Os desastres-crimes ocorridos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) marcaram a história recente do Brasil como dois dos mais trágicos rompimentos de barragens de rejeitos de mineração.
Em Mariana, o rompimento da Barragem de Fundão, operada pela Samarco – uma joint venture da Vale e da BHP – despejou 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre a Bacia do Rio Doce, matando 19 pessoas e afetando milhares ao longo de centenas de quilômetros, até o litoral do Espírito Santo.
Quatro anos depois, em janeiro de 2019, o desastre-crime ocorreu novamente. O colapso da barragem da Mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, lançou cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre o Rio Paraopeba. O impacto foi ainda mais devastador, com 272 mortes confirmadas, além de danos ambientais e sociais cujas consequências ainda persistem.
Mas, para além dos rompimentos, emergiu um novo tipo de violência: o uso do medo como instrumento de dominação territorial. Trata-se do que o professor Daniel Neri, em sua tese de doutorado defendida no Instituto de Geociências da Unicamp em 2023, denomina terrorismo de barragens — uma estratégia de acumulação por despossessão, pela qual o pânico é mobilizado para viabilizar a remoção de comunidades inteiras e a apropriação dos territórios pelas mineradoras.
O caso de Barão de Cocais
Duas semanas após a catástrofe de Brumadinho, em 8 de fevereiro de 2019, às duas da madrugada, viaturas da PM, agentes da Defesa Civil e funcionários da Vale bateram às portas dos moradores dos povoados de Socorro, Piteira, Tabuleiro e Vila do Gongo, em Barão de Cocais (MG). A ordem era direta e aterrorizante: “Esta é uma situação real de emergência de rompimento de barragem. Abandonem imediatamente suas residências.”
O pânico se espalhou. Famílias deixaram suas casas às pressas, algumas de carro, outras em ônibus fretados pela própria mineradora. O medo era alimentado pela memória recente da tragédia em Brumadinho. No entanto, como apontam os estudos do professor Daniel Neri, o episódio em Barão de Cocais não passava de uma manobra bem articulada. “Desde o primeiro minuto, o alerta foi questionado por moradores que conheciam bem a situação da barragem, que estava seca”, relatou Daniel Neri em entrevista ao AND. “Algumas famílias resistiram, mas foram removidas à força pela Polícia Militar semanas depois.”
A barragem Sul Superior, alvo do alerta, foi construída pelo método de alteamento a montante – o mesmo utilizado nas estruturas que se romperam em Mariana e Brumadinho. Trata-se do método mais barato e rápido.
Como apontado pela pesquisa de Neri, a Vale mantinha, desde 2017, um “Ranking de Barragens em Situação Inaceitável”, que listava as dez estruturas mais propensas a rompimento. A barragem B1 de Brumadinho, que se rompeu em janeiro de 2019, constava na lista. Já a barragem Sul Superior – que foi utilizada para justificar a remoção em Barão de Cocais – não aparecia entre as ameaças reais. Em setembro de 2018, a barragem ainda tinha laudo de estabilidade emitido. Subitamente, após o rompimento em Brumadinho, o laudo foi negado, sem qualquer evidência técnica robusta.
Após a negativa da empresa Walm em emitir a Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) da barragem Sul Superior, inicia-se a manobra: a Vale comunica à Agência Nacional de Mineração (ANM) que acionaria o nível 1 do PAEBM (Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração). Entretanto, o próprio PAEBM da barragem indicava que o nível 1 não exige retirada da população. Ainda assim, toda uma estrutura logística de evacuação já estava montada: ônibus, cadeiras de rodas para idosos, lanches, rotas de fuga. Como explica Neri, “essa estrutura de remoção estava toda planejada, contrariando o discurso de emergência que usaram para tocar a sirene de madrugada.”
Horas depois, a ANM eleva o risco para o nível 2, justificando a evacuação da zona de autossalvamento.
No mesmo dia da evacuação, a Vale comunicou à Superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI), da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento (SEMAD), o início da obra “emergencial” de uma Estrutura de Contenção em Concreto Rolado – CCR. A autorização para esse tipo de intervenção, sem necessidade de licenciamento ambiental, só viria meses depois, com o decreto estadual nº 47.749, de 11 de novembro de 2019. “Por que correram para fazer o muro — que já era de interesse da empresa — e não para corrigir a barragem?”, questiona Neri.
Com a desocupação forçada de Tabuleiro, a estrutura deixou de ser apenas uma contenção e virou um passadiço logístico para conectar minas como a do Baú à planta de Gongo Soco. Essa ligação estratégica viabiliza o Projeto Apolo, um empreendimento da Vale na Bacia do Rio Santa Bárbara, área de grande importância hídrica e ambiental, mas também cobiçada pelo capital minerário.
“A evacuação das comunidades era necessária para essa expansão. Com o território desocupado e a flexibilização do licenciamento, a empresa pôde avançar com suas obras”, denuncia Neri.
Despossessão sistemática
Barão de Cocais não foi um caso isolado. A mesma estratégia foi aplicada em outras regiões de Minas Gerais. No mesmo dia 8 de fevereiro de 2019, a ArcelorMittal promoveu a evacuação de moradores da Comunidade de Pinheiros, em Itatiaiuçu, alegando negativa da DCE da barragem de Serra Azul. A empresa declarou que os testes foram “reavaliados” após Brumadinho, mas não apresentou nenhuma nova evidência técnica.
No distrito de São Sebastião das Águas Claras (conhecido como Macacos), em Nova Lima, em 16 de fevereiro de 2019, sirenes também soaram, evacuando a população próxima às barragens B3/B4, da Vale. As estruturas tinham DCE em dia e não figuravam no “ranking de risco” da empresa. Dias depois, a Vale requereu nova obra emergencial: outro muro de contenção. Três anos mais tarde, essa estrutura alagou o distrito. A suspeita é que a mineradora queira forçar a desvalorização das terras para ampliar a Mina Mar Azul.
Em Ouro Preto, no distrito de Antônio Pereira, 473 pessoas foram removidas após a elevação súbita do risco da barragem Doutor, da Vale. Com isso, a empresa construiu, sem o devido processo de licenciamento ambiental, um vertedouro e uma estrada para servir de rota alternativa à rodovia MG 129.
Nota-se um padrão: a mineradora recebe ou força a negativa de uma DCE, comunica um suposto risco, aciona níveis elevados de emergência e promove a evacuação em tempo recorde. Pouco depois, inicia obras que exigiriam licenciamento, mas que, sob a roupagem de “emergenciais”, são conduzidas sem fiscalização ou consulta pública. As decisões são tomadas em conselhos e câmaras técnicas com forte influência do setor minerário. “Trata-se de uma aliança entre Estado e capital”, afirma Neri.
A resistência
Apesar da força do capital minerário, a resistência popular não está derrotada. Daniel Neri destaca que as reações populares ainda são “localizadas e contraditórias”, mas que existe espaço para a luta organizada.
Um exemplo recente foi a vitória da população de Ouro Preto que barrou o pedido de anuência da mineradora Leão de Ferro, interessada em explorar uma mina confrontante com a região do Monumento Natural da Gruta da Lapa.
Vitórias como essa mostram que, mesmo diante do terrorismo das mineradoras e da conivência das instituições, a força das massas organizadas é capaz de frear os avanços do capital.