Um novo capítulo do imbróglio Sírio: o HTS esparrama para o Líbano

A Síria do HTS tem realizado investidas ao norte do Líbano, desalojando moradores e destruindo edificações.

Um novo capítulo do imbróglio Sírio: o HTS esparrama para o Líbano

A Síria do HTS tem realizado investidas ao norte do Líbano, desalojando moradores e destruindo edificações.

Nada é tão complexo que não possa se tornar ainda mais complicado. Eis o imbróglio da Síria, cuja única certeza é a incerteza. 

Ao noroeste, o governo HTS/Al Qaeda, apoiado pela Turquia, Catar, EUA e tacitamente por Israel, perpetra um massacre contra as minorias alauítas e cristãs que, lutando pela própria sobrevivência, constituíram suas guerrilhas para resistir ao novo governo que, tão logo deu seus primeiros tiros, atraiu os olhares de meio mundo. Por um lado, não tardou ao monopólio de imprensa apontar que seriam remanescentes das forças leais de Assad – não mais presidente da Síria, mas oftalmologista de Moscou – numa intentona “contrarrevolucionária” (aliás, eles chamam o movimento ocorrido nos últimos 15 anos de Revolução Síria). Aos poucos, ainda envergonhados de assumirem o apoio irredutível à Al Qaeda e seus derivados até há poucos, posições hegemônicas vêm reconhecendo a perseguição aos alauítas e cristãos pelo HTS e apelando ao bom e velho “humanismo de minorias”, que tanto seduz os pós-modernos. Se, por um lado, são indiferentes às mortes de milhões de árabes sunitas no Iraque, Síria, Líbia e Palestina por ação do imperialismo; ao menos se compadecem dos “civilizados” curdos, drusos e alauítas contra as “hordas” das maiorias fanatizadas. Não apenas este pensamento se casa com o pós-modernismo pseudo-progressista que esposam, como ainda à geopolítica das minorias colaboracionistas que trouxe no texto passado. 

Àqueles que possuíam a esperança no retorno de Assad logo se frustraram, primeiro porque ficou bem evidente que a resistência alauíta em Latakia e Tartus, ao contrário do próprio HTS em Idlib antes de dezembro de 2024, não era um exército organizado numa rápida ofensiva, mas uma resistência espontânea recém constituída num esforço existencial de um grupo étnico-religioso. Após intensos combates com as forças governamentais, como era de se esperar, suas forças se dispersaram, ao invés de estabelecer um baluarte alauíta (possivelmente bancado pela Rússia), se preparando (inclusive coesionando) para futuros combates. Ainda que decerto muitos ex-membros do ex-Partido Baath (dissolvido pelas suas próprias últimas ordens centrais) estejam atuando em suas fileiras, ainda parece um movimento muito jovem para assumir esta ou aquela bandeira senão a reação de um povo encurralado.

A nordeste, as Forças Democráticas Sírias estão cercadas por duas forças ativamente hostis: Turquia e a Síria, e duas potencialmente hostis: o Estado Islâmico em ressurgência e o Iraque (talvez mais anti-HTS que anti-Curdistão, mas receoso com qualquer manobra independentista de Kobane que instigue secessão de seus próprios curdos). Decidiram oferecer o narguile da paz para Damasco, iniciando negociações para integração ao estado sírio. Essas ainda são muito incipientes e muita coisa pode mudar. Inclusive, o tratamento dispensado pelo HTS a outras minorias pode pesar no andamento de sua escolha. Para a Turquia, isso significa que os EUA, em seu movimento geral de recuo de seus postos avançados, evidente pelo abandono da República Islâmica do Afeganistão em 2021 para os Talibãs e no recente abandono da Ucrânia para a Rússia, decidiram abrir mão dos curdos sírios em favor do sátrapa turco que há anos vem se preparando para assumir a função. Hoje, a Turquia, além de uma considerável indústria de defesa, possui as segundas maiores forças armadas da OTAN.

Inclusive, neste ínterim, o HTS outorgou uma constituição “provisória” com vigência prevista de 5 anos que fortalece a posição de Ahmed al-Shaara, vulgo Al-Julani, como chefe de estado com grande centralização de poder, exposto em seu papel na indicação da suprema corte. Na prática, não mudou nada, no melhor sentido romano, Al-Julani era ditador, segue ditador. Mas a constituição provisória afastou já os curdos da integração ao estado sírio, mas decerto o HTS espera contar ainda com mais uma mãozinha turca.

Ao Sul, Israel segue nos arredores de Damasco bombardeando livremente o país sem maiores incômodos, destruindo qualquer infraestrutura militar do país, atacando facções que compõem o próprio governo interino. Sua relação com as lideranças da minoria drusa vem se solidificando e, enquanto tenta matar de fome Gaza e encerra unilateralmente o cessar-fogo, envia comboios à região governada pelo Conselho Militar de Suwayda. E, como responde o HTS?

Atacando alvos… no Líbano, que ele identifica como sendo do Hezbollah, o qual ele acusa de invadir seu território. Nos últimos dias, como reação ao ataque ao território libanês, o exército libanês e o Hezbollah já travaram escaramuças na fronteira. Novamente, mais uma coincidência temporal na história do HTS. A primeira foi a ofensiva contra o governo de Assad (pró-Irã, Palestina e Hezbollah) em menos de 24 horas da entrada em vigor do cessar fogo Líbano/Hezbollah e Israel; agora, também com menos de 24 horas do ataque terrorista israelense sobre Gaza, encerrando o cessar-fogo, a Síria governada pelo HTS ataca o Líbano pelo norte com o objetivo claro de atacar o Hezbollah, que ainda está em recuperação.

Se a tomada de poder na Síria pelo HTS comprometeu seriamente a logística do Hezbollah em um momento em que ele precisava recuperar sua estrutura militar e poder de fogo para dissuadir Israel a cumprir todos os elementos do cessar-fogo no Sul do Líbano, o que ele ainda não fez; agora, com o ataque do HTS pelo norte, o Hezbollah, enquanto resistência nacional libanesa, se vê obrigado a se voltar para o norte e dificilmente abrirá uma ofensiva paralela ao sul (dividindo suas forças) numa possível ação de apoio a Israel. Caberá, provavelmente, ao Ansarallah o apoio a Gaza neste novo momento da guerra. Para respondê-lo, Trump já costura uma aliança com o governo separatista da Somalilândia, na forma do reconhecimento internacional de sua independência política (exercida de facto desde 1994) do estado falido da Somália, em troca de uma base em seu território em frente ao Estreito de Bab el-Mandeb.

Para o Líbano, a mudança de governo em Damasco não modificou o que parece ser sua sina geopolítica: ser o algodão entre os cristais entre a Síria e Israel. Tal qual foi o Uruguai entre a Argentina e Brasil na primeira metade do século XIX, desde a década de 1970 a política libanesa sofreu com a interferência dos vizinhos que instrumentalizaram facções políticas (muitas delas armadas) em seu interior para seus próprios interesses, relativizando a soberania do próprio Líbano. Aliás, tanto Israel como a Síria possuem reivindicações territoriais sobre o Líbano, um almeja erigir Eretz Israel, o outro a Grande Síria (ainda que hoje este ideal só exista nos sonhos).

A Síria do HTS tem realizado investidas ao norte do país, desalojando moradores e destruindo edificações. Oficialmente, o governo sírio diz estar atacando o Hezbollah, contudo, seus ataques já vitimaram civis e resultaram em escaramuças com o exército libanês (com mortos para ambos os lados). No dia 18/03, visando desescalar o crescente conflito fronteiriço sírio-libanês, foi assinado um cessar-fogo entre os dois governos. Reconhecendo os excessos de seus bandos, o chefe de estado sírio prometeu punir os responsáveis, frente ao protesto libanês, mas o Líbano não pode e nem quer impor nada além de um reconhecimento verbal. Inclusive, já há registros de novos ataques do HTS no qual o “exército” libanês oficial faz tal como Israel – observa e recua, por vezes ainda assim sendo atacado – enquanto assiste ao Hezbollah se sacrificando pela soberania libanesa. Aliás, tudo indica que, em caso de um novo escalonamento dos embates entre Líbano e Síria, caberá ao Hezbollah, ainda combalido, defender o país e, no caso de um enfraquecimento ainda maior desse movimento, poderá Israel avançar novamente no sul do Líbano.

Para o Líbano, em especial seu governo que busca reduzir a influência do Hezbollah e do Irã em sua política e maior aproximação com os EUA e seus ex-colonizadores franceses, sua intenção parece ver sangrar o máximo possível o movimento para que, depois de muito enfraquecido, seu exército patético possa se somar, para desarmá-lo e neutralizá-lo. Nesse sentido, como bom cão de guarda, o Líbano espera, mediante o reconhecimento de “nação civilizada” e o confiável do Oriente Médio, fazer recuar Israel de seu território. Contudo, há outras possibilidades (talvez concomitantes) em um cenário sem o Hezbollah: 1) Israel anexa partes indefesas do sul do Líbano e mantém suas bases ad eternum, como fez nas Fazendas de Sheeba; 2) a Síria do HTS aproveitando a permeabilidade das fronteiras libanesas, passa a cada vez mais atuar dentro dele, “radicalizando” seus sunitas ao salafismo, pondo em xeque o modelo confessional de divisão de cargos (já frágil pelas mudanças demográficas que fizeram aumentar o número de sunitas – muitos refugiados palestinos – e reduzir o de cristãos – que emigraram para a América) do país em vigor desde 1943 entre cristãos, islâmicos sunitas e xiitas. Neste último caso, não seria de se estranhar a participação da Turquia de Erdogan (também o Catar) nessa hipotética futura guerra civil libanesa em defesa dos grupos salafistas libaneses. 

Mas como diria Garrincha, ainda temos que combinar com os russos – e essa frase possui dois sentidos: 1º) de forma figurada, porque ainda existem vários atores no Oriente Médio e no Líbano (como o Hezbollah que segue sendo uma força de combate formidável) que podem mudar totalmente os planos do HTS seus aliados; 2º) de forma mais literal, porque o imperialismo russo é um importante jogador no tabuleiro do Oriente Médio, mas até então, estava ausente devido ao conflito na Ucrânia que promete desescalar e terminar (favorável à Moscou) nos próximos meses, e é possível que Putin volte a falar “mais grosso” nessa região do mundo.

Luiz Messeder é professor de Geografia da rede pública, publicou a tradução de “Alma Matinal” em português e habitante das serras. Escreve sobre temas ligados à política internacional e demografia.

Esse texto expressa a opinião do autor.

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