SC: Burguesia destrói obras com 5 mil anos (1ª. Parte)

SC: Burguesia destrói obras com 5 mil anos (1ª. Parte)

“Há quase 5 mil anos os egípcios construíram a pirâmide de Quéops. O que você diria se a atual população do Egito destruísse esta pirâmide para aproveitar suas pedras em calçamentos ou na construção de muros? A ideia soa tão absurda, que tal exercício de imaginação parece impossível, não é mesmo?” – assim começa um texto do historiador e professor Viegas Fernandes da Costa, publicado no Portal Desacato, no qual ele denuncia as perdas, freqüentes, sofridas pelo acervo arqueológico milenar do litoral catarinense, um dos mais notáveis do mundo.  

“Se parece absurdo destruir uma pirâmide egípcia para utilizar suas pedras na construção de muros e calçadas, por que não soa absurda a destruição dos nossos sambaquis, construídos desde há quase 5 mil anos (OBS: Outras descobertas dataram até de 6 mil anos aproximadamente) e que abrigam a história de dezenas de gerações que ali deixaram seus registros?” – perguntava-se Viegas na denúncia escrita em julho de 2014, referindo-se ao comportamento vandálico das classes dominantes locais, que atualmente ainda avançam contra tais áreas através de seu poderoso setor imobiliário privado e também o de obras públicas governamentais.  

Informou o professor em A Vandalização do Patrimônio Arqueológico: “Alguns dos sambaquis (chamados também de concheiros ou casqueiros) encontrados no litoral sul de Santa Catarina estão dentre os maiores do mundo. Entretanto, apesar da sua antiguidade e riqueza arqueológica, há décadas vêm sendo ocupados pela expansão urbana e destruídos para servirem (de material) na construção civil, na produção de adubos e para o aterramento de terrenos. Muitos foram utilizados na composição da base para a construção da BR-101 (anos 1960/70).”

MARRETADAS DA PREFEITURA

Além dos sambaquis, o litoral catarinense é rico em outros tipos de sítios arqueológicos. O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) cadastrou a existência de 1471 desses sítios no Estado (até 2014, número defasado portanto).

A fartura em alimentos marinhos e a fascinante paisagem costeira, tidas por algumas tribos indígenas como similares ao paraíso da Terra Sem Mal, atraiu diversas populações pré-históricas às praias de SC, hoje substituídas por lucrativos loteamentos com casas ou condomínios de arranha-céus.

Entre os outros elementos arqueológicos citados pelo professor Viegas está Garopaba e suas pedras-oficinas. “Próximo à praia da Ferrugem, turistas caminham sobre antiquíssimas oficinas líticas, locais onde povos pré-coloniais produziam suas ferramentas e armas de pedra, sem se darem conta da história do local. Estas oficinas se espalham de norte a sul do nosso estado, e poderiam agregar valor ao turismo catarinense. Entretanto, são ignoradas e vandalizadas, inclusive pelo próprio poder público, que tem a responsabilidade de preservá-los”.

Neste sentido o livro A Arte Rupestre em Santa Catarina, denuncia que em 1975 a gerência municipal de Garopaba ordenou a destruição, à marretadas, da oficina lítica do Costão da Casqueira. Isso porque a Prefeitura queria aproveitar as pedrinhas negras no calçamento da praça central da cidade. “Absurdos como este, entretanto, não são exceção, e a vandalização do patrimônio arqueológico em Santa Catarina continua sendo praticado” – criticou Viegas.

ARTE RUPESTRE ÚNICA NO MUNDO

 “Tão importante quanto os sambaquis e as oficinas líticas é o conjunto de inscrições rupestres distribuídas pelo litoral centro-sul catarinense” – destacou ele. E prosseguiu: “André Prous, em seu livro Arqueologia Brasileira (1992) ao tratar dos sítios rupestres da tradição litorânea catarinense, encontrados em uma área que envolve a Ilha de Santa Catarina e se estende ao Sul até Garopaba, afirma que estes sítios possuem um caráter único. Prous defende que estas inscrições rupestres não podem ser comparadas a nenhum outro conjunto rupestre conhecido atualmente; tratando-se assim de uma criação local. Sua constatação é, por si, dado suficiente para garantir a importância dos estudos e da preservação destas inscrições, cujos autores permanecem ainda indeterminados.”

A PEDRA QUE TRANSTORNA AS BÚSSOLAS

Grande quantidade das preciosas obras rupestres citadas por Prous está concentrada na Ilha do Campeche, em Florianópolis. Ali também se encontra uma rocha onde uma inscrição marca um ponto exato em que as bússolas não funcionam direito. Conhecida como Pedra do Ímã, é mais uma das atrações deste lugar excepcional.

“Esta ilha possui a maior concentração de oficinas líticas e gravuras rupestres do litoral brasileiro.Localizada no sudeste da Ilha de Santa Catarina, (…) é um dos paraísos naturais mais exuberantes do país também pelo valor arqueológico, com inscrições rupestres e oficinas líticas. Entre os tesouros deixados pelos povos antigos há inscrições e registros que formam a maior concentração desse tipo em um único sítio arqueológico,de todo o litoral brasileiro. Há desenhos que lembram flechas e máscaras, símbolos geométricos, um monolito com 9 metros de altura e um ponto magnético sinalizado com inscrição rupestre onde as bússolas têm comportamento alterado”, diz o IPHAN, que em 1998 tombou o lugar como patrimônio arqueológico e paisagístico do Brasil. 

Sobre a questão das bússolas na Pedra do Ímã, cientistas informam que no litoral de SC há presença de minerais como a magnetita e a ilmenita, que possuem efeitos magnéticos. Quanto ao fato de existir uma inscrição indicando o ponto magnético ainda será preciso verificar a autoria de tal marca, visto que a única forma de percepção do magnetismo seria aproximar da Pedra um pedaço de ferro e sabe-se que as populações pré-históricas brasileiras não utilizavam esse metal.

UM PADRE “CHATO”

As primeiras denúncias contra a vandalização arqueológica em SC partiram de um jesuíta, professor e pesquisador, João Alfredo Rohr, na década de 1970. Era insistente em suas críticas, o que lhe valeu a antipatia dos predadores, incluindo prefeitos e comerciantes de cal.Conforme artigo de Fabiana Comerlato (*), o padre recebia freqüentes ameaças “por parte de exploradores clandestinos de sambaquis quando realizava inspeções rotineiras”, como representante do SPHAN (antecessor do IPHAN).

“Pe. Rohr constatou que algumas prefeituras (…) nos anos 60 e 70 praticaram ações contra diversos sítios arqueológicos”, diz Comerlato, reproduzindo relatos do próprio padre, de 1974: “Constatamos que a Prefeitura Municipal de Laguna havia compactado 4 quilômetros da  estrada  do  Farol  de  Santa  Maria  com  conchas  de  sambaquis.  Em  Jaguaruna  surpreendemos  2  indivíduos ocupados  em  peneirar  conchas  do  sambaqui  da  Garoupaba. Nos sambaquis  da  Carniça  II,  em  Laguna;  do  Siqueiro  e  da  Samambaia,  em  Imaruí,  suas demolições estavam prosseguindo.(…) Em março recebemos novas denúncias de destruição de sambaquis, vindas do Município de Garuva, divisa com o Paraná.(…) Extensos trechos de estradas municipais haviam sido, recentemente, compactadas com material retirado dos sambaquis.

Segundo o artigo de Comerlato, “os moradores da comunidade de Campos Verdes (Laguna), onde fica o complexo de sambaquis da Carniça,  viam  Rohr  como  o  homem  que  ‘fechou’  o  Carniça,  sendo  assim  o  responsável por tirar o sustento dos moradores.”

(OBS: Naquela época, pessoas humildes retiravam partes dos sambaquis para vender, notadamente cascas de frutos do mar repassadas às fabriquetas de cal, as chamadas caieiras, existentes desde os anos 1700. “Conchas de moluscos, principalmente berbigão, extraídas de sambaquis foram transformadas em pó e misturadas a óleo de baleia para formar a base da argamassa que revestiu paredes de igrejas, fortalezas e casario histórico de Florianópolis” – informou reportagem do jornal Notícias do Dia em 2015. Na capital sobrevivem nomes de bairros como o famoso Caieira do Saco dos Limões.)         

Padre Rohr, falecido em 1984, encontrou vestígios de populações pré-históricas em vários pontos de  SC (cerca de 400), usando  técnicas de prospecção pioneiras, criadas por ele, e é tido como “o maior escavador arqueológico brasileiro”. Fundou em 1963 o Museu do  Homem do Sambaqui, no Colégio Catarinense, um dos mais importantes do país. Curioso o fato de que, para iniciar o museu, o padre adquiriu oficialmente a coleção que Carlos Behrenheuser, um rico negociante de Florianópolis, havia reunido trocando retalhos de tecido por peças arqueológicas encontradas por sitiantes em diversos lugares da Ilha-capital. A coleção contém aproximadamente  8 mil objetos de sambaquis, inclusive bonitas esculturas de animais em pedra (zoolitos), mas também cerca de 80.000 fragmentos de cerâmica guarani, além de vasilhas completas.

O antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, em 1972, aplaudiu as “brigas” preservacionistas do padre Rohr e criticou com acidez os governantes de SC: “Em São Paulo, no Paraná e no Rio Grande do Sul os governos lograram coibir a destruição dos sítios pré-históricos. Por que não será possível aniquilar com as aspirações destrutivas de uns poucos interessados em lucros fáceis, aqui em Santa Catarina? Por que não será possível às Prefeituras Municipais onde se concentram importantes monumentos pré-históricos criar  parques  locais,  visando  o  resguardo  dos  sítios  e  à  criação  de  ambientes  públicos  de futura importância paisagística e turística? Por que o Governo Estadual não pode organizar um setor destinado ao tombamento e preservação desse patrimônio?”. O professor Silvio faleceu em 2008, sem ver o sonho realizado.   

Sambaqui Figueirinha I, com cerca de 18 metros de altura no estado de Santa Catarina. Foto: Reprodução igeologico

(*)Artigo O legado do pe. João Alfredo Rohr S. J.: reflexões sobre sua trajetória na arqueologia brasileira, Fabiana Comerlato (historiadora e arqueóloga), 2014.

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