Sudão: massas rechaçam ONU e impõem resistência incansável a golpe militar

Sudão: massas rechaçam ONU e impõem resistência incansável a golpe militar

Massas protestam no Sudão. Foto: Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

Desde outubro de 2021, as massas sudanesas têm intensificado sua incansável rebelião contra a crise econômica e o golpe militar liderado por Abdel Fattah al-Burhan, general do exército do país. Em fúria contra a crise geral, as massas destruíram prédios governamentais, confiscaram mercados, bloquearam rodovias e acamparam em frente a quartéis-generais. Ressaltando sua independência, as massas também rechaçaram as tentativas da Organização das Nações Unidas (ONU) de intervir no país para “resolver” a crise.

Desde outubro, milhares de sudaneses realizaram protestos em diversas cidades. No dia 21 de maio, milhares ocuparam as ruas de Khartoum, capital do país, contra o regime militar de Abdel al-Burhan. A manifestação foi duramente reprimida e um manifestante foi assassinado com um tiro no peito. A morte desse manifestante se soma ao verdadeiro massacre desencadeado pelas forças de repressão contra as massas sudanesas, contando com 96 mortes desde outubro de 2021. 

O golpe deflagrado pelo ultrarreacionário Abdel faz parte de uma pugna entre diferentes frações das classes dominantes expressa no exército reacionário sudanes, apoiadas por diferentes potências e superpotências imperialistas. O golpe foi ainda uma tentativa de dar fim às rebeliões populares que se sucediam desde 2019 contra o antigo regime militar que imperou no país por 30 anos sob mando do general Omar al-Bashir e contra o sistema de opressão e exploração que perdura contra as massas populares.

ONU é alvo de rebelião popular

Sudaneses exigem saída da ONU do país. Foto: Ebrahim Hamid/AFP

No dia 01/06, centenas de massas protestaram em frente à uma sede da ONU em Khartoum contra a intervenção da organização na crise política do país e pela saída de Volker Perthes, presidente da Missão de Assistência à Transição Integrada das Nações Unidas no Sudão (Unitams, sigla em inglês), assim como exigiram o fim da missão. Palavras de ordem como Volker, alemão, a crise será resolvida por sudaneses!, foram entoadas. Em fúria, Mohammed Sayeh, que estava no protesto, declarou ao monopólio de imprensa Africa News: “Volker deve ir embora hoje, antes de amanhã. Se ele não for, nós faremos ele ir pela força. Nós não vamos implorar, escrever relatórios ou discursos. Será pela força, pela força direta”.

As massas também denunciaram a ingerência da ONU desde que começou a intervir na crise. A organização tem buscado, por meio de sua missão, apaziguar a rebelião das massas ao encorajar a participação política de “representações civis oficiais” junto aos militares para simular uma “transição democrática”. Essas representações, contudo, não têm o mínimo respaldo nas massas, como deixou claro um manifestante: “Volker veio para envolver partidos [da Força pela Liberdade e Mudança, coalizão oportunista apoiada pela ONU e imperialismo ianque] de volta na sociedade sudanesa. A sociedade sudanesa é contra esses partidos. Essas pessoas trabalham para benefício próprio. Nós não vamos parar, e nós não vamos nos acalmar até os problemas do Sudão serem resolvidos por sudaneses”, declarou Ahmed Ahli, também ao Africa News.

A Unitams é uma missão da ONU criada em 3 de junho de 2020 para “prestar apoio ao Sudão em seu período de transição política à democracia”. A missão foi primeiramente programada para terminar em 03/06/2021, mas foi prorrogada para 03/06/2022. Agora, novamente a ONU fala em prorrogação do mandato.

As intervenções da ONU na África servem, no fundo, para aprofundar o caráter colonial e/ou semi-colonial das nações oprimidas africanas, tendo por trás o financiamento e interesses de potência e superpotências imperialistas. Frequentemente, as tropas da ONU nos países africanos são alvo da rebelião das massas por sua ineficácia ou por crimes cometidos contra o povo, como foi em 2019, no Congo, quando manifestantes incendiaram um escritório das “tropas da paz” desta organização, ou no Mali, em 2020, quando tropas da ONU foram atacadas e um soldado foi morto pelas massas em fúria.

Massas protestam contra ONU. Foto: Getty Images/The New Arab

Coliseu do imperialismo

Abdel Fattah al-Burhan. Foto: AFP

O Sudão conquistou sua “independência” (meramente formal) em 1956, após acordos com o Reino Unido, país que exercia dominação colonial do país, e o Egito, que na época “dividia” a administração do Sudão com o Reino Unido. Desde então, o Sudão permanece no estado de semi-colônia, sujeito a interesses imperialistas das mais diversas potências e superpotências, como um verdadeiro campo de guerra das contradições interimperialistas. 

Em 2019, combativos protestos das massas populares sudanesas deram fim ao governo militar de Omar al-Bashir. Al-Bashir tomou o poder em 1989, quando depôs o ex-presidente Ahmed al-Mirghani e deu início ao período de governos militares que até hoje se sucedem no país. Esse golpe marcou também uma mudança de senhores na semi-colônia: enquanto Ahmed al-Mirghani foi um fiel lacaio do imperialismo inglês, Omar al-Bashir serviu como vassalo do social-imperialismo chinês. Tal fato se manifesta, por exemplo, na construção de uma sede da China National Petroleum Corporation (CNPC) em Khartoum, em 1995, nas concessões de comércio de óleo, refinaria e investimentos em indústrias de óleo dadas ao imperialismo chinês e nas taxas de exportação do país: entre 2005 e 2009, 76% das exportações eram destinadas ao país asiático.

Como reflexo desta situação de semi-colonialidade, o governo de al-Bashir foi marcado por uma economia em profunda crise, manifestada por taxas de inflação que atingiram 72% no ano de 2018, pela falta de comida no país e pela ausência de dinheiro nos caixas eletrônicos do país, o que impedia o povo de receber seu salário. As massas ofereceram dura resistência contra a situação deplorável do governo militar de al-Bashir. No dia 19 de dezembro de 2018, um protesto ocorreu na cidade de Atbara, nordeste do país. Poucos dias depois, protestos começaram a ocorrer em todo o país, dando início a sequência de rebeliões populares que tomaram em torno de 35 cidades do país. As massas em fúria destruíram prédios do governo, bloquearam as ruas com pneus em chamas, confiscaram mercados e acamparam em frente aos quartéis-generais. Temeroso pela rebelião popular, al-Bashir declarou, em fevereiro de 2019, um estado de emergência por um ano, dissolveu o Conselho Nacional de Ministros e os governos dos estados, substituiu diversos governadores por militares, e desencadeou uma dura repressão às massas. Nenhuma dessas medidas, contudo, enfraqueceu a mobilização popular. 

Dois meses depois de Omar al-Bashir decretar o estado de emergência, uma fração do exército apoiada pelo imperialismo ianque e dirigida pelo atual presidente, Abdel Fattah al-Burhan, que à época estava conduzindo uma campanha de “dialogar com o povo”, dirigiu um golpe contra al-Bashir. No dia 11 de abril de 2019, o militar Ahmed Awad Ibn Auf assumiu o cargo de presidente, no qual ficou por 1 dia, antes de ceder para Abdel al-Burhan. 

Al-Burhan se mostraria um dos piores inimigos do povo sudanês. Em junho de 2019, confrontado pela justa rebelião popular, os militares sob seu comando reprimiram brutalmente manifestantes que acampavam em frente a um quartel-general de Khartoum. Forças militares e paramilitares espancaram, estupraram e abriram fogo contra as massas. A chacina resultou em 128 mortos, muitos dos quais tiveram seus corpos jogados no rio Nilo pelas forças de repressão do velho Estado sudanês.

Um mês depois ao Massacre de Khartoum, em julho de 2019, o governo militar de al-Burhan, encorajado pelo imperialismo ianque e como uma manobra para apaziguar as massas com falsas promessas de “transição à democracia”, assinou um acordo de divisão do poder e instituiu Abdallah Hamdock (conhecido do imperialismo, com longa carreira em instituições como Banco Africano para Desenvolvimento e Comissão Econômica das Nações Unidas para a África) como Primeiro-Ministro. O ministro agiria como um “representante civil” no governo, por meio da coalizão oportunista Forças pela Liberdade e Mudança. As massas em fúria não se enganaram e em nenhum momento interromperam os protestos por todo o país durante o ano de 2019. Nos protestos, o povo denunciava que o acordo entre al-Burhan e Hamdock servia somente para legitimar a manutenção do regime militar, que seria a força predominante no velho Estado.

Além de massacrar as massas populares, o regime de al-Burhan afundou ainda mais a crise econômica do país. Atrelados ao imperialismo pela situação de semi-colonialidade do país, o governo ultrarreacionário de al-Burhan se afundou em dívidas com os imperialistas e suas instituições, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. O imperialismo ianque e francês estimularam e ofereceram anulações e descontos de dívidas ao velho Estado sudanês para, logo em seguida, oferecer novos empréstimos a fim de  amarrar ainda mais o país aos seus interesses. No início de 2021, a taxa de inflação atingiu 300%, segundo o Departamento Central de Estatística do Sudão. 

A gerência de Abdel tem sido marcada, também, por forte instabilidade entre diferentes frações dos militares. Em julho de 2019, 12 oficiais foram presos acusados de participar de uma tentativa de golpe contra Abdel Fattah al-Burhan. Menos de um ano depois, em abril de 2020, Abdallah Hamdock sofreu uma tentativa de assassinato pela qual um grupo intitulado Movimento da Juventude Islâmica Sudanesa – Talibã do Sudão declarou autoria. Os militares apoiadores de al-Burhan, contudo, acusaram generais apoiadores de al-Bashir pela realização da manobra. Em setembro de 2021, militares apoiadores da fração de Omar al-Bashir realizaram mais uma tentativa de golpe. Como resultado, em outubro de 2021, al-Burhan, no intuito de fortalecer o poder militar, destituiu Hamdock, em uma manobra que seria desfeita um mês depois com a volta de Hamdock ao cargo de premiê. Por sua vez, Abdallah Hamdock voltaria a sair do cargo em janeiro de 2022, quando renunciou perante à incessante rebelião popular contra a crise cada vez mais grave no país.

Todos esses fatores evidenciam que o Sudão, em situação semicolonial e semifeudal, tem sido um verdadeiro coliseu do imperialismo, um campo de guerra onde as pugnas interimperialistas só servem para aprofundar a miséria das massas populares do país. Estas massas, por outro lado, demonstram-se incansáveis na resistência e luta por seus direitos e não se deixam enganar perante às falsas promessas e manobras do imperialismo. 

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