Caiu o regime do presidente Bashar al-Assad. Durante anos tentaram nos convencer que a pessoa de Assad era um grande obstáculo para construir a Síria democrática. Muitos comemoraram, mas acredito que ainda é muito cedo para festejar.
Os iraquianos também comemoraram a queda do Saddam. Os líbios festejaram a queda de Kadafi. A situação nos dois países, hoje, é muito pior do que era durante os “regimes ditatoriais”. Infelizmente, os acontecimentos das primeiras horas na Síria não são muito encorajadoras.
Primeiro, a queda, o colapso rápido do regime, causou muita surpresa. Parece ser resultado de um acordo entre as grandes potências regionais, principalmente Turquia, Irã e Rússia. O que parece é que elas concordaram em transferir o poder de Assad para grupos escolhidos da oposição síria. A única justificativa para o regime de Assad não oferecer qualquer resistência contra as forças da oposição seria um acordo prévio. Há quase uma semana, o ministro do Interior do regime Assad afirmou que o Exército Árabe Sírio estava pronto para defender Damasco, a capital do país. No entanto, as forças da oposição entraram na cidade sem encontrar nenhum tipo de resistência.
Segundo. Nos últimos dias, os meios de comunicação relacionados aos regimes reacionários árabes, principalmente do Golfo e dos Estados Unidos, começaram a mostrar uma figura nova como novo líder das forças da oposição. Esse novo líder tem o nome: Abu Mohammad al-Julani ou Ahmed al-Shar’a, líder de uma facção chamada Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), uma organização para “libertar” a Sham (nome histórico da Síria).
Al-Julani começou como membro da Al-Qaeda e do grupo Al-Nusra, responsáveis por inúmeros crimes tanto no Iraque quanto na Síria. Ele e seu grupo estão na lista de terroristas elaborada pela ONU, e os Estados Unidos chegaram a oferecer uma recompensa de 10 milhões de dólares por sua cabeça. Isso não impediu a CNN de fazer uma longa entrevista com Abu Mohammad al-Julani. Com uma nova aparência e discurso, tentam apresentá-lo como um moderado capaz de unir os sírios e liderar a mudança no país.
O que tudo indica é que as mudanças apresentadas por essas forças são apenas mudanças superficiais. O discurso não é suficiente e as práticas no terreno é que vão mostrar se essa gente mudou ou não. Tudo indica que eles fazem parte de um projeto suspeito da Turquia para dominar a Síria. Estes grupos estão sendo usados para derrubar o regime e enfrentar outros grupos de oposição, principalmente as forças da Síria democrática (que são de maioria curda), além de terem grandes laços com os Estados Unidos e Israel. O plano turco é dominar a Síria, criando um país fraco, sob influência e orientação de Erdogan. Portanto, uma Síria forte e unida não faz parte desse plano.
Terceiro. A decisão do governo do presidente Bashar Al Assad de entregar o poder de uma forma pacífica mostra uma grande responsabilidade do regime sírio. Eles poderiam resistir, mas parece que a decisão foi não causar mais destruição na Síria, sabendo que o plano que todos participaram em elaborar, inclusive Irã e Rússia, era para ser implementado independente da resistência do regime. A decisão foi de não resistir. A história vai julgar se essa decisão foi certa ou errada.
Pelo menos na Síria tem 37 partidos e facções da oposição. A maioria deles de ideologia salafista e fanático, são herdeiros de Al-Qaeda. A orientação desses grupos é uma orientação extremamente fanática. Sequestraram uma religião, o islamismo, e adaptaram uma leitura extremista da doutrina muçulmana. São usados tanto por regimes reacionários árabes quanto por Israel e os Estados Unidos. São grupos, na maioria das vezes, de mercenários pagos para realizar o que o imperialismo manda.
Esses grupos financiados, apoiados e armados por Estados Unidos e Israel e principalmente os regimes do Golfo, são inimigos da democracia. É de se estranhar e não se espera outro resultado senão uma sociedade fechada, altamente controlada. Aqueles que estão festejando a queda de um ditador, Bashar, eles vão tolerar não apenas um, mas vários ditadores. Espero que o futuro prove que estou errado.
Há três cenários possíveis para a Síria: 1) o menos provável, é que as forças da oposição consigam formar um governo civil capaz de liderar essa fase de transição e construir um governo e um Estado laico verdadeiro, verdadeiramente democrático. Infelizmente, tudo indica que isso é muito menos provável que os outros dois cenários; 2) o cenário turco que, como falei, busca criar um governo fraco e guiado, submisso à vontade dos turcos. É claro que o que estava acontecendo na Síria representava uma grande dor de cabeça para o governo turco e a maneira encontrada por eles era derrubar Bashar al Assad e formar um governo que, capaz de cooperar com Turquia, conseguisse garantir retorno de refugiados (há quase 3 milhões de refugiados sírios na Turquia). A Turquia nunca renunciou à sua intenção de anexar Aleppo e Hama, considerados os territórios turcos; 3) o cenário mais provável, como o ocorrido no Iraque e Líbia: uma guerra mais prolongada, levando para a divisão da Síria entre vários grupos e várias etnias e orientações religiosas.
Podemos entender a reação do povo sírio. Afinal, o regime de Assad (cujo partido era o Baath) era considerado por vários setores da sociedade síria como um regime antidemocrático que causou sofrimento para o povo. O circo criminoso imperialista e sionista contra Síria nos últimos 14 anos, que destruiu a economia do país, aumentou o desemprego, a falta de água, comida, combustível e eletricidade. A reação do povo sírio é, portanto, compreensível. O que não é compreensível é a reação de alguns setores da “esquerda” brasileira.
Incapazes, provavelmente por uma miopia ideológica, de enxergar o cenário geral mais amplo do que está acontecendo no Oriente Médio. Isto quer dizer se colocar ao lado da CIA, Mossad e outras forças que nunca planejaram algo a não ser destruir e dividir nossa região e, repito, tais forças não querem uma verdadeira liberdade ou soberania para o povo sírio e quaisquer povos árabes. Não enxergar isso é algo extremamente suspeito, principalmente daqueles que alegam lutar contra imperialismo e sionismo.
Não há nada real na descrição do que aconteceu na Síria nas declarações do primeiro ministro sionista Benjamin Netanyahu, o criminoso da guerra que é procurado por justiça internacional. Netanyahu afirmou que o regime de Bashar Al Assad era o componente mais importante do que ele chamou de “Eixo do Mal Iraniano”. A queda de Assad foi causada, segundo Netanyahu, por “ataques e golpes duros dados por Israel ao Hezbollah e ao Irã”.
Sem a participação de Israel, segundo Netanyahu, a queda do regime não seria possível. Ele considerou isso como algo extremamente positivo, que cria várias oportunidades para a entidade sionista. Começando seu plano na Síria, Israel começou a ocupar posições no Golã, tomando novos territórios. Netanyahu declarou, ainda, que o acordo de trégua de cessar-fogo assinado entre governo sírio e Israel sionista em 1974 não existe mais, pois o Exército Sírio abandonou posições em frente de forças de ocupação israelenses.
Hoje também Israel continuou a atacar Damasco, capital síria, destruindo instalações militares e civis, principalmente prédios governamentais do governo sírio, o que deixa bem claro que a intenção de Israel é destruir o Estado sírio, independente de quem está no poder. Netanyahu deixou claro que seu plano na Síria é criar três zonas separadas e em pé de guerra uma com a outra. A primeira zona a ser criada é a drusa, a segunda um estado curdo e a terceira, um estado cristão. Manter uma Síria unida, com um governo central, não faz parte do plano sionista e imperialista.
Após a realização dessa divisão macabra, Israel está pronto para começar o “processo de paz” com o que restou da Síria. O que causa muita surpresa é que nenhuma força síria da oposição comentou as declarações e ações de Netanyahu. O mesmo fizeram os países do Golfo Árabe: um silêncio suspeito e pesado.
Espero que dia 8 de dezembro seja lembrado de fato, como muitos querem acreditar: um dia de libertação da Síria. Mas, infelizmente, o mais provável é que esse dia seria lembrado como um dia cinza na história do mundo árabe, o dia no qual a divisão e dominação da Síria começou.
Os sionistas e imperialistas não mudaram e não mudam. Não é a liberdade que eles querem para nós, mas a escravidão e a submissão absolutas. Isso certamente não é motivo de comemoração. Mesmo daqueles setores da esquerda brasileira que não estão acostumados com vitórias próprias.
Abdel Latif Hasan é um médico brasileiro-palestino e destacado membro da comunidade palestina no Brasil. Nascido na Cisjordânia, se formou como médico na União Soviética. Escreve sobre a questão palestina, lutas de libertação nacional e o cenário do Oriente Médio.
Esse texto expressa a opinião do autor.