Semifeudalidade ‘não’ é um conceito científico (I)

Dizer que não existe semifeudalidade é dificuldade de atuar do ponto de vista político e ideológico
O conceito "semifeudalidade" é soterrado nas universidades brasileiras. Foto: Banco de dados AND

Semifeudalidade ‘não’ é um conceito científico (I)

Dizer que não existe semifeudalidade é dificuldade de atuar do ponto de vista político e ideológico

Em primeiro lugar, para começo de exposição aqui do assunto, não podemos afirmar que um conceito não é científico quando se tem, sobre ele, um debate iniciado há quase 100 anos. Debate esse com método, saberes obtidos pela observação, pesquisa e estudo comprovado. Além de fundamentos teóricos apresentados num tempo cronológico com demonstração do acontecimento, dos fatos e da prova do fenômeno. O segundo ponto, que responde o porquê da afirmação ser tão difundida, corresponde a uma negação da existência do campesinato no Brasil e das relações caducas à sua volta, que explicam a sua origem e permanência na nossa estrutura agrária. Condição esta que leva o nosso país às estatísticas vergonhosas de pobreza no campo e na cidade. E, por último, a vontade política pequena de querer entender a realidade brasileira para transformá-la, sendo esta sendo a mais importante. 

A origem do termo semifeudalidade é russa. Se pesquisado o significado da palavra nos dicionários, alguns deles vão trazer referência ao contexto russo. As fundamentações teóricas sobre essa discussão iniciam-se com Lênin, passando por Mao Tse-Tung e pelo Partido Comunista do Peru (PCP). Nas formulações desses teóricos, são discutidas quais seriam as condições de desenvolvimento do capitalismo no campo, na sua fase superior – o imperialismo –, principalmente, em países onde são subjugados por nações imperialistas. Por esse motivo, se desenvolve um tipo de capitalismo chamado burocrático, tendo dois pilares pendentes: o problema nacional (imperialismo) e o problema interno da não destruição do latifúndio (semifeudalidade). 

No Brasil, a fundamentação da semifeudalidade, inicialmente, aparece de forma mais sistematizada no livro Quatro Séculos de Latifúndio, de Alberto Passos Guimarães. Passando pela historiografia do termo em Nelson Werneck Sodré… De lá até aqui, há um esforço, de diversos autores contemporâneos, para consolidar formulações mais completas.  

Lembrando: o termo semifeudalidade foi desenvolvido no processo revolucionário de vários países e por teóricos marxistas revolucionários, nas primeiras décadas do século XX. Contexto esse marcado pelo grande esforço por formulações teóricas e pela aplicação na própria realidade de cada país. Embora as bases iniciais para o fundamento teórico se encontrem na obra de Karl Marx, no Livro III de O Capital.  

A semifeudalidade explica as condições econômicas da formação sociohistórica de um determinado país, sejam elas de produção, trabalho e propriedade das classes do campo, ou da massa camponesa ou da própria classe latifundiária. Ela aparece em países nos quais existe o predomínio de uma população camponesa pobre e sem terra ainda muito grande, onde a base de produção da economia de um país segue sendo agrária. Embora o principal elemento para entender a terminologia seja a identificação do tipo de renda que se extrai da terra, pois é ela que determina o tipo de propriedade, se é capitalista ou não. Poderíamos afirmar que as condições de existência do campesinato brasileiro, que não tem acesso à terra juridicamente (vivendo à base de uma posse, sem nenhum valor juridicamente falando para o sistema vigente do capital) e não extrai renda (ou seja, não é o capitalista), são características importantes dessa semifeudalidade.

A complexidade em se entender tal discussão está no fato de que não há um sistema puro de desenvolvimento econômico (escravismo, feudalismo, ou colonialismo) no período colonial brasileiro. Pelo contrário, há mesclado entre escravismo, feudalismo, e colonialismo no que se constitui o Brasil colônia. Assim como no período colonial brasileiro, na república também não há um sistema puro de modelo de desenvolvimento econômico. A partir da república aqui se desenvolve o capitalismo burocrático brasileiro, portanto, este não constitui um sistema de desenvolvimento econômico puramente capitalista, tendo a semifeudalidade como um dos pilares.  

Com a finalidade de trazer para uma discussão algo vivido, da realidade concreta como ela é, farei aqui uma exposição em forma de relato pessoal de uma polêmica que se iniciou durante a defesa do meu trabalho final de graduação em Geografia, no ano 2016. A polêmica (ou a divergência) não foi debatida abertamente durante o processo de escrita e defesa, mas colocada próximo da finalização dos processos burocráticos para conclusão do curso. Momento este no qual foi exigido que se retirasse da monografia um subtópico chamado “A evolução da semifeudalidade”, além da expressão “relações semifeudais”. 

Dentro desse contexto, veio a tal polêmica: “a semifeudalidade não é um conceito científico”. Ainda que o trabalho apresentasse insuficiências de análise de aprofundamento do próprio conceito relacionado ao objeto de pesquisa, eu fui avaliada  da seguinte forma por um membro da banca: “i) você tem um compromisso com a pesquisa; ii) possui a capacidade de lidar com muitas fontes de pesquisa, mobilizando-as num roteiro ordenado de pesquisa; iii) esforça-se para vincular empiria e um arcabouço teórico de que se pudesse lançar mão para encontrar nexos”.

Então, percebe que o problema não é a qualidade do trabalho geral, mas uma tentativa de colocar para debaixo dos panos o debate. Parece-nos que custa muito caro ao Brasil, e aos brasileiros, a clareza de uma teoria científica que analise o processo de exploração da nossa terra e do povo, história essa que atravessa cinco séculos de latifúndio, agora conhecido como o (agronegócio), latifúndio de novo tipo. A intelectualidade descompromissada com a transformação da realidade brasileira segue com posições intelectuais atrasadas, que dão sustentação/respaldo teórico intelectual para a manutenção dessa exploração.

Lembrando: A exploração está no trabalho, na condição de submissão das classes e da exploração do homem. Ou seja, o modo como se produz, se concentra, e se centraliza a riqueza nessa sociedade. Ora, se nego a condição de exploração do Brasil, por potências imperialistas, ou da existência da semifeudalidade, estou negando o direito de o brasileiro conhecer a sua história e lutar pela sua independência.  

Com relação ao objeto de estudo do trabalho monográfico, o Projeto da Usina Hidrelétrica de Riacho Seco, no município de Santa Maria da Boa Vista-PE, nos permitiu alguns entendimentos. Destes, considero relevante destacar: a construção de uma nova hidroelétrica possibilitaria um novo uso para as águas do Rio São Francisco na região do submédio, intensificando o acirramento dos conflitos já existentes entre populações ribeirinhas e latifúndio (agronegócio), pelo acesso aos recursos naturais, a saber, a terra e a água. Houve esforço para uma explicação do objeto de pesquisa. No entanto, naquele momento de pouca maturidade teórica, a categoria de análise semifeudalidade não foi possível ser relacionado ao objeto de estudo de forma profunda. Pois, requeria uma maturidade intelectual da compreensão geral, do debate, e particular, do objeto. O debate da semifeudalidade segue sendo estudado, principalmente no Nordeste brasileiro. As contradições e as polêmicas apenas me impulsionaram para a continuação da pesquisa em outra etapa, e com saltos importantes. 

A propósito, se você, caro leitor (a), em um debate numa universidade brasileira, argumenta que “a semifeudalidade é um fato concreto no Brasil”, vai causar desconforto na intelectualidade que permanece longe da realidade econômica e social do campo. Contudo, essa afirmação é aceita popularmente fora do muro da universidade, seja no campo ou na cidade, desde que seja explicada, numa linguagem que possibilite a compreensão para o ouvinte. 

Sem dúvida, a proclamação da inexistência da semifeudalidade se revela como uma dificuldade de enfrentamento do ponto de vista político e ideológico. Mas também o problema não é de fácil aceitação, pois requer o rompimento com teorias colonizadoras, e com opressões de longos 500 anos. Ademais, necessitaria dedicação exaustiva de reflexão, de estudo e de aplicação prática na realidade. Para muitos, o problema da semifeudalidade está resolvido; entretanto, na verdade, há uma dificuldade de enxergar a dialética da própria realidade, afirmar uma superação dela é uma concepção subjetiva e individual.   

Certamente, o desmerecimento de um conceito não parece ser algo simples, quando há um conhecimento acumulado que explica o próprio desenvolvimento dele. De modo sucinto, não se pode aceitar significados superficiais e imediatos de expressões, de conceitos e de teorias por “fraqueza”. É preciso rigor científico, esforço intelectual e praticidade para compreender a realidade concreta à qual estamos vivendo. Do contrário, estaríamos compactuando com a decadência do pensamento burguês e sua miséria pós-moderna, que negam qualquer necessidade de mudança da velha ordem.

Maria de Melo é geógrafa, especialista em docência, mestre em serviço social, autora do livro “A Renda Fundiária na transposição do Rio São Francisco”

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