Zélia atingida, Aristeu e mulheres indignadas. Foto: Fundamentos 1960.
“Serena com traços brasileiros que sabe ver a vida, Zélia queria paz para o mundo e lutava para que o povo brasileiro tivesse mais conforto, mais comida, as crianças mais escolas, seu nome é hoje uma bandeira heroica que outras mulheres deverão defender, proteger e levar para a frente, até a vitória.”
Jornal Momento Feminino, 13/12/1949
Zélia Magalhães nasceu em Ubá (Minas Gerais) em 9 de janeiro de 1923 e era a filha mais velha de uma família operária. Sua família mudou-se para o Rio um pouco mais tarde para que Zélia pudesse iniciar seus estudos. Seus pais penavam trabalhando sem conseguir ganhar o suficiente para alimentar a Zélia e a seu irmão. A menina era raquítica, tinha a saúde frágil. Mas cresceu e se tornou uma jovem católica devota e frequentadora da igreja.
Isto não duraria muito tempo. Zélia Magalhães logo se engajou na luta contra as injustiças sociais as quais conhecia muito bem desde o nascimento. Zélia aproximou-se da luta popular e tornou-se militante comunista. Casou-se com o operário Aristeu Magalhães, que era responsável pelos cuidados da oficina do jornal Tribuna Popular do Partido Comunista do Brasil (P.C.B.). Naqueles tempos duros, Zélia viu o esforço daqueles homens e mulheres para resistir e manter viva a chama da luta pelo Comunismo nos subterrâneos da liberdade.
Nestes anos mais duros de clandestinidade do Estado Novo acompanhou relatos de torturas que sofriam os presos políticos, viu seu então noivo Aristeu ser preso e tomou parte na Campanha de Solidariedade aos presos políticos do Estado Novo. Auxiliava as famílias dos presos, brigava nos tribunais, nas ruas, para conseguir a liberação daqueles homens da prisão injusta a que estavam submetidos. Seu casamento com Aristeu se deu quando este ainda estava preso, condenado pela Lei de Segurança Nacional.
Quando Aristeu foi solto continuaram a militância. Agora na legalidade, o Partido Comunista organizava comícios abertos, protestos. Zélia engravidou, mas não deixou de militar. Participou junto a Aristeu de uma manifestação convocada pela Liga Brasileira de Defesa das Liberdades Democráticas na Esplanada do Castelo (centro do Rio de Janeiro) em homenagem ao 60º aniversário da República em protesto contra o velho Estado e sua crescente repressão contra os comunistas (mesmo que estes gozassem de “legalidade”). Ali também se arrecadavam fundos para a imprensa popular que havia sido prejudicada pelas últimas investidas do recém empossado presidente da República Eurico Gaspar Dutra, que mandara fechar a Tribuna Popular e proibir greves e comícios.
A polícia foi logo mobilizada para encerrar o comício. Agentes da reação cercaram a Esplanada do Castelo, e começaram a reprimir a manifestação. Eles tinham como objetivo atingir o comunista Pedro Pomar que estava no ato. Zélia e Aristeu já haviam cumprido a ordem de dispersar dada pelo presidente da Liga Brasileira em Defesa das Liberdades Democráticas, o coronel Alencastro Guimarães, mas a polícia os perseguiu. Ao alcançar o bonde em que o casal de comunistas haviam pegado, os investigadores os arrancaram de dentro e começaram a espancá-los em plena rua. Aristeu tentou salvar a esposa e se desvencilhar dos policiais quando um sujeito conhecido pelo vulgo de “Procopinho” (uma espécie de bate-pau da polícia que os acompanhava e andava armado mesmo sem ser formalmente um policial ou investigador) apontou sua arma para Aristeu, que gritou:
– Atire, covarde!
Zélia se jogou em sua frente, de costas para os policiais, “Procopinho” disparou e Zélia caiu no chão ferida. Os policiais ainda a pisotearam e espancaram antes de levá-la ao hospital. Já estava morta. Aristeu foi espancado novamente e preso por um dia inteiro na policia central.
Aquela morte chocou a todos, especialmente membros do Partido e democratas no geral, uma comissão de mulheres foi à Câmara dos Deputados para exigir punição para os assassinos de Zélia Magalhães, mulher grávida de apenas 26 anos. Seu enterro foi um grande protesto contra o regime e a polícia que haviam tirado a vida de uma mulher comunista.
O enterro de Zélia. Gravura de Renina Kratz. Foto: Momento Feminino 31/12/1949
Pedro Pomar que desde o início acompanhou a comissão fez um discurso indignado naquele dia:
“Responsabilizo, neste instante, o senhor Eurico Dutra e o senhor ministro da Justiça por tais crimes. Se os sicários do senhor Eurico Dutra e do ministro da Justiça ontem quiseram atingir-me pelos seus beleguins, tenho a dizer à casa [a Câmara dos Deputados] a minha convicção de que a democracia, a liberdade para o nosso povo só pode ser conquistada com sacrifício. (…) A esposa, tentando salvá-lo, agarrou-se a ele, sendo assassinada brutalmente, com um tiro na nuca que saiu pela boca. Antes de morrer, foi pisoteada pelos policiais. (…) Teremos punição para este crime? É o que indago nesta casa, é o que a opinião pública deseja saber. Será este crime acobertado, quando foi praticado diante de tantas testemunhas, numa praça pública, dentro de um bonde cheio de passageiros? Esse banditismo poderá ser bendito pelo senhor cardeal da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, por sua eminência Jaime Câmara? Porque um cidadão é comunista todos os senhores da reação acham-se no direito de matá-lo?”, denunciou Pedro Pomar.
No dia seguinte já haviam mais protestos contra a selvageria policial. Pomar leu o testemunho de Aristeu na tribuna, leu as notas emitidas por diversas instituições contra o assassinado brutal da jovem Zélia, e afirmou:
“Só estes corações já empedernidos pelo crime, só estes homens já sem sentimento é que, diante da opinião pública estarrecida por tais fatos, terão coragem de verter a voz para justificar o assassínio da jovem senhora porque era esposa de um comunista, ou ela mesma comunista.”
Zélia é um mártir do povo brasileiro, uma heroína que foi covardemente assassinada pela reação. Lutou pela causa da revolução no Brasil, e embora pouco tenhamos registrado sobre os pormenores de sua vida, sabemos que sua história é a história de milhares de homens e mulheres que nesses últimos 100 anos vem dado seu sangue e suor para lutar pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo.