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Nestes primeiros dias de 2023, meios de imprensa que se dizem sérios, como O Estado de São Paulo e Poder 360, difundiram a mentira de que o Supremo Tribunal Federal (STF) estaria às portas de proibir a demissão sem justa causa.
A origem da “notícia” é a recente imposição, pelo tribunal, do prazo máximo de 90 dias para que seus membros examinem casos com julgamento já iniciado. Até então, não havia limite algum e os ministros podiam, a pretexto de pedir vista, paralisar julgamentos indefinidamente. Agora, como os autos são eletrônicos e qualquer partícipe da decisão pode ter acesso a eles a qualquer tempo, não é mais necessário esperar a devolução do processo: expirado o prazo, o presidente da corte (hoje, Rosa Weber) pode reincluí-lo em pauta.
A metodologia, como se vê, é a mesma das fake news de Bannon e dos Bolsonaro: interpretação distorcida de um fato para produzir manchetes bombásticas só tenuemente relacionadas a ele e, assim, assustar a população (neste caso, mormente micro e pequenos empresários, mas também muitos trabalhadores que temeriam a dificuldade de contratação ou a fabricação de “justas causas”), confundindo-a sobre seus próprios interesses.
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O objetivo é influenciar o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.625), que tramita no STF há 25 anos. Até que começasse a ser julgada, se passaram 6 – dos quais 4 à espera de parecer do então engavetador geral, Geraldo Brindeiro. Seguiram-se seis pedidos de vista, cuja duração média é, até aqui, de quase 4 anos. Sendo Gilmar Mendes quem é (AND 53 e 197), as patronais, seus advogados e sua imprensa apostavam que ele reteria o processo em seu gabinete até se aposentar, em 2030. Agora, em tese, isso deixou de ser possível – ou, pelo menos, de estar assegurado.
Toda essa demora é que deveria suscitar escândalo, até porque as questões sob exame são elementares: 1) Pode o Executivo excluir da legislação nacional uma norma cuja incorporação a ela passa, obrigatoriamente, pelo Legislativo? 2) Uma lei ordinária, uma norma supralegal ou uma emenda constitucional (no quarto de século transcorrido desde então, mudou a compreensão de sua natureza) podem ser suprimidas por um decreto (norma de hierarquia inferior)?
Só um professor benevolente ao extremo proporia, numa prova, tais questões a seus alunos do primeiro semestre do curso de Direito. E o STF nem precisa responder a ambas: o exame de qualquer delas determina a procedência da ação, a inconstitucionalidade da norma impugnada (Decreto 2.100/1996) e a vigência da que, mediante ela, o governo FHC quis extirpar da legislação brasileira (Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho).
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O que explica – por arbitrariedade e viés de classe – a demora do STF e o chilique da imprensa liberal-conservadora é o teor de tal norma: ela efetiva, ao menos em grande parte, o direito fundamental à “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa” (art. 7o, I da Constituição), e, ao fazê-lo, concretiza, no âmbito laboral, a garantia de que “ninguém será privado de (…) seus bens [no caso, o emprego] sem o devido processo legal” (art. 5o LIV). Proíbe que um(a) trabalhador(a) seja demitido(a) sem “uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço” (art. 4o da convenção), a ser apurada em processo interno com direito de defesa (art. 7o). Se o(a) trabalhador(a) demitido(a) questionar em juízo a dispensa, não lhe poderá ser imposto todo o ônus da prova da inexistência ou inidoneidade de tal causa (arts. 8o e 9o). Decidindo o Judiciário ser ilícita a demissão, o(a) trabalhador(a) deve ser reintegrado ou, não sendo isso viável no caso particular, indenizado (art. 10).
Essas mudanças são justas, bem vindas, e não equivalem a proibir qualquer demissão sem justa causa. Nos termos do art. 7o da Constituição, “dispensa arbitrária” e “dispensa sem justa causa” não são sinônimos, e a “causa justificada” não equivale à “justa causa” do art. 482 da CLT.
As demissões sem justa causa podem ser arbitrárias ou não. O serão quando não houver “causa justificada”, ou seja, “motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro”, nos termos do art. 165 da CLT (o 482, sobre justa causa, trata apenas dos disciplinares), caso em que caberá a reintegração ou indenização substitutiva, necessariamente mais elevada que a atual de 40% do FGTS. Mesmo sem justa causa, a demissão não será arbitrária quando existir a causa justificada, hipótese na qual não se cogita reintegração, mas há direito a uma indenização menor (hoje, 40% do FGTS).
Demissão que não decorra do comportamento ou desempenho do empregado, nem da situação financeira da empresa ou da desnecessidade do serviço deve mesmo ser coibida. Obrigar a empresa a ouvir o trabalhador antes de demiti-lo (ou a reintegrá-lo se provada a ilegitimidade da dispensa) evita essas situações, obriga as chefias a se portar melhor e, em não poucos casos, termina sendo um favor às próprias empresas, que deixam de perder bons trabalhadores por maledicência, perseguição e caprichos de chefes ineptos.
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A Convenção 158 saldaria uma das grandes promessas descumpridas da Constituição de 1988: restaurar, ainda que em bases diversas das originalmente contidas na CLT, a ideia de proteção ao emprego, abolida por ato de exceção nos primeiros dias da ditadura de 1964. A tramitação da ADI 1.625 mostra, porém, que efetivar o marco jurídico oficial da dita Nova República excede, mesmo em sua atual fase de decomposição, os limites fáticos pactuados por seus artífices e dirigentes.
O STF não quer declarar inconstitucional a revogação, mas tampouco pode legitimá-la sem incorrer num vexame colossal que aprofundará a correta visão negativa que têm dele o povo brasileiro e a comunidade jurídica nacional e internacional. Por isso, não julga o processo.
A repercussão internacional pesa até mais para os ministros que a interna, a julgar pela ausência de pejo em proferir decisões incongruentes em matéria laboral quando não havia tratados internacionais em jogo (recentes casos da atualização monetária de débitos trabalhistas, da duração das normas coletivas de trabalho e do piso salarial da enfermagem).
Peso ainda maior, no entanto, tem o fato de Lula e Bolsonaro, por mais que sirvam ao imperialismo e às oligarquias, não serem depositários de sua plena confiança, motivo pelo qual os fatores de poder que pairam acima deles não querem lhes reconhecer a prerrogativa de revogar tratados sem anuência do Congresso (solução aventada por Brindeiro e Nelson Jobim no início do julgamento, quando o presidente era FHC, detentor de tal confiança).
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Ante a inviabilização da tese da faculdade presidencial de denunciar tratados sem referendo legislativo, assomam, agora, “soluções” tão ou mais ilógicas e arbitrárias nos votos de Teori Zavascki, Dias Toffoli e Rosa Weber. É preciso denunciar sua inconsistência lógica e jurídica como expressão da incapacidade e/ou recusa do sedizente “Estado Democrático de Direito” brasileiro – no caso, por meio de sua cúpula judicial – a agir de acordo com suas próprias normas, sobretudo as constitucionais e supralegais. Sem desmerecer os votos que, atendo-se ao critério “in claris, cessat interpretatio”, aplicam corretamente o direito (Maurício Corrêa, Carlos Aires Britto e Joaquim Barbosa, já aposentados) diz-se aqui isto ante o retrospecto de um tribunal cuja decisão de maior transcendência histórica, até hoje, foi a entrega de uma mulher grávida à Alemanha nazista; o nefasto papel por ele desempenhado nesta etapa aguda da crise nacional; e as inadmissíveis saídas que ora ali se delineiam para a ADI 1.625. Elas, sim, deveriam despertar preocupação.
Zavascki e Toffoli reconhecem ser a aprovação legislativa condição imprescindível da denúncia de tratados, mas convalidam a da Convenção 158 e todas as que se deram ou se venham a dar até o fim do julgamento. Ao contrário do que dizem, isso não configura a modulação de efeitos autorizada no art. 27 da Lei 9.868, mas uma clara violação aos limites do processo.
Sendo um possível desdobramento da procedência de uma ADI, a modulação não pode subverter o julgamento que a enseja e determinar a improcedência da mesma ação julgada procedente e por isso modulada. Só o que o STF pode é adiar o início da aplicação Convenção 158, convalidando as demissões imotivadas ocorridas até determinado dia, mas nunca a própria norma reconhecida inconstitucional (o Decreto 2.100/96). Doutro prisma, dispor sobre a validade da denúncia pretérita ou invalidade da denúncia futura de qualquer outro tratado também excede o próprio objeto da ADI 1.625, na qual se julga apenas esse decreto pretensamente revogador da Convenção 158.
Weber, por sua vez, reconhece a vigência da convenção, mas não sua eficácia (aplicabilidade), negando tratar-se de norma protetiva de direitos humanos, com o que lhe subtrai a hierarquia supralegal (isto é, superior a qualquer lei) que o STF reconhece a tais normas para concluir que se trataria de lei ordinária, inapta a regulamentar o art. 7o, I da Constituição, reservado a uma espécie normativa superior (lei complementar). Ela tenta também negar que o texto da Convenção 158 fornece parâmetros suficientes de aplicação, que reputa condicionada ao advento da lei complementar regulamentadora. Além de exceder, uma vez mais, o objeto do processo – que, repita-se, é a validade do decreto de denúncia, não o teor ou alcance do tratado, só passíveis de debate na fase de eventual modulação – tais juízos são primariamente errôneos e contraditórios.
Se rege a matéria do art. 7o, I da Constituição, a Convenção 158 dispõe sobre direito definido como fundamental na própria carta e também nos arts. 23, 1 da Declaração Universal de 1948 (“proteção contra o desemprego”) e 7, “d” do Protocolo de San Salvador (“estabilidade dos trabalhadores em seus empregos”, “indenização” e “readmissão no emprego” como medidas admissíveis “nos casos de demissão injustificada”), tendo, pois, status superior ao de lei complementar, segundo dito pelo próprio STJ em sucessivos casos de conflito entre tratado internacional e lei interna, ao longo de 15 anos; se não trata de tal matéria, não invade seara dessa espécie normativa.
Por um ou outro motivo, e também por seu detalhamento e articulação ao art. 165 da CLT (que define dispensa arbitrária), a Convenção 158 tem aplicação imediata, como bem sabem as patronais e os escritórios que as assessoram. Fosse minimamente plausível o que diz Weber, se aferrariam à disputa interpretativa e não dedicariam tanta atenção nem tão pesada artilharia a qualquer cogitação de sua vigência (e, claro, o STF já teria julgado, há muito tempo, a ADI 1.625).
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Que tão tendencioso e inconsistente engendro venha da única ministra oriunda da justiça do Trabalho, é ilustrativo do costume, lá tão arraigado, de cacarejar para os trabalhadores e pôr ovos para os patrões. Não há nem houve, nestes 25 anos, determinação judicial para que varas e tribunais desse ramo se abstenham de aplicar a Convenção 158: sua obstinação em não fazê-lo é voluntária e possibilita o adiamento perpétuo do desfecho da ADI 1.625 no STF. Registrem-se as escassas e honrosas exceções como a Súmula 42 do Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo (TRT-17), infelizmente suspensa após aquela corte ceder a fortes pressões das quais tomou parte quem hoje tem a ADI 1.625 em seu gabinete: Gilmar Mendes.
Malabarismos só funcionam quando as peças se mantêm no ar. A ADI 1.625 constitui um raro caso em que ou o STF faz o que não quer (e, ao que parece, terá que fazê-lo em prazo relativamente curto), ou elas, inevitável e indisfarçavelmente, cairão. Talvez contribuindo para levar junto o tribunal.
Henrique Júdice é advogado, jornalista, tradutor e professor. Membro da diretoria da Associação Brasileira dos Advogados do Povo Gabriel Pimenta (Abrapo). Realizou trabalhos de pesquisa e consultoria para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
[1] Estadão. STF vai proibir demissão sem justa causa? Entenda como está o julgamento. 30 de janeiro de 2023.
[2] Poder360. Confederações são contra ação que proíbe demissão sem justa causa. 5 de janeiro de 2023.
[3] A Nova Democracia. O cão de guarda das classes dominantes. 20 de maio de 2009.
[4] A redação original dessa lei previa, em caso de demissão sem justa causa, indenização de um salário por ano de serviço e estabilidade (aí sim, proibindo-se a dispensa sem justa causa, que deveria ser apurada judicialmente) após 10 anos, depois reduzidos, na prática, a 9. Suprimir essas garantias foi uma das primeiras ações do regime militar instaurado em 1964.
[5] Por exemplo, mediante agressivas declarações a um site suspeitamente próximo a ele próprio e menos dedicado ao jornalismo que ao tráfico de influência e à alcovitagem: https://www.conjur.com.br/2017-jan-25/trt-es-atropela-stf-cria-regra-proibe-demissao-injustificada e https://apublica.org/2017/09/supremas-relacoes-2/