Gravura do século XIX. Foto: Reprodução
Sandor Petőfi foi um destacado poeta e líder revolucionário democrático atuante na guerra de libertação da nação húngara contra o Império Austríaco, no século XIX. Dedicou sua vida à independência de seu povo, seja através da poesia, onde denunciava os sofrimentos do povo húngaro e salientava sua resistência e espírito revolucionário, como também participando ativamente no processo revolucionário e de independência, caindo em combate nos últimos dias de julho de 1849. Ainda hoje é lembrado como pai da lírica húngara.
Primeiros anos do poeta
Nascido em 1823, filho de um pai açougueiro e estalajadeiro e de uma mãe criada e lavadeira, Sandor cresceu sob o esforço de seus pais para garantir uma educação de qualidade ao filho. Devido aos problemas financeiros, no entanto, seus pais tiveram que o retirar da escola que frequentava aos 15 anos e o jovem começou a trabalhar em teatros e depois como professor e soldado. Na sua juventude, enfrentou a miséria, chegando a adoecer de desnutrição.
Apesar das privações, ele conseguiu completar a educação, atingindo estabilidade financeira e encontrando uma editora que publicou seus poemas, agradando os leitores por resgatar elementos populares, tradicionais e folclóricos de seu povo. Já adulto, ele se muda com sua esposa para Pest, onde os dois se aproximam de outros intelectuais e estudantes que buscam estabelecer o húngaro enquanto idioma no teatro e na literatura, outrora dominado pelo alemão.
Envolvimento na Revolução de 1848
Em 1848, a Hungria ainda pertencia ao Império Austríaco, o povo austríaco, do campesinato à baixa nobreza, demonstrava insatisfação desde o começo do século. Com a eclosão das revoluções burguesas em todo o continente europeu, o povo húngaro se levanta no dia 15 de março. Quando eclodiu a revolução, Petőfi era uma liderança chave em Pest. Fazia parte do grupo conhecido como Jovens de Março (Márciusi Ifjak) e havia co-escrito os documentos mais importantes dos revolucionários, inclusive duas demandas.
O império, abalado com a revolução na sua própria capital (Viena), acatou as demandas dos revolucionários, chamadas então “Leis de Abril”, que garantiam, entre outros pontos, a instituição de um governo húngaro independente em Buda e Pest, a convocação de uma assembleia nacional anual, a igualdade civil e religiosa perante a lei, a criação de um exército nacional, a contribuição igualitária de encargos públicos, a supressão dos direitos senhoriais sobre a terra e a criação de um banco nacional.
Em dezembro, o imperador Fernando V abdicou do trono austríaco, assumindo Francisco José I, que iniciou uma série de ataques à Hungria visando reverter a condição nacional conquistada pelos revolucionários em abril.
Diante de uma série de ataques austríacos e de uma luta interna contra os partidários da descontinuidade da guerra, os revolucionários proclamaram a independência da Hungria em abril de 1849 e, em seguida, conseguiram recuperar a cidade de Buda outrora tomada pelos inimigos. Petőfi havia ingressado no Exército Revolucionário Húngaro, onde lutou no front da Transilvânia.
O Exército Revolucionário avançava, quando, acuado, o Império Austriáco correu clamando ajuda à Rússia czarista, que interviu em favor dos Habsburgos, estrangulando a revolução. O poeta tombou no campo de batalha durante uma das últimas e mais sangrentas pelejas da revolução, em Segesvár, no final de julho de 1849.
Durante todo o percurso da revolução, Petőfi não só se manteve convicto aos ideais revolucionários, como foi opositor ferrenho das classes reacionárias que buscavam subverter o caráter da revolução, atacando particularmente à nobreza em seus poemas.
Os poemas[1]
PÃO ESCURO (1845)
Boa mãe, porque te preocupas?
Porque o teu pão é escuro? Só por isso?
Quando o teu filho não está em casa
Porventura é mais branco o pão que tem?
Põe-no à minha frente, tal qual é,
Deixa ser escuro. Melhor me sabe
O pão escuro aqui em casa, boa mãe,
Do que o pão branco noutro sítio qualquer,
ATRÁS DE MIM O PASSADO… (1846)
Atrás de mim a formosa floresta azul do passado,
À frente a bela sementeira verde do futuro.
Aquela cada vez mais longe, e ainda assim não me deixa,
A esta não chego eu, embora me esteja perto.
E deste modo vou andando na estrada,
Que é uma estrada deserta, assustadora,
Vou andando abatido
No meu eterno agora…
UM PENSAMENTO ME PERTURBA (Pest, Dezembro 1846)
Um Pensamento me perturba e faz sofrer:
Na cama entre lençóis morrer!
Lentamente, como flor murchando,
Em si dentro secreto insecto ruminando;
Lentamente minha vida como vela a encurtar
Num canto de quarto vazio morrendo a se apagar!…
Deus, Deus meu, não me deis tal morte!
Não! meu Deus, não tal morte!
Faz-me como árvore pelo raio fulminada
Ou, no temporal, pelos ventos desenraizada…
Ou rocha que terramoto dos altos faz rolar
Tremendo céus e terra pelo seu caminhar… –
Quando todo o escravizado povo, seu jugo odiando
Se vai do combate aos campos lançando,
Os rostos, quais rubras bandeiras, já enrubescidos,
E em tais pendões os gritos de combate escritos.
“O mundo libertar!” –
Tal grito a ressoar
De leste a oeste trovejando,
E contra o povo a tirania esbravejando –
Lá quero tombar, lá!
No campo de batalha, lá!
Lá, do meu coração que jorre o sangue
E as últimas palavras brotem de minha boca exangue:
Lá, engolidas elas sejam pelo aço a tilintar,
Pelo som das trombetas, canhões a troar
Lá, meu mortal corpo atravessando,
Corcéis passem relinchando,
Pela final vitória lograda ficando
Espezinhado, lá, meus ossos espalhados:
Se hão-de vir os funerais esperados,
Músicas lentas e solenes entoadas
Drapejando as bandeiras enlutadas –
E, heróis, da vala comum irão ao fundo
Mortos por ti, do mundo Santa liberdade!
EFÊMERO (1846)
Rei dos reis é o efêmero
E este mundo é o grande palácio
Em que sempre deambula.
Não há sítio onde não chegue.
Tudo aquilo que pisa
Destrói logo… espalhando à sua volta
Coroas partidas, flores murchas,
Corações despedaçados.
SE VIESSE UM ENORME TEMPORAL… (1848)
Se viesse um enorme temporal
Que o céu rasgasse
E o globo do mundo
Lá dentro esborrachasse!
O SONHO… (1846)
O sonho
É o dom mais belo da natureza.
Abre o país dos desejos
Para encontrarmos nele
Tudo o que falta à nossa vida.
Em sonhos
O pobre não passa fome nem frio.
Anda vestido de púrpura
Sobre a mole alcatifa de belas salas.
Em sonhos
O rei não julga, não castiga, não concede perdão…
Saboreia a calma.
Em sonhos o adolescente encontra a sua amada
Por quem sofre de um amor proibido
Que lhe arde no peito e o consome.
Eu, nos meus sonhos,
Rompo as cadeias dos povos escravizados!
LIBERDADE, AMOR! (1847)
Amor e liberdade
ambos me são precisos.
Pelo meu amor sacrifico
a vida.
Pela liberdade sacrifico
o meu amor.
EM NOME DO POVO (1847)
O povo ainda pede, dai-lhe agora!
Não sabeis como é terrível quando se revolta,
Quando em vez de pedir agarra e arrebata?
Não ouvisteis falar de György Dózsa[1]?
Foi sentado por vós num trono de ferro em brasa,
Mas não queimou o seu espírito esse fogo
Pois era o próprio fogo. Cuidado,
Aquelas línguas podem devorar-vos!
Outrora o povo só reclamava comida.
Era ainda animal, um animal que por fim
Se converteu em homem. E ao homem como homem
Correspondem direitos. Direitos, sim,
Direitos do homem para o povo! Não os ter
É para os filhos de Deus o pior estigma.
E quem lhes impuser esse sinal
Não poderá evitar o castigo divino.
Por que sois vós privilegiados?
Por que está o direito do vosso lado?
OS vossos pais conquistaram a pátria,
Mas o suor do povo escorre nela.
De que serve dizer: está aqui a mina
Se não há mãos para escavar o solo
Até que surja brilhando o filão de ouro…
E estas mãos não têm nenhum mérito?
Vós que repetisteis orgulhosos:
É nossa a pátria, nosso o direito!
Que coisa farieis com a pátria,
Se de repente o inimigo a atacasse?
Mas que pergunta! Mil desculpas,
Já me esquecia do feito de Györ[3]!
Quando erguereis um monumento
A tantos pés heróicos que fugiram?
Ao povo os seus direitos! Em nome
Da humanidade grandiosa e sacra
Dai-lhe direitos! E também em nome
Da pátria, que cairá sem um apoio novo.
A vós pertence a rosa da Constituição
E ao povo lançasteis os espinhos.
Dai-lhe algumas das pétalas, algumas,
Guardai ao menos metade dos espinhos!
O povo ainda pede, dai-lhe agora!
Não sabeis como é terrível quando se revolta,
Quando em vez de pedir agarra e arrebata?
Não ouvisteis falar de György Dózsa?
Foi sentado por vós num trono de ferro em brasa,
Mas não queimou o seu espírito esse fogo
Pois era o próprio fogo. Cuidado,
Aquelas línguas podem devorar-vos!
CANÇÃO DOS CÃES (1847)
A tempestade ruge
Sob as nuvens do céu.
Filhas gêmeas do Inverno,
Chuva e neve castigam.
A nós que nos importa?
Há um canto da cozinha
Em que o amo nos pôs,
Clemente, generoso.
Nem a comida falta.
Depois de saciado
O amo deixa os restos,
Que são todos para nós.
O seu chicote, é certo,
Estala às vezes e dói.
Mas as nossas feridas
Cicatrizam depressa.
Quando a fúria lhe passa
Chama-nos novamente.
E nós vamos, felizes,
Lamber-lhe os pés clementes!
CANÇÃO DOS LOBOS (1847)
A tempestade ruge
Sob as nuvens do céu.
Filhas gêmeas do Inverno,
Chuva e neve castigam.
Um árido deserto:
É esta a nossa casa.
Não tem nem um arbusto
Que nos conceda abrigo.
O frio no exterior
E a fome por dentro
São cruéis inimigos
Que nos fazem sofrer.
E mais um nos persegue:
A espingarda certeira.
Cai no branco da neve
Nosso sangue vermelho.
Temos frio, temos fome
Nas entranhas feridas.
Temos toda a miséria…
Contudo somos livres!
ERGUE-SE O MAR… (1848)
Ergue-se o mar,
O mar dos povos,
Que aterroriza o mundo inteiro
Com vagas enormes, destemidas,
Com a sua força tremenda.
Vedes esta dança?
Ouvis esta música?
Se ainda o não sabeis
Podeis aprender agora
De que maneira o povo se diverte.
O mar estremece e ruge,
Os navios balançam
E afundam-se no inferno.
As velas rotas abatem-se
Sobre os mastros quebrados.
Delira mar,
Delira à tua vontade,
Mostra o abismo profundo
E lança para o céu
Uma nuvem de espuma.
Escreve com ela
o teu aviso eterno:
Embora a galera esteja por cima,
E por baixo a corrente do mar,
É o mar quem manda!
CANÇÃO NACIONAL (1848)
De pé, húngaros, a pátria chama!
Eis o momento, é agora ou nunca!
A questão é ser escravos
Ou ser livres. Escolhei!
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
Temos sido escravos até hoje,
Mas os nossos avós, que foram
Homens livres, serão malditos
Se os deixarmos ficar em terra escrava.
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
É um canalha o homem
Que não ousa morrer
E antepõe uma vida mesquinha
À honra da sua pátria.
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
Brilha mais a espada que as correntes,
Enfeita melhor o braço,
E nós estamos ainda acorrentados!
Peguemos nas espadas de outrora!
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
O nome dos húngaros será de novo
Belo digno da sua fama.
Lavemos a desonra secular
Acumulada sobre nós!
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
Onde formos enterrados
Hão-de ajoelhar-se os nossos netos
Invocando em orações
Os nossos santos nomes.
Pelo deus dos húngaros
Juremos,
Juremos que escravos
Nunca mais seremos!
A EUROPA ESTÁ CALMA, ESTÁ CALMA OUTRA VEZ… (1849)
A Europa está calma, calma outra vez,
As suas revoluções passaram…
Vergonha para a Europa! Está calma
E não alcançou a liberdade.
O húngaro foi deixado sozinho
Pelos outros povos indignos.
Todas as mãos estão presas por cadeias,
Só os húngaros ainda pegam na espada.
Deveremos afligir-nos,
Desesperar-nos com isso?
Pelo contrário, pátria,
É isso que nos alenta.
É isso que nos dá ânimo,
Sermos a luz da lâmpada
Que brilha na escuridão
Enquanto os outros dormem.
Se a nossa chama não ardesse
No meio da noite imensa,
Poderiam pensar lá em cima no céu
Que o mundo não existe.
Olha para nós, olha, liberdade,
Reconhece os povos de agora:
Enquanto os outros nem sequer ousam
chorar, nós fazemos a dádiva do sangue.
Ainda exiges mais, para que
a tua bênção não seja imerecida?
Numa época infiel, fomos os últimos,
E os únicos a manter-nos fiéis!
[1] Todos os poemas acima foram traduzidos por Yvette K. Centeno, com a exceção do poema “Um pensamento me perturba”, traduzido por José Blanc de Portugal.
[2] György Dózsa: cavaleiro húngaro que, nos primeiros anos do século XVI, liderou uma revolta camponesa contra a nobreza latifundiária. Após ordens da Igreja Católica, a nobreza húngara exigiu que Dózsa liderasse uma cruzada contra o Império Otomano, composta majoritariamente por camponeses. Os camponeses se queixaram a Dózsa pela falta de fornecimento de roupas e alimentos, e denunciaram ameaças de violência às suas famílias que sofriam dos senhores de terra se não retornassem na época da colheita. Dózsa organizou as massas e transformou a cruzada em um ataque ao latifúndio e à nobreza. A rebelião foi esmagada e Dózsa foi torturado em um trono de ferro em brasa. Ele foi forçado a usar uma coroa e segurar um cetro, ambos de ferro aquecido, para zombar de sua condição de “rei dos camponeses”. Além disso, 70.000 camponeses foram torturados. Essas medidas provocaram o desprezo ainda maior das massas pelo reino húngaro, facilitando a invasão otomana em 1526.
[3] Györ: cidade no noroeste da Hungria. Durante a invasão otomana, o comandante da cidade, Kristóf Lamberg, julgou ser inútil defender a cidade e então a incendiou.
Referências bibliográficas
RÓZSA, Zoltán. Poetas Húngaros. 2ª Edição. Porto: Limiar, 1991.
VIZENTIN, M. Por que os húngaros comemoram o dia 15 de Março?. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 17, p. 13-21, 2017.