Bugreiros e suas vítimas. Martin Bugreiro está com lenço no rosto. Foto: Reprodução/Museu de Ibirama
Natale Coral. Foto: Reprodução/Portal Veneza
Várias entidades pró-índios estão protestando contra a decisão de autoridades de Nova Veneza, no sul de S. Catarina, de dar o nome de Natale Coral a uma praça naquela cidade. Isso porque Coral, tido como um dos fundadores do município, segundo historiadores foi um notório “bugreiro”, caçador e assassino de indígenas da etnia dos Xokleng (também conhecidos como botocudos) no fim dos anos 1800 e início dos 1900.
A inauguração da praça no bairro Eliza, a poucas quadras do centro, em 28 de dezembro passado, foi recebida com indignação por diversas tribos do país representadas na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), por caciques Xokleng de aldeias atuais, no Alto Vale do Itajaí (Terra Indígena Ibirama, ao noroeste de Florianópolis), e por professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O grupo da UFSC, do curso de Licenciatura Intercultural Indígena, divulgou há algumas semanas uma nota de denúncia. Conforme esta, o homenageado Natale Coral, com sadismo, gostava de trazer as orelhas dos índios mortos para mostrar aos empresários brancos que o contratavam, para provar o sucesso de seu “serviço”.
SÓ PRA RIR
No manifesto os professores relembram o relato de Ireno Pinheiro, “famigerado ‘bugreiro’ que atuou em outras regiões de SC, como Santa Rosa de Lima: ‘Besteira foi o que fez o Natal Coral. Quando voltava de uma batida, trazia a orelha dos índios na salmoura, só pro riso. Mas depois os colonos só queriam pagar com a prova das orelhas, e ele se aborreceu, parou até que os índios já estavam ficando cada vez mais raros” – registrou o historiador e antropólogo Silvio Coelho dos Santos, em obra de 2007.
No livro do padre João Leonir Dall’Alba Histórias do Grande Araranguá, há informações de moradores pioneiros de Nova Veneza. Um deles, José Gava, 85 anos, foi entrevistado em 1978: “Dizem que o local onde encontraram os bugres foi lá perto de Palermo. Trouxeram um saquinho de orelhas. Talvez é demais, mas… Também naquela vez trouxeram 2 filhotes (crianças indígenas sequestradas). Prático caçador e chefe de turma era o Natal Coral.”
AMEAÇA E FRAUDE
Outro entrevistado foi Marino Gava, 73 anos: “De caçador de índios só sei do Coral. Só numa vez teria matado 100 índios, trazendo 200 orelhas para o diretor da Empresa Nova Veneza. Como tinham combinado 2 mil réis por orelha a Empresa deveria dar-lhe a fortuna de 400 mil réis. Para não pagar, (a Empresa) foi ameaçando: ‘Fiquem quietos. Isto é proibido. Se o governo souber, vocês vão todos para a cadeia.’”
Tal ameaça era uma fraude, pois conforme apurou o historiador Paulo Sérgio Osório em sua tese de doutorado, os presidentes da Província de SC conheciam as chacinas dos bugreiros e concordavam com esse método de “afugentar os selvagens”, considerados “empecilhos ao desenvolvimento e progresso da região”. *
QUESTIONANDO OS “HERÓIS”
A UFSC afirmou ainda em sua nota que “em um momento histórico no qual pelo mundo todo vemos a remoção e o questionamento acerca de monumentos em homenagem a ditos ‘heróis’, responsáveis por atos genocidas do passado, ao receber a notícia desta homenagem (em N.Veneza) nos perguntamos: Por que? Para que? A homenagem a Natale Coral em praça pública nos parece um negacionismo histórico dos crimes cometidos pelo fundador, e nos provoca novamente o questionamento sobre o lugar dos ditos ‘heróis’ na nossa sociedade atual.”
E continuou: “Relatos e registros enunciam que o homenageado era um dos ‘bugreiros’, caçadores de índios, figuras que protagonizaram horror e morte nos acampamentos Xokleng, entre fins do século XIX e início do século XX. Essa conduta bárbara não condiz com civilidade, com humanismo. Não condiz com homenagem póstuma.”
O ENTUSIASMO DO PAGADOR
Tudo indica que o pagador das orelhas dos mortos foi um siciliano chamado Michele Napoli (Miguel Napoli, também idolatrado como pioneiro de Nova Veneza), que embora radicado no Estados Unidos (USA) veio ao Brasil como representante de uma poderosa empresa colonizadora, a estadunidense Angelo Fiorita & Cia. Conta a página da revista digital EFDeporte: “A empresa norte-americana Angelo Fiorita & Cia. (…) celebrou um contrato com o governo da União em 22 de outubro de 1890, pelo qual se comprometia erguer 20 povoações agrícolas e introduzir 1 milhão de imigrantes europeus nos estados de SC, RS, SP, MG, ES e BA.”
“Apenas 2 meses depois de elaborado o contrato (…) já se encontrava em Santa Catarina o representante Michele Napoli. Ele tinha a missão de escolher terrenos devolutos em Tubarão e Araranguá para instituir três núcleos coloniais com a denominação Nova Veneza, tendo em cada colônia pelo menos 500 famílias. Nos primeiros dias de janeiro de 1891, o jornal carioca O Paiz publicou um telegrama do senhor Napoli, atestando que os trabalhos de assentamento da colônia já haviam iniciado: “Posição esplêndida, terrenos fertilíssimos, ricas matérias minerais e medicinais. Breve mandarei planta destas colônias. Entusiasmo geral”.
Oficialmente comemora-se 28 de outubro de 1891 como sendo a data de chegada dos primeiros imigrantes, e, portanto, a data da fundação da Colônia Nova Veneza.
ACABOU, MAS NEM TANTO
A brutalidade existente no passado da charmosa cidade é chocante não só pela tentativa de encobrimento representada pela praça homenageando o genocídio como pelas inverdades acerca de uma pretensa selvageria agressiva dos Xokleng. O historiador Paulo Sérgio Osório após sua profunda pesquisa para a tese de doutorado, desmente com firmeza: “Não identificamos (…) situações em que os índios tivessem desferido ataques aos colonos, os quais pudessem justificar os atos de violência.”
O ato vergonhoso da reverência a um autor de assassinatos poderia ser incluído no mesmo contexto da reportagem Os novos bugreiros de Santa Catarina, publicada por AND em abril de 2008, onde se dizia: “As milícias assassinas foram desativadas no início do século XX, porém o mesmo não ocorreu com a ótica anti-indígena das classes dominantes em SC. Há ainda hoje, no Estado, um preconceito de classe e racial que se manifesta das mais variadas formas. Negação de demarcação de aldeias, expulsões, decisões judiciais, matérias jornalísticas, livros, etc, etc, etc.”.
* Tese de doutorado Apropriação territorial e papel das elites no processo de modernização na região sul catarinense no século XIX, PUC-RS, agosto de 2020