Invasão do território, destruição de propriedades, espancamentos e ameaças. Esses são alguns dos ataques cometidos por pistoleiros contra camponeses do Acampamento Marilene Dantas, erguido há 10 anos nas margens da BR-101 da Zona da Mata paraibana, uma região de fronteira entre Pernambuco (PE) e Paraíba (PB), marcada historicamente por conflitos agrários.
Uma reportagem do jornal A Nova Democracia viajou até o acampamento para investigar a situação. O acampamento foi erguido em 2014 quando os camponeses decidiram tomar parte das terras da Usina Maravilha dois anos depois que a empresa entrou em recuperação judicial por conta de uma dívida milionária em direitos trabalhistas.
“A gente já vivia aqui há muito tempo. A Usina Maravilha pediu que a gente fosse pra outro lado, que iria fazer aqui uma implantação de fábricas. Fizemos um acordo e cumprimos com a exigência da Usina. A maioria dos camponeses foram para o Acampamento Wanderley Caixe, mas continuaram algumas famílias que não queriam sair daqui. Passaram-se dez anos e a Usina Maravilha não cumpriu com o acordo, então nos organizamos para retornar e ocupar o restante da área que já estava ocupada pelas famílias que permaneceram. Voltamos pra cá, fizemos o loteamento e hoje tem cinquenta e sete famílias aqui no Marilene Dantas” afirmou.
Dez anos depois, a Usina Maravilha nunca iniciou nenhum projeto na região. Os camponeses, então, se organizaram e retomaram as terras. Muitos dos que foram para o Acampamento Wanderley Caixe decidiram voltar. “Depois do retorno, nós fizemos o loteamento e hoje tem 57 famílias que vivem aqui”, conta a liderança local do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Rosana*.
Ela relata que, depois que os camponeses voltaram, os latifundiários incrementaram as tentativas de intimidação contra os acampados. Para isso, eles contam com apoio das forças policiais, que assinam prontamente boletins de ocorrência contra os camponeses, participam das operações de intimidação e até mesmo coordenam os grupos paramilitares. “O comandante chefe dos capangas é um policial reformado de Pernambuco”, diz Rosana..
Como a região é fronteiriça, os camponeses são alvo das PMs tanto da Paraíba quanto de Pernambuco. “A Usina tem esse poder [de mobilizar policiais]”, diz a liderança. “Ela domina em Pernambuco e na Paraíba, e os policiais dão cobertura à Usina”.
Um caso emblemático dessa relação foi quando, em uma ação orquestrada pelo latifúndio, pistoleiros da Usina aproveitaram um momento em que não havia ninguém nas lonas e derrubaram tudo que tinha pela frente. A prática terrorista de derrubar casas e queimar plantações é usada para o latifúndio para inviabilizar a vida dos camponeses na região e, assim, expulsar as famílias para outro local.
A conversa com Rosana foi interrompida pela entrada de uma viatura no acampamento. Um camponês aproveitou da presença dos policiais para denunciar que tiros estão sendo disparados perto das casas dos acampados diariamente, mas a resposta foi seca: sem apresentar soluções, os PMs sugeriram a incriminação dos próprios camponeses ao questionar onde estavam os “outros membros do MST” do acampamento no momento dos tiros.
Questionados pela reportagem sobre a recorrência dessas rondas, os camponeses afirmaram que o acampamento faz parte de um programa de “proteção” da PM, mas que é ineficaz.
Realidade generalizada
O Acampamento Marilene Dantas não é o único alvo do latifúndio na região. No final de 2023, pistoleiros da Usina Maravilha e PMs de Pernambuco derrubaram quatro casas do Acampamento Nova Esperança, na Paraíba, também organizado pelo MST.
A Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade descreveu o ocorrido como abuso de poder e destruição de propriedade privada. Já o procurador do Ministério Público Federal da Paraíba (MPF/PB) destacou, em entrevista ao portal Brasil de Fato, a atuação da PM de Pernambuco fora do estado. Para ele, é uma “atuação que se assemelha quase a uma milícia privada”.
Bases pistoleiras em acampamento
A liberdade para os pistoleiros é tanta que, em junho de 2023, a Usina Maravilha chegou a montar uma base para os mercenários dentro da área produtiva do acampamento. Os pistoleiros passeiam livremente pela área, uniformizados com blusas cáqui, botas e até mesmo coletes à prova de bala. De acordo com as denúncias, a instalação dos sicários inviabilizou a produção em uma área de cerca de 15 lotes.
A base hoje em dia conta com um contêiner adaptado como base, cerca de três seguranças e três motos para transporte na terra, conforme averiguou a reportagem, em companhia dos camponeses.
“Um deles é reformado pela PM, que é quem coordena os capangas. Há dois anos atrás, tentamos plantar nas nossas terras e eles tentaram proibir nossas plantações… abrimos um processo, foi pro juiz, o juiz autorizou a gente plantar nas terras e mesmo assim somos proibidos. Quando a gente chega com o trator para cortar a terra, chega os capangas da Usina armado e nos ameaçando e dizendo que a gente não pode plantar”, explica Rosana.
Em um vídeo gravado pelos camponeses, os pistoleiros, equipados e com pedaços de pau, impedem a produção dos agricultores.
Os camponeses denunciam que, em outras ocasiões, companheiros de luta foram espancados pelos mesmos cassetetes improvisados. “Um dia estava eu e outro companheiro e eles [os capangas] foram proibir a gente de cortar a terra. Chegaram uns dez capangas, tudo armado com pau, com arma, e aí começaram a machucar o companheiro da gente”, relata Jorge*, outro camponês do acampamento.
Jorge* tentou resgatar o companheiro, mas foi agredido pelos seguranças. “Vieram me espancando, quebraram meus dedos, bateram nos meus peitos, nas minhas costas, por todo o canto”, diz. “Se não fosse o pessoal que chegou, eles teriam me matado”.
Hoje em dia, seis meses depois do ataque, Jorge ainda não consegue trabalhar como antes. As sequelas físicas que ficaram devido às lesões nas mãos e a fratura na clavícula, o trauma psicológico causado pelos seguranças da Usina lhe causaram danos irreparáveis. “Minha vida está um nada comparado ao que era antes. Eu conseguia trabalhar, ajeitar minhas coisas, hoje não posso mais, não consigo mais dar de comer à minha família”, denuncia ele.
São sequelas de uma guerra não declarada no campo brasileiro, em que pistoleiros e latifundiários perseguem sistematicamente os camponeses como forma de impor um freio na luta pela terra. Para Jorge, os espancamentos não são o suficiente para fazê-lo desistir da luta. João*, outro camponês, ressalta que “é preciso lutar pela terra para vivermos. Se for esperar pelo grande, a gente morre de fome”.
Acidente forjado
Os camponeses chegam a relatar o caso em que um tratorista do MST foi morto em um violento e suspeito acidente. Seu Aguinaldo, como era conhecido Aguinaldo Bernardo Cavalcanti, de 64 anos, estava indo em direção ao acampamento quando a cabina do trator foi atingida em cheio por um caminhão.
O caminhão foi imediatamente cercado por carros da polícia após o acidente. O motorista foi arrancado pelos policiais e detido, mas os camponeses encontraram documentos de um PM dentro do veículo. O caminhão, de reboque, também estava carregando uma moto da PM.
Ativista há dez anos, Aguinaldo prometeu um dia antes de sua morte que ia resolver a questão da proibição da produção no acampamento, e que iria dividir os lotes para os camponeses. “Ele era constantemente ameaçado, chegou a ser espancado pelos capangas da Usina”, relata Rosana. Ela conta também que foi encontrado um vídeo de Aguinaldo gravado por serviçais da Usina, o que levantou suspeitas sobre algo planejado.
Usinas se unem contra camponeses
Seguindo a estrada da primeira base pistoleira no Acampamento Marilene Dantas, o caminho leva a uma segunda base. Mais preparada, essa unidade conta com uma cerca, guarita, seguranças e câmeras. Uma placa identifica o dono da instalação: uma usina de placas solares.
“O pessoal deixou de produzir lá em cima porque toda hora chegavam três homens armados de moto e ficavam ameaçando os camponeses”, diz uma liderança. “Organizamos todo mundo para ficar plantando aqui na parte de baixo, mas eles agora estão descendo e dando tiro”.
Além das intimidações pelos seguranças, as placas solares também devastam as lavouras dos camponeses “As terras lá de cima estão todas contaminadas com as placas solares, porque a quentura da placa é tão grande que mata tudo, toda plantação. Aqui no sertão da Paraíba, em Aparecida, já temos casos de povos quilombolas que foram cercados por essas usinas de placas solares e eles não conseguem produzir mais por causa da quentura das placas. Do jeito que eu vi em Aparecida, estou vendo aqui” disse uma camponesa.
É um caso em que a transição energética se alia aos interesses dos latifundiários e tem contribuído objetivamente no acirramento dos conflitos no campo. Imagens de satélite mostram a proximidade das placas solares e do acampamento Marilene Dantas, bem na fronteira entre PE e PB. As usinas pertencem à Atiaia Energias S/A e receberam financiamento do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste.
A paralisação da regularização fundiária na Zona da Mata
O aumento da violência contra os camponeses é estimulado pela paralisação total da reforma agrária no País.
Informações do Incra da Paraíba apontam que os latifúndios improdutivos reconhecidos totalizam cerca de cinco mil hectares em todo o Estado. Os três acampamentos da região (Marilene Dantas, Wanderley Caixe e Nova Esperança) fazem parte do mesmo processo do Incra e aguardam há anos a regularização fundiária.
A demora, que continua mesmo no elevado grau de violência contra os camponeses, faz com o Estado tenha responsabilidade direta pelo incremento da agressão latifundiária aos camponeses. Ao menos quatro camponeses foram assassinados nos últimos cinco anos em acampamentos da Zona da Mata paraibana, dois destes eram camponeses do Acampamento Wanderley Caixe. Outras dezenas foram espancadas e torturadas.
A violência do latifúndio não tem sido capaz de frear a luta pela terra
As diversas tentativas do latifúndio em frear a luta pela terra não tem sido capaz de tirar dos camponeses e camponesas a vontade de tomar para si aquilo que lhe pertence. As diversas tentativas do latifúndio em frear a luta pela terra nos últimos anos não tem se mostrado eficaz.
Nos últimos anos o MST organizou milhares de famílias camponesas em todo o Brasil durante o Abril Vermelho, retomando a agenda de ocupações de terra e pressionando o velho Estado a agilizar processos de regularização fundiária.
Já a luta combativa da Liga dos Camponeses Pobres tem hasteado a mais alta bandeira pela Revolução Agrária no país, demonstrando em uma luta combativa que os camponeses e camponesas unidos contra o latifúndio elevam o nível da luta pela terra no país, como nos exemplos das lutas combativas de Rondônia, das retomadas de terra do Acampamento Mãe Bernadete na Bahia e a luta dos posseiros do engenho de Barro Branco contra os latifundiários no município de Jaqueira (PE).
*Nomes fictícios para preservar a identidade