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O Título II da Constituição contém os direitos e garantias fundamentais, teoricamente intocáveis e prevalecentes em toda situação que não envolva conflito com outro de igual categoria. O “piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho” (inciso V) é um deles.
Tendo as leis, em geral, vigência indeterminada, a definição de pisos por meio delas é mais segura para os trabalhadores que por negociação coletiva, que precisa ser renovada no máximo a cada dois anos, e depende da anuência patronal ou judicial.
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As enfermeiras têm dificuldades estruturais para negociar salários e condições de trabalho. Até a importância do que fazem se volta contra elas num país em que mesmo categorias que não lidam com a vida humana têm sido alvo de decisões judiciais que terminam por anular o direito de greve – cujo exercício, para a enfermagem, tem outra barreira na falta de tradição reivindicativa.
A quantidade e heterogeneidade dos mais de 10 mil empregadores tampouco facilitam a situação. Os estatais se dividem entre União, Distrito Federal, autarquias, empresas públicas, 26 estados e uns 6 mil municípios. Num mesmo local de trabalho (por exemplo, os hospitais universitários), há distintos empregadores, sindicatos e regimes jurídicos. Já os hospitais privados são, segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) e a Federação Brasileira de Hospitais (FBH), uns 4.500. Alguns, assumidamente empresariais; outros que dizem não visar o lucro.
A efetiva organização das enfermeiras é restrita a poucos estabelecimentos públicos nos quais há bons salários, mas, nunca ou quase, boas condições laborais: o setor hospitalar é um dos campeões de afastamentos por doença e aposentadorias por invalidez.
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Tais obstáculos seriam transponíveis mediante o salto de consciência induzido pela situação-limite provocada pela pandemia de Covid-19. Bastou a perspectiva de uma mobilização maior (num país onde as de 2013-14 ainda afetam o sono das classes dominantes) para que a categoria obtivesse do Congresso (Lei 14.434) pisos salariais dignos: R$ 4.750 para as de nível superior, R$ 3.325 para as técnicas (grande maioria) e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras.
Mas, na prática, o processo legislativo, no Brasil, se a lei é favorável ao povo, acaba (ou se prorroga) no STF. Dias após promulgada, a Lei 14.434 foi suspensa por Luís Roberto Barroso a pretexto de talvez ser inconstitucional, na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 7.222, movida pela CNSaúde.
Tal decisão foi confirmada por Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Luís Fux. No rodízio de papeis entre os atores que compõem o tribunal, Kássio Nunes Marques, André Mendonça e Rosa Weber votaram por aplicar a lei. Também Edson Fachin, que, embora ligado à principal acionista do negócio hospitalar (a Igreja Católica), honrou sua biografia construída na defesa dos direitos sociais, ao objetar que a suspensão “parece atentar contra o sentido mais básico de legitimidade democrática”.
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Como inconstitucional, se os pisos salariais estão previstos na Constituição?
Essa é a pergunta que Barroso e seus pares não conseguem responder em duas das decisões mais inconsistentes, perversas e – pelas mesmas razões – valiosas que o STF já produziu como fontes de pesquisa sobre si mesmo e o sistema de poder que integra.
Os argumentos jurídicos da CNSaúde na ADI 7222 são que a Lei 14.434: i) teria vício de origem, pois apenas o Poder Executivo pode propor leis sobre remuneração do funcionalismo; ii) violaria o equilíbrio federativo ao afetar a remuneração de servidoras estaduais e municipais; iii) não teria sido precedida de exame de seu impacto no orçamento público; iv) foi aprovada no Congresso antes da EC (Emenda Constitucional) 124, que mudou a carta magna para descaracterizar as 3 supostas falhas anteriores.
Essas questões afetam o setor estatal. A CNSaúde, que só representa particulares, nem poderia argui-las em juízo; e elas só levariam, em tese e quando muito, à suspensão dos pisos no setor público.
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Na verdade, nem isso: as 3 primeiras alegações foram rechaçadas pelo próprio STF nas ADIs 4.167 (sobre o piso salarial dos professores das escolas públicas) e 5.241 (sobre a aposentadoria dos policiais), e a 4a é insubsistente sem elas. Além disso a EC 124 já estava vigente quando da sanção presidencial da Lei 14.434, e é esse o marco de aferição da constitucionalidade.
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Já dizer que elevar salários pode levar à demissão de enfermeiras – como diz o tribunal para suspender a lei também no setor privado – não chega a ser um argumento, menos ainda jurídico. É um “achismo” baseado em ameaça que as patronais não podem cumprir: piorar a sobrecarga a que elas já estão sujeitas levaria o serviço ao colapso e precipitaria a mobilização por condições dignas de trabalho que certamente virá, uma vez resolvido o tema salarial.
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De todo modo, o impacto da lei sobre contratações e demissões não afeta sua constitucionalidade, não cabendo ao Judiciário avaliá-lo. E, como as leis se presumem constitucionais até declaração judicial em contrário, sua suspensão liminar depende de indícios sólidos de inconstitucionalidade. Ao suspender a 14.434 com base em achismos e expressões de incerteza, Barroso e 6 de seus pares inverteram ilicitamente tal presunção.
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O real motivo da suspensão não está no direito vigente, mas no sistema de poder que ele nem sempre legitima e que tem, hoje, no STF uma das últimas trincheiras.
Trata-se da relação mafiosa e parasitária entre os hospitais privados e o Poder Público, descrita no acórdão ao revés: eles dependem do dinheiro público e querem fazer crer que o Estado e a população dependem deles. Dessa falsa premissa, extraem e impõem, via STF, a falsa conclusão de que prejudicar seu negócio deixaria o povo ao desamparo. Na petição inicial da CNSaúde e no voto de Barroso, ameaça-se com a interrupção dos serviços de diálise prestados ao SUS.
Não faltam instrumentos legais para responder a essa tentativa de extorsão. Para garantir serviços essenciais, o Estado pode intervir em entidades privadas, requisitando ou desapropriando suas instalações e equipamentos.
Que a maioria dos atendimentos de alta e média complexidade do SUS se dê em hospitais privados, é, ademais, uma violação aos arts. 199 § 1º da Constituição e 24 da Lei 8.080, os quais só permitem tal contratação em caráter complementar e subsidiário. Ao balizar decisões políticas e judiciais, tal distorção se perpetua e produz outras, em prejuízo do erário, dos trabalhadores do setor, e do povo.
O STF condicionou a aplicação dos pisos à cobertura federal não só do que estados e municípios gastarão por pagá-los, mas também da folha salarial de entidades privadas que atendem pelo SUS ou, se “filantrópicas”, até fora dele. Essa ordem de arrombamento dos cofres públicos foi acatada pelo Congresso via EC 127; os pisos, porém, seguem suspensos porque os hospitais privados não se consideram suficientemente atendidos e há problemas de compatibilidade com o teto de gastos.
Tanto a atividade empresarial quanto a caridade pressupõem que quem as exerce faça frente a seus custos. Que o Estado os assuma, é uma aberração e um motivo a mais para que ele assuma diretamente os serviços de Saúde.
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A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) diz que os pisos da enfermagem acarretarão um gasto extra de R$ 6,3 bilhões anuais a seus representados. Dados da Receita Federal compilados pelo economista Carlos Octávio Ocké-Reis e publicados pelo IPEA mostram que, em 2018, hospitais, ambulatórios e clínicas ditos beneficentes deixaram de pagar R$ 14 bilhões entre imposto de renda (IR) e contribuições sociais sobre o faturamento (PIS e Cofins), o lucro líquido (CSLL) e a folha de pagamentos. O valor real é maior em pelo menos R$ 1,5 bilhão, pois a Receita não computa o adicional de 6% da folha devido por causa das condições laborais insalubres e/ou perigosas. O levantamento tampouco abrange benesses estaduais quanto ao ICMS, IPVA e imposto sobre heranças e doações recebidas (ITCMD), nem as municipais de IPTU e ISS-QN.
Casado com uma sócia do escritório Sérgio Bermudes, que defende a CMB, na ADI 7222, Gilmar Mendes, ao votar pela suspensão dos pisos, ressaltou que a contrapartida ao setor privado não pode ser o fim da contribuição patronal sobre a folha, pois esses hospitais já não a pagam.
Às mesmas instituições ditas beneficentes, a União entregou, também em 2018, R$ 10 bilhões por atender pacientes do SUS, segundo o Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif). Essa cifra não inclui as remunerações fixas e/ou por metas, que substituem, em muitos casos, as baseadas no número de atendimentos. Nem as dos demais entes federativos: só o estado de São Paulo repassou, em 2014, R$ 4,7 bilhões a essas entidades.
Se um hospital cobra do Estado para atender pelo SUS, quem está proporcionando gratuidade ao paciente é o Estado. A diferença entre hospitais privados com e sem fins lucrativos é que estes últimos lucram muito mais, somando à remuneração do atendimento favores fiscais bilionários.
Devem-se considerar, ainda, R$ 16,8 bilhões descontados do imposto de renda por pessoas físicas em 2018 a título de gastos no sistema privado; e R$ 8,6 bilhões que pessoas jurídicas deixaram de pagar de IR e CSLL por fornecer planos de saúde a seus funcionários. Estas cifras não abrangem os sistemas paralelos que alguns estados e municípios têm para seus servidores (o Rio Grande do Sul pagou R$ 2,2 bilhões a prestadores privados de seu instituto de pensões em 2018), nem o reembolso de outros deles e da União aos seus pelas mensalidades pagas a planos privados.
Tais números revelam um gasto público com instituições privadas de saúde de ao menos R$ 52,6 bilhões em 2018 – muito inferior ao real, mas equivalente a quase meio orçamento federal da área.
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Para refutar as alegações de penúria e altruísmo dessas ricas instituições e de seus milionários dirigentes, basta lembrar o tráfico de certificados de beneficência no Conselho Nacional de Assistência Social, flagrado pela Polícia Federal em 2008 na muito bem denominada Operação Fariseu. Quem corromperia a si e a outros, se arriscando à prisão, por algo que lhe dá prejuízo?
Que o atendimento hospitalar privado, especialmente o dito filantrópico, seja um negócio baseado na imoralidade tributária, no favoritismo político e na superexploração do trabalho, não significa, porém, que o dinheiro é seu único objetivo: seus donos prezam, tanto ou mais, o poder.
Nos quase 800 municípios em que só há esses hospitais, quem os controla (quase sempre religiosos, geralmente católicos) exerce sobre as respectivas populações uma dominação clientelar literalmente de vida e morte, que é parte da dominação oligárquica baseada, via de regra, no monopólio da terra. Não muito diferente é a relação com seus trabalhadores, desprovidos das garantias do setor público, como a estabilidade, e impedidos de buscar outro empregador onde não o há.
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A CNSaúde obteve do STF também a redução dos pisos salariais dos médicos, cirurgiões dentistas, auxiliares e técnicos de laboratório, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 325, julgada em 2022; e dos técnicos em radiologia na 151, em 2011.
Tais decisões se basearam numa leitura possível (embora errada) da Constituição, e não foram tão drásticas: em vez de eliminar esses pisos como queria a CNSaúde, o tribunal só dissociou seus reajustes e os do salário mínimo.
Mas técnicas e auxiliares de enfermagem são a grande massa trabalhadora da Saúde, basicamente feminina. O tribunal que perpetra contra elas tão grosseira arbitrariedade é o mesmo que tem endossado qualquer disparate alegadamente vinculado a feminismo e gênero.
3 meses antes de suspender os pisos da enfermagem, o STF declarou inconstitucional – sem indagar por fonte substitutiva de arrecadação de R$ 1 bilhão por ano – a cobrança de imposto de renda sobre toda e qualquer pensão alimentícia, inclusive as de centenas de milhares de reais pagas a dondocas que jamais trabalharam fora nem dentro de casa, pois servidas por empregadas domésticas. Para Barroso, Toffoli e 6 de seus colegas, cobrar de burguesas ociosas o mesmo IR que se cobra das que auferem igual ou menor valor trabalhando é machismo; mas submeter operárias a salários de fome sobre os quais também incide, muitas vezes, tal imposto, não.
A tão falada brecha salarial não existe, no Brasil, como usualmente descrita (menor remuneração por igual trabalho para o mesmo empregador), mas na própria divisão sexual do trabalho: categorias majoritariamente femininas (magistério e enfermagem) ganham menos que outras, masculinas ou mistas, de igual ou menor escolaridade e relevância social. A premissa oculta é ser o salário da mulher um plus destinado a moda e beleza, e não fonte de sustento da família e do lar.
Mas isso é insustentável num país que aniquilou empregos e salários masculinos ao regredir de economia industrial a fazenda com shopping center anexo. Mesmo trabalhadoras que internalizam esses conceitos se vêm, cada vez mais, na situação objetiva de arrimos (não raro, os únicos) de suas famílias, e passam a querer salários condizentes.
À exploração do homem pelo homem (base das relações capitalistas de produção), se soma a da mulher pela mulher (base das relações de reprodução social), com as das classes dominantes repassando às das classes trabalhadoras as tarefas assinaladas pela divisão sexual do trabalho.
No Brasil, salários e jornadas vis permitem isso também às da pequena burguesia (“classe média”), sobretudo suas frações abastadas, com acesso a serviços que, em sociedades mais decentes, ou são providos a todos gratuitamente pelo Estado, ou só são – porque remunerados dignamente – acessíveis aos realmente ricos. Cuidados de enfermagem (inclusive domiciliares) são, junto ao trabalho doméstico, o maior exemplo.
¹ https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10929/1/td_2712.pdf