Torto Arado, a semifeudalidade e o Brasil alcançado pela literatura

Torto Arado, a semifeudalidade e o Brasil alcançado pela literatura

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“Fui trabalhar no campo do Maranhão, e vivia viajando de norte a sul do Estado. Ali que conheci as comunidades quilombolas, povos indígenas, camponeses, trabalhadores acampados. Minha primeira experiência mesmo de campo foi essa, e foi uma grande escola. 

(…) Eu lia aqueles livros da geração de 30 e 45, livros que haviam sido escritos há mais de 70 anos, e encontrei uma realidade muito semelhante. O que eu pensei naquele momento era que nosso país é anacrônico, com um certo nível de desenvolvimento em alguns lugares, e nos rincões permanece imutável. As relações perversas do colonialismo e do escravagismo estão muito marcadas ali. 

O que mais me marcou foi ver trabalhadores vivendo nas terras de outras pessoas, tendo que dar sua produção sem nenhum direito sobre a terra, que é sua moradia, sendo pessoas que nasceram e viveram ali há gerações, passando por essa relação perversa da servidão, que é um outro nome pra escravidão. Quando abolimos a escravatura, não foi realizado uma reforma agrária para aqueles trabalhadores escravizados, para poderem ter vida digna e produzir. Eles ficaram vagando e errando de terra em terra para poderem sobreviver. E isso chega até os nossos dias (grifo nosso).” 

(Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, em entrevista ao portal “História da Ditadura”)

“Nenhum de nós prescinde desse que é o direito elementar de qualquer ser humano, que é o direito ao chão que ele pisa, o direito à terra.”  (Itamar Vieira Júnior, em entrevista a Sílvio Almeida)

É profundamente simbólico que um livro considerado por críticos literários e públicos das mais diversas matizes como “clássico” contemporâneo, o romance brasileiro “Torto Arado”, tenha como trama a realidade de vida do campesinato quilombola brasileiro de resistência contra o latifúndio, em especial o nordestino. Foi o livro mais vendido no Brasil em 2021 (mais de 350 mil cópias) e publicado em mais de 15 países. 

Além disso, venceu o prêmio Jabuti de Melhor Romance Literário em 2020, a premiação literária mais importante do país, entre outros prêmios significativos. Sem contar os direitos vendidos para realização de filme e o sucesso no exterior.

Diferente de muitos romances e obras no geral que fizeram sucesso de vendas nos últimos períodos do Brasil, esse de fato representa o espírito de determinado tempo que vivemos, suas demandas e assuntos candentes. 

O livro representa uma aproximação, em suas devidas proporções, com a literatura da chamada “geração de 30”, onde justamente a temática da questão agrária e camponesa estava palpitante, mormente pelo aprofundamento das lutas de comunistas e democratas honestos, que, errando e acertando, atestavam a realidade impetuosa das relações que se estabeleciam no campo brasileiro.

Podemos citar 3 livros somente dessa década, que é a maior inspiração para Itamar: “O quinze”, de Rachel de Queiroz; “Vidas secas”, de Graciliano Ramos; e “Cacau”, de Jorge Amado. 

Desde criança, Itamar Vieira Júnior se identificava com essas obras, de modo que ele havia prometido a si mesmo que seria essa a temática a atravessar seus escritos: “Aos 16 anos eu já havia lido os romances de 30 e 45, pelo menos os principais, que me fizeram pensar essas memórias do campo, da família, e ao mesmo tempo esse Brasil profundo, me deram essa possibilidade de imaginar e criar essa história.” 

Torto Arado, portanto, é um livro que, em sua atualidade inegável, trata dos mesmos temas e questões que há 90 anos perturbavam e instigavam a escrita de nossa literatura democrática: o peso de séculos de latifúndio e a, também, secular e heróica saga e luta do campesinato brasileiro. 

Diante de tal fato, que reflexões podemos tirar a respeito da formação histórica e econômica do Brasil?

O retrato da questão agrária e camponesa no romance “Torto Arado”

O livro se passa no sertão, interior da Bahia, na Chapada Diamantina, onde camponeses encontram alguma condição possível de existência no trabalho servil da fazenda Água Negra, cuja propriedade pertence aos latifundistas da família “Peixoto”. A proposta de trabalho para a família do camponês, conhecido mais tarde como Zeca Chapéu Grande, era de 6 dias de trabalho na fazenda e um dia de trabalho no roçado próprio – o “foro”, relação de trabalho comum ainda no campo brasileiro. 

Ao detalhar a família latifundiária e a coerção violenta que exerce através da pistolagem sobre aquela família e seu povo, assim escreve:

“A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam a terra, vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que não os esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam sua missão, regressavam. Mas havia os fazendeiros e sitiantes que cresceram em número e que exerciam com fascínio e orgulho seus papéis de dominadores, descendentes longínquos dos colonizadores; ou um subalterno que havia conquistado a sorte no garimpo e passava a exercer o poder sobre outros, que, sem alternativa, se submetiam ao seu domínio” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.54).

A continuidade da história, resumidamente, gira em torno da trajetória das duas filhas de Zeca Chapéu Grande, cujo laço é desenvolvido a partir de um acontecimento entre ambas, que marca para sempre suas vidas.

A voz narrativa passa pelas duas irmãs, Belonísia e Bibiana, personagens fortes, resistentes em resposta às peripécias advindas de suas situações, principalmente relativas à luta pela terra, à opressão feminina e à raça.

Quanto à história em si e suas peripécias, insto dessa tribuna com muita humildade que leiam, para, além da curiosidade sobre os temas que aqui trago, que se maravilhem com cada reviravolta e sintam como seus os sonhos, desejos e recordações do povo da Chapada Diamantina. 

Trata-se dum romance honesto, com compromisso social, que imprime, por meio da poética lírica, a sentimentalidade e experiências daqueles que vivem nos rincões mais profundos do país e, ao mesmo tempo, tão vizinhos para quem quiser, de fato, enxergar. 

Por isso o autor afirma que o livro é uma “colcha de retalhos, que tece uma história que nos foi negada pela historiografia oficial.”

Itamar, que também é analista agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) – especificamente na área de regularização fundiária de territórios quilombolas – bebe dessa experiência prática de aproximação com os camponeses, sobretudo maranhenses, e constrói a realização de sua obra. 

Disso deriva sua lírica poética de quem tem um conhecimento acerca dos costumes de vidas no campo, sem cair numa visão de certa tendência antropologista e fetichista da realidade camponesa, não tornando exótico as personagens da obra, ao mesmo tempo sem converter a narrativa em uma apreensão idílica daquela realidade. 

Por não ter essa característica, é capaz de expressar as potencialidades e conhecimentos profundos do campesinato quanto a sua própria história e sociabilidade, mesmo com todos os impeditivos sociais, como o analfabetismo, a fome, a violência e as relações de trabalho.

Ele afirma que “nesse percurso pôde ouvir muitos camponeses que diziam que se reconheciam ao ler o seu livro. Eles diziam que nesse Brasil parece que o campo foi sublimado, que não existe mais campo no Brasil, que as pessoas foram pras cidades e que no campo só tem máquina colhendo soja. Isso não é verdade.” 

Bastou que o autor fosse carregado por um espírito de compromisso social e indispensável experiência prática para que chegasse, no que tange sua avaliação sobre a questão agrária no país, ao mesmo diagnóstico feito pelos comunistas Jorge Amado e Graciliano Ramos em suas respectivas épocas. 

Isso se realiza, influentemente, pela forma como apreendemos os fenômenos, os nossos pensamentos serem também o reflexo de um mundo material em que vivemos, ou que escolhemos investigar.

O compromisso passa, em parte, pela sensibilização artística frente a uma realidade, que é causa de sua reflexão e interação. Como disse o próprio Itamar: “Eu como autor, escrevo sobre aquilo que me incomoda. Dedico minhas narrativas sobre aquilo que me incomoda e de alguma forma estamos apresentando um retrato do nosso tempo, as questões que são importantes e relevantes do nosso tempo.” 

O fato do livro não exprimir o tempo em que está sendo descrito, simboliza o fator atemporal da realidade camponesa brasileira e a concentração da propriedade latifundiária, que nunca foi resolvida, pois não houve, ainda, uma revolução democrática que desse cabo do latifúndio e libertasse as forças produtivas do país. Este fato representa, no fundamental, a reincidência do problema da terra como a de um passado que não se concluiu. 

A bem verdade, as obras literárias da atualidade que conseguiram se tornar verdadeiros clássicos contemporâneos continuam a trazer a temática da questão agrária e da luta camponesa; a exemplo da obra Ponciá Vicêncio, da escritora Conceição Evaristo, que conta a vida de Ponciá Vicêncio e sua família, uma família de camponeses que trabalham nas terras de um fazendeiro de sobrenome Vicêncio. Seus avós tinham sido escravos nessa fazenda. O livro também é uma denúncia às injustiças do monopólio feudal da terra contra o povo brasileiro.

É curioso esse movimento que potencializa as chances de obras literárias que resgatam o “Brasil profundo” se tornarem clássicos contemporâneos. Em parte, uma explicação pode ser a simpatia e identificação subjetivada do povo brasileiro com tal temática; porém, ele aponta para além disso.

Clássicos contemporâneos como Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, representam uma fonte de iluminação ao colocar-se, com fatos e impressões, na contramão de toda sorte de prestidigitação intelectual disseminada pelo oportunismo e revisionismo, que tem infestado a academia e a sociedade brasileira, sobre a suposta inexistência de campesinato no Brasil ou de “desenvolvimento pleno do capitalismo”; eis aqui, somente por sua tendência realista, assumindo a mesma matéria-prima da “velha” geração de 30: o latifúndio e a resistência do camponês pobre como aspecto principal da obra. 

Ao ser questionado pelo jornalista Breno Altman, se a narrativa do livro surgiu de histórias reais, Itamar responde: “ela (a narrativa) ganhou profundidade, ganhou densidade, por conta da minha experiência com os trabalhadores rurais, essa relação de servidão no campo, eu não tinha pensado originalmente, foi algo que eu descobri trabalhando no campo.” 

As relações de tipo semifeudal são descritas no livro: a eterna situação de economia arruinada, tendo a meia, a terça e o regime de barracão como relações de produção subjacentes; o poder político dos latifundiários; o não assalariamento capitalista, com pagamento “por sorte” e o já citado foro; a grilagem de terras públicas e devolutas; a submissão da produção sobre a terra do latifundiário; a coerção extra-econômica etc.; a exemplo das seguintes passagens:

“Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.22).

“Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhe eram dadas” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.41). 

Os donos da terra eram conhecidos desde a lei de terras do Império, não havia o que contestar. Quem chegasse era forasteiro, poderia ocupar, plantar e fazer da terra sua morada. Poderia cercar seu quintal e fazer roça na várzea nas horas vagas. Poderia comer e viver da terra, mas deveria obediência e gratidão aos senhores” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.183).

“Que para aposentar era uma humilhação, pedir documento de imposto ou da terra para os donos da fazenda. Os homens se “amarravam” para entregar alguma coisa, além de explorar o trabalho sem pagamento dos que iam se aposentar. Às vezes chegava o dia de ir para a Previdência e o povo não havia conseguido reunir os documentos de que precisava. Além da dívida de trabalho para com os senhores da fazenda, não havia nada para deixar para os filhos e netos” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.186).

Os dias de trabalho eram pagos com a retirada de mercadorias e, ao sair de lá, os moradores terminavam deixando uma dívida maior do que o pagamento que tinham a receber. Nesse campo desigual, Severo levantou sua voz contra as determinações com que não concordávamos. Virou um desafeto declarado do fazendeiro. Fez discursos sobre os direitos que tínhamos. Que nossos antepassados migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve estaríamos sem ter onde morar” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.197).

“Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.220).

Descrições que não são estranhas para quem conheça a fundo ou tenha interagido com um único camponês da região a que Itamar se refere. Quanta honestidade! Quão necessária!

Um romance realista não trata somente de trazer retratos estáticos do real, mas de desentranhar sua dinâmica. Pode contextualizar teorias, pois seu processo de produção igualmente subjaz em si experiências, pesquisas e sensibilização através da empiria. 

A obra, sendo parte de um todo histórico, carrega ligeiramente debates e posições que expressam a negação ou a afirmação de uma tendência histórica em seu tempo. 

Nesse caso, a obra de Itamar é categórica: não só existe hoje um forte campesinato, com sua tradição, cultura e necessidades, como também a emergência da resistência camponesa deve ser afirmada no processo de “contar sua própria história” do povo brasileiro. 

A realidade que as “leituras oficiais” escamoteiam estão guardadas, para quem tiver honestidade e disposição, nos corações de tantas Belonísias e Bibianas que existem hoje em todo o Brasil; e estas estarão prontas para demonstrar não somente as suas tradições e sentimentos, mas como vivem e em que sonham.

A história do Brasil é crivada pela história de “Torto Arado”. Não há um sem outro. É um legado da violência do passado nunca vencida, que impossibilita até o dias de hoje o desenvolvimento real e autônomo do nosso país. Problema atemporal, como o tempo histórico expresso no livro. 

A realidade é complexa e cheia de dinâmica, vida e contradição. Torto Arado, como expressão literária da sensibilidade e da prática social de Itamar, pode ser lido, por sua tendência ao realismo, como reflexo de um fragmento dela.

Por fim, em meio a este secular e irascível ataque sobre as históricas massas camponesas, que, bravias e inabaláveis, pelejam e batalham em nosso país, faço minhas as palavras de Bibiana: “Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas.” Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos(…) “Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias(…)” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.187).


Referências das entrevistas:

Torto Arado | Itamar Vieira Junior

O Brasil de TORTO ARADO | Entrelinhas

O que aprendemos com “Torto Arado?” | Leandro Karnal e Itamar Vieira Junior

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