum, temos um relato da história de expulsão violenta e sangrenta dos Guarani e Kaiowá de suas terras tradicionais por latifundiários em conluio com o velho Estado brasileiro.
“Derrubaram os carandá, fui parar longe daqui, até retomar pra cá, acampei 14 anos, fugi mais 70 anos, avião solta veneno, perdi 3 filho tia e marido envenenado atropelado, finado meu pai minha mãe, finado meu tio avô”, diz um trecho da canção.
Mas como diz o ditado: onde há opressão, há resistência. Os Guarani e Kaiowá lutaram e lutam para retomar as terras que lhes são de direito. Ou como diz a canção Tekoha: “Eu quero que me plante aqui na aldeia, porque é aqui que eu nasci, me expulsaram e eu voltei”.
A expansão do agronegócio no Centro-Oeste brasileiro a partir das décadas de 1960 e 1970, impôs um predomínio da monocultura e da pecuária extensiva. Com isto, várias extensões de terras tornaram-se “desertos” de cana-de-açúcar, soja, milho e capim para alimentar o gado. Ruspo ironiza esse cenário pobre construído pelo agronegócio em Tekoha: “o que não é soja é gado, o que não é milho é gado, o que não é cana é gado, o que não é aveia é gado, eucalipto é gado”.
No álbum Dourados, encontramos a canção Meu Glorioso Clodiodi, que presta uma homenagem ao agente de saúde Clodiodi Aquileu de Souza, jovem liderança Guarani e Kaiowá assassinada brutal e covardemente por latifundiários e pistoleiros em um ataque em 14 de junho de 2016, em Caarapó (MS).
A canção traz versos que denunciam a ação do latifúndio e de seus bandos paramilitares de pistoleiros: “Botaram fogo em tudo, tentaram enterrar o corpo com a carregadeira […] encapuzados da milícia paramilitar, atiraram sem trégua […] acertaram professores e lideranças, agentes de saúde e as crianças, rezadores e rezadoras e as guerreiras […] o fazendeiro louco, mete fogo em nós […] meteram sem miséria, tiro de 12, 38 e espingarda”. E o refrão da música ressalta: “meu glorioso Clodiodi, meu glorioso mártir”.
Em Dourados State of Mind, do mesmo álbum, a cidade de Dourados (MS), é o cenário para a vida e luta dos povos indígenas. A canção retrata a violência e o preconceito sofrido por estes povos nas suas terras, nas ruas e praças da cidade: “Jagunço de luxo cuidando da casa, não é fácil morar na Faixa de Gaza […] sonho desenvolvimentista, usinas de cana, aqui em Dourados, um filme de bangue-bangue na sombra do delírio verde-dourado […] aqui em Dourados, preparados para o combate com nossas milícias”.
Nessa canção, o músico se utiliza do lema da Gaspem: “Seguranças bem treinados, tiro de ação reflexo”. A Gaspem é uma empresa de “segurança privada”, uma fachada para ação de pistoleiros, sediada em Dourados, envolvida em uma série de ataques a comunidades indígenas e responsável pela ação que resultou na morte do cacique Nísio Gomes em 18 de novembro de 2011.
Hidrelétrica que alaga e destrói
Os gerenciamentos oportunistas de Lula e Dilma/PT – baseados na doutrina “neodesenvolvimentista” de favorecimento a fração burocrática da grande burguesia – foram responsáveis pela elaboração de um conjunto de projetos para construções de hidrelétricas na região amazônica, elaborados dentro do contexto do “Programa de Aceleração do Crescimento” (PAC). O projeto mais conhecido de todos é o da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em construção na bacia do Rio Xingu, próximo a Altamira (PA).
Ruy Sposati, que viveu em Altamira, satiriza o delírio “neodesenvolvimentista” petista em uma canção que leva o nome desta cidade, presente no álbum Esses Patifes: “e o rio Xingu? Vão barrar, e o Tapajós? Vão barrar, e o Teles Pires? Vão barrar, e o Madeira? Já barraram”.
Em Jacareacanga, última faixa do álbum Dourados, a sonoridade é composta por sons eletrônicos que se fundem com os sons da fauna, sobre a qual são construídas uma lírica que aborda a resistência indígena contra a construção de hidrelétricas, que põem em risco o seu modo de vida e os seus territórios.
Os primeiros versos da canção já destacam a combatividade dos povos originários: “Apontamos flechas nos engenheiros sim, essa floresta é nosso supermercado, lá do Planalto, o teu ministro diz, que aqui não é lugar pro nosso roçado”.
Nessa canção ouvimos também que era “uma barragem, atrás da outra feito uma cordilheira de concreto e de aço”. E os indígenas se questionam: “será que o mundo é tão pequeno assim, que não dá prá deixar a gente em paz?”.