Na reportagem anterior apresentamos diversas denúncias, entre elas a do historiador e professor Viegas Fernandes da Costa, sobre as grandes perdas sofridas pelo acervo arqueológico milenar do litoral catarinense, um dos mais notáveis do mundo. Num artigo publicado em 2014 ele definia como vandalismo o comportamento das classes dominantes locais, que atualmente ainda avançam contra tais áreas através de seu poderoso setor imobiliário privado e também o de obras públicas governamentais.
Fazia a seguinte comparação: “Se parece absurdo destruir uma pirâmide egípcia (…) por que não soa absurda a destruição dos nossos sambaquis, construídos (como as obras do Egito) desde há quase 5 mil anos e que abrigam a história de dezenas de gerações que ali deixaram seus registros?”
É uma situação realmente desafiadora para a história/memória de S. Catarina: falar de preservação (qualquer uma, de qualquer tipo) em meio ao caótico boom na ocupação litorânea do Estado. É um cenário arrasa-quarteirão. Literalmente. “No bairro Meia Praia, em Itapema, há mais imobiliárias do que farmácias, supermercados e restaurantes”, informou reportagem publicada pela FolhaPress no último verão.
É uma atividade efetivamente voraz: “(…)O turismo despertou a atenção, sobretudo, dos promotores imobiliários, que desde há muitos anos vêm se apropriando do solo ao longo das praias (brasileiras e catarinenses) para promover a especulação (…)Novas formas de ocupação e uso do solo (fizeram) surgir condomínios fechados, resorts, flats, apart-hotéis, entre outros (…)Esse modelo tem provocado muitas alterações no espaço litorâneo brasileiro (e catarinense) gerando segregação socioespacial e degradação ambiental na maior parte dos lugares. (Junto a isso) têm-se a falta de investimentos públicos em infraestrutura urbana – coleta e descarte do lixo, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, etc.”, afirmou o estudo Urbanização turística no Brasil : um foco em Florianópolis – Santa Catarina(*).
E prosseguiu: “Desde o início, ainda nos anos 1970, o desenvolvimento do turismo em Florianópolis foi conduzido pela lógica do mercado, na qual a especulação imobiliária tem operado como principal vetor das novas formas de uso e ocupação do espaço urbano (…)Assim, sítios de patrimônio ambiental protegidos foram desapropriados, locais com características rurais foram loteados, urbanizados e vendidos para a construção de condomínios (…), resorts, hotéis, pousadas e outros (…)A urbanização turística na Ilha (Florianópolis) se intensificou, e em muitos lugares foram construídas novas edificações para atender à demanda de visitantes, substituindo e transformando rapidamente as localidades onde antes vivia a população local, formada principalmente por comunidades de pescadores.”
Ou seja: foi o ranchinho de madeira à beira-mar virando arranha-céu na “Dubai brasileira” (praias catarinenses, principalmente Balneário Camboriu). A construção civil representa fatia relevante do PIB de SC, cerca de R$ 278 bilhões, a sexta maior economia do país.
LOTES DOS MÉDICOS: RECEITA RUIM
A Associação Catarinense de Medicina, conforme a justiça federal, foi uma das culpadas pela destruição dos vestígios de uma antiqüíssima aldeia guarani no bairro Rio Tavares, no sul da Ilha (de Florianópolis), ao participar da implantação de um loteamento no local. Conhecida por abrigar uma parte da classe rica estadual a ACM foi condenada, junto com outros réus (como a FATMA, Fundação Estadual do Meio Ambiente, atual IMA, que fez vista grossa à ilegalidade) a compensar o prejuízo à memória e à história da cidade. A obrigação era financiar medidas educacionais/culturais pró- arqueológicas e indigenistas, como edição de cartilhas escolares e levantamentos de campo acerca dos guaranis.
O Loteamento ACM, como é conhecido, fica próximo à Lagoinha Pequena, que anteriormente teve trechos de suas margens depredadas lucrativamente pela empresa Pedrita (**).Os terrenos vendidos pela ACM tornaram-se “um bairro de alto padrão com ótima qualidade de vida”, diz a propaganda.
Tudo indica que os índios, séculos atrás, também apreciavam o bonito visual e a “qualidade de vida” proporcionada pela Lagoinha, pois são vários os sinais de presença ancestral de tribos na área. “A existência de sítios arqueológicos no bairro onde foi implantado o Loteamento não é novidade no meio patrimonial-cultural do município, e (devido)ao princípio da precaução, as exigências (da FATMA)para intervenção no local precisariam ser mais abrangentes(…)”, afirmou a justiça, na condenação divulgada em 2016.
Conforme o Ministério Público“ foi comprovado que as obras movimentaram o solo, o que (…)destruiu os vestígios da ocupação pré-colombiana. (O empreendimento imobiliário) passou por licenciamento da FATMA, sem qualquer estudo que verificasse a possibilidade da existência do patrimônio assim negligenciado.”
OS MILÊNIOS E A MOTOCICLETA
O maior sambaqui do mundo, localizado no sítio arqueológico Ponta da Garopaba do Sul, município de Jaguaruna, praia a 160 km de Florianópolis, está precisando receber uma atenção quase “hospitalar” para não morrer. Após uma vida sossegada de cerca de 6 mil anos virou, de repente, um atribulado quintal de casas de veraneio. E, suprema decadência: foi transformado em point de diversão de motociclistas, cujos pneus, além de causarem desmoronamentos, remexem restos de esqueletos e objetos milenares que ali estavam depositados.
A denúncia é de Alexandro Demathé, especialista em Arqueologia Pré-Histórica da Unisul (Universidade do Sul de SC). “Entre os remanescentes, ele é o mais alto, com 26 metros, e tem uma importância muito grande pelos artefatos, inscrições rupestres, não só pelo tamanho. Há alguns anos, ele tinha mais de 30 metros de altura, mas a estrutura se desgasta com a erosão, o vento e as ocupações irregulares (de imóveis). (Além disso)algumas pessoas usam o sambaqui como pista de motocicleta, e isso danifica muito o patrimônio” (***).
A negligência municipal foi denunciada pela primeira vez em 2011, quando o Ministério Público exigiu que fossem removidas as casas construídas no amplo terreno. Ninguém obedeceu. As primeiras edificações começaram em 1973, quando a Prefeitura autorizou a criação do Loteamento Costa Azul. A partir de 2001, a faixa de 200 metros a partir da linha limítrofe do sambaqui passou a ser considerada uma Área de Preservação Permanente. Depois a Câmara de Vereadores mudou a lei e reduziu a faixa de preservação para somente 50 metros.
Segundo a arqueóloga Luciane Scherer, da UFSC, “o que acontece é que muitos estados e municípios são coniventes com a destruição, como no caso desse sambaqui. A Arqueologia ainda é vista como empecilho para o progresso”.
Após processos judiciais desgastantes e sob grande pressão, a Prefeitura resolveu assinar um convênio com a Universidade Federal do Rio G. do Sul (UFRGS),que foi concluído agora em 2019, para obter um Plano de Manejo das Dunas Frontais do Município de Jaguaruna. “Foi analisada uma área de aproximadamente 60 km² naquele litoral para fornecer informações necessárias, sobre a sua vulnerabilidade, para os tomadores de decisões responsáveis pela distribuição territorial e pelo desenvolvimento do município”, informou a universidade em fevereiro do ano passado, quando o trabalho foi entregue (****).
A próxima fase será a implementação do Plano, “um dos maiores desafios para qualquer projeto já realizado; geralmente é nesse momento que as pesquisas se acabam, ficando somente no papel”, observou o professor Nelson Gruber, coordenador do projeto. Para garantir que os resultados sejam aplicados na prática, os envolvidos oferecerão cursos para os gestores para que entendam a informação que têm disponível.
Foi montado um comitê com a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Secretaria de Planejamento de Gestão Estadual, o Programa de Gerenciamento Costeiro no Litoral Norte (Gerco) e o Instituto do Meio Ambiente do Município, que são os responsáveis por tomar as ações necessárias. Uma das tarefas do comitê será tratar do caso do grande sambaqui moribundo.
BARRA VELHA:“VIÚVA PORCINA”?
No município de Barra Velha, litoral catarinense, está localizado um dos pontos geográficos mais destacados da história de toda a América do Sul. É o trecho inicial do milenar Caminho de Peabiru, a via indígena transoceânica pré-colombiana mais importante do continente sul-americano. Com cerca de 4 mil quilômetros de comprimento, o Caminho unia o oceano Atlântico ao Pacifico.
Foi a partir de Barra Velha, acompanhando o rio Itapocu, que com a ajuda de índios guaranis, o náufrago Aleixo Garcia descobriu o fabuloso império dos incas vários anos antes dos espanhóis.
Foi para marcar esta notável história que a Prefeitura criou em 2007 o Parque Natural Municipal Caminho do Peabiru. Os idealizadores desejavam que além de seu papel cultural, educativo e turístico especificamente peabiruano , o Parque também pudesse servir como preservador da ecologia e de dois sambaquis (Faisqueira 1 e 2)
Mas o desejo foi para as cucuias, ou quase.
Uma sequência “novelesca” de acontecimentos suspeitos e tortuosos transformou o Parque em algo parecido ao bordão satírico da personagem Viúva Porcina, aquela “que foi sem nunca ter sido”. Em seguida apresentamos um relato de várias pessoas que preferiram não se identificar, para as quais criamos um nome único, fictício, de Fernando Silva:
“O Parque foi criado em junho de 2007 com um total de 428,53 hectares, próximo ao Rio Itapocu e à Lagoa de Barra Velha. Foi anunciado na época que cerca de metade da área (268 hectares) teria sido ‘doada’ pela empresa dona do Loteamento Quinta dos Açorianos, vizinho ao local. ‘Doação’ estranha, pois posteriormente a imobiliária (Irineu Imóveis)entrou na justiça contra a Prefeitura por discordar do valor oferecido por aquela metade. O litígio judicial apontava que a Prefeitura propôs R$ 1.250.000 e o valor estabelecido por uma perícia privada foi superior a R$ 16 milhões.
Durante o andar do processo a Prefeitura, também estranhamente, não apresentou recurso em tempo hábil acerca do valor estipulado. Ou seja, perdeu o prazo correto para defender sua proposta.
Em 2014 o então prefeito Claudemir Matias editou um decreto devolvendo a área em litígio aos antigos proprietários alegando falta de condições para pagar os R$ 16 milhões. Os membros do Conselho Gestor do Parque iniciaram então uma batalha para manter a área integral. Fizeram denúncia ao MP e recorreram à FATMA, pois esta havia repassado o dinheiro para a implantação do Parque, estabelecendo com a FUNDEMA (Fundação Municipal de Meio Ambiente) um plano de trabalho e de cooperação, mas nada disso vinha sendo cumprido.
Em 2015 dois diretores da FATMA com dois advogados estiveram aqui em Barra Velha. Foi feita uma reunião deles com o prefeito, FUNDEMA, alguns vereadores e Conselho Gestor. Foi decidida a contratação de um estudo jurídico da situação, custeado por um fundo compensatório, sem ônus ao Município, o qual visava restituir a integralidade do Parque. O prefeito autorizou o estudo mas depois de tudo encaminhado, a FUNDEMA, estranhamente, bloqueou o procedimento.
O Conselho Gestor, naquele mesmo ano de 2015 foi informado pela Prefeitura (e acreditou)que o processo judicial sobre as áreas em litígio estava transitado em julgado, ou seja, que não cabia mais recurso a uma sentença determinando a devolução das áreas aos antigos donos. Mas o Conselho, ao contratar um advogado, descobriu que era o contrário: a sentença final determinava que a Prefeitura deveria manter a integralidade do Parque.
Porém, mais uma vez estranhamente, a Prefeitura fez acordo com os antigos proprietários para mesmo assim devolver as áreas. Foi enviado projeto de lei à Câmara de Vereadores e estes aprovaram a devolução. Apenas o vereador Professor Juliano Bernardes se manifestou contra, mas não pode estar presente à votação. A partir daí a justiça determinou a área destinada ao Parque, reduzindo-a drasticamente para menos de 1/3 do tamanho original.
Em 2017 assumiu como prefeito Valter M. Zimmermann e o novo presidente da FUNDEMA foi Leandro Haupt. Este reuniu o Conselho do Parque e convenceu a maioria dos conselheiros de que era melhor desistir definitivamente do litígio e implantar o Parque apenas numa sobra de 121 hectares (ou 153 segundo outro relato) .Veio com aquela conversa de que a Mata Atlântica nas demais áreas restantes era protegida pela legislação e jamais seria concedida licença para desmatamento.
Em 2018/2019 foi jogada a pá de cal derradeira, pois a Prefeitura resolveu vender um pedaço de 32 hectares, que tinha ficado isolado do resto. Em comunicado à Câmara, o prefeito alegou que iria utilizar esse dinheiro na construção de um centro de eventos, na conservação de ruas, entre outros absurdos. O projeto de lei desta desafetação contou com voto contrário apenas do Professor Juliano. A Associação de Moradores do bairro Quinta dos Açorianos entrou com ação judicial para tentar impedir a venda. Hoje tramita projeto imobiliário no local. Se for confirmado, o loteamento invalida a conversa de Haupt, de que não se pode derrubar a mata naquela região.”
(*)Autores Marcos A.T. da Silveira e Adyr B. Rodrigues, publicação de 2015, pela Via Tourism – revista online, internacional.
(**)Artigo Apropriação de Áreas de Preservação Permanente pelo Capital Imobiliário: O Caso da Lagoinha Pequena – Florianópolis-SC , Edna L. Luiz e Joseli M. Silva, Revista do Instituto Panamericano de Geografia e História, 1999.
(***)Sítio arqueológico com peças de 6 mil anos está ameaçado por casas em SC
– Sites Programa Espaço Ecológico e UOL , 2016.
(****)UFRGS. Impactos ambientais de ocupações no litoral de Jaguaruna. Texto de Nathália Cassola. Saense, junho 2019.
(*****) Colaboração em pesquisas fontes: Fábio Krawulski Nunes https://photos.app.goo.gl/
Sambaqui Figueirinha I, com cerca de 18 metros de altura no estado de Santa Catarina. Foto: Reprodução igeológico