Atingida em cheio pela megaquebra que se abateu sobre as economias imperialistas no fim de 2008, a oligarquia financeira internacional, para reequilibrar-se, está recorrendo a uma antiga estratégia: o incremento da exploração sobre as semicolônias. As diretrizes para sua execução no Brasil estão sendo traçadas no âmbito do Fórum Nacional (FN) e o Plano Diretor do Mercado de Capitais (PDMC), os dois grandes mecanismos de ação política dos monopólios transnacionais e do capitalismo burocrático em nosso país.
José Serra e outros integrantes do Forum Nacional se regozijam
com a presença do embaixador ianque Clifford Sobel no encontro
Entre 3 e 5 de setembro do ano passado, o FN realizou um encontro de emergência para tratar da crise. Intitulado "Como Ser o Melhor dos BRICs — Condições Fundamentais: Estado Moderno (O Melhor dos Emergentes), Sistema Político Moderno (Co-Responsável pelo Desenvolvimento) e Ausência de Vulnerabilidade Externa", o evento destinou-se ao desenho da estratégia política e econômica para os próximos anos. Nos dias 3 e 4 de dezembro — quando as quedas das bolsas de valores atingiam seu ponto crítico — realizou-se um outro encontro extraordinário, intitulado "Sob o Domínio da Insegurança (Crise Global)".
Os encontros do FN foram — como sempre — financiados por uma combinação de monopólios, entidades patronais e dinheiro público. Vale, Telefônica, Odebrecht, Gerdau, Embraer, Bradesco, Light, Andrade Gutierrez, Ultra e CCR constam da lista de patrocinadores obtida no sítio do Fórum, assim como Fiesp, Firjan e CNI e bem como o Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais (Ibmec) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Sem disfarçar que o Estado é o comitê para a defesa de seus interesses prescrevem medidas a serem adotadas pelo seu gerenciamento e fazem uso do dinheiro público para organizar a instância de prescrição: da lista de patrocinadores constam Petrobrás, Eletrobrás, Finep, Banco do Brasil, IPEA, Banco do Nordeste, Correios, Eletrobrás, Caixa Econômica, Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e BNDES — que cedeu o espaço de sua sede. Isso é o capitalismo burocrático, ou seja, é o capitalismo que o imperialismo impulsiona num país atrasado; o tipo de capitalismo, a forma especial de capitalismo que impõe um país imperialista a um país atrasado, para que seja semifeudal e semicolonial.
O que o mestre mandar
Se a configuração de poder que o Fórum Nacional expressa e atende é facilmente identificável nessa lista de financiadores, o teor das medidas que esses interesses impõem e os nomes dos agentes encarregados de colocá-las em prática estão expostos, respectivamente, no conteúdo do que se disse nos dois encontros e na relação dos conferencistas.
Não é casual, por exemplo, a composição do primeiro painel do encontro de setembro. Dele, faziam parte o embaixador ianque em Brasília, Clifford Sobel, que fez um "chamado à parceria global"; o governador de São Paulo, José Serra, que falou sobre "desenvolvimento do Estado brasileiro"; e o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, cuja intervenção teve o tema "oportunidades, a despeito da crise". Na realidade, apenas Sobel estava ali para falar.
Aos outros dois, cabia, antes de tudo, ouvi-lo e atendê-lo. É esta a única condição para os gerentes semicoloniais. Não é demais lembrar que quando AND bate na tecla de que o Estado brasileiro é burguês-latifundiário serviçal do imperialismo é para evidenciar a expressão política das relações econômicas desenvolvidas dentro do país.
Mais relevante que o conteúdo da intervenção de Serra, porém, é a posição em que ele foi colocado no evento. Essa posição mostra que o governador paulista é — ao menos por hora — o candidato favorito do sistema de poder que o FN representa ao cargo de gerente semicolonial do Brasil em 2010.
Já as palavras de Coutinho revestem-se de alguma importância, na medida em que, como presidente do BNDES, administra um orçamento bilionário e vital para os rumos do capitalismo burocrático no Brasil. Nessa posição estratégica, vem esmerando-se em cumprir o que disse na reunião do FN: que a política do banco não mudaria e que o fluxo de dinheiro para os monopólios transnacionais estava assegurado. Desde então, Coutinho vem bloqueando todas as tentativas de revisão dessa política ou imposição de condições — por tímidas que sejam — à continuidade da sangria. Foi ele quem barrou, por exemplo, a proposta de condicionar os empréstimos do BNDES à preservação de empregos, formulada pelas centrais sindicais governistas e pelo ministro do Trabalho, Carlos Lupi.
O Estado deles
Não que esse tipo de medida pudesse alterar as condições de vida da população trabalhadora ou a correlação de poder que controla o Estado brasileiro. Acontece, porém, que as diretrizes impostas pelo imperialismo e acatadas pelas burguesias burocrática e compradora (esta representada principalmente pelos setores comercial e financeiro) vão no sentido oposto: o de acentuar o ritmo da exploração sobre o Brasil, de modo a compensar as perdas sofridas na metrópole.
Isto fica explícito nas intervenções de dois tecnocratas de confiança do FN, João Geraldo Piquet Carneiro (sócio do escritório Veirano Advogados, que presta assessoria a instituições financeiras e monopólios transnacionais) e Affonso Celso Pastore (ex-presidente do Banco Central ligado a Delfim Netto e atualmente conselheiro do grupo Gerdau).
No quarto painel da reunião de setembro, intitulado "Gestão Moderna do Estado", Piquet Carneiro lançou o que chama de "Bases de uma reforma administrativa de emergência".
A primeira dessas bases é o fim do chamado regime jurídico único (RJU), no qual estão contidas as garantias — como concurso e estabilidade — do funcionalismo público federal. Para Piquet Carneiro, o RJU é "totalmente incompatível com o grau de diferenciação e especialização que se demanda de uma administração pública moderna", motivo pelo qual sua "flexibilização" é "providência imprescindível".
A segunda é o afrouxamento do já não muito efetivo controle burocrático sobre as relações entre a administração estatal e os monopólios que se dedicam a saqueá-la. O dirigente do FN prega o fim da fiscalização prévia à liberação de pagamentos pelo Estado (que considera "dispensável") e da exigência de regularidade tributária hoje feita a empresas que pretendam participar de licitações.
A terceira é o aprofundamento do controle sobre o Estado e seus gestores. A pretexto do "esgotamento do modelo de partilha de cargos como instrumento de manutenção da base de apoio parlamentar", Piquet Carneiro defende que se faça em toda a administração federal o que, como ele próprio diz, ocorre desde 1985 com as "áreas governamentais ligadas à formulação e execução da política econômica" (Banco Central, ministérios da Fazenda e Planejamento e Secretaria do Tesouro Nacional): sua entrega a tecnocratas. Para assegurar o total controle das nomeações em âmbito federal, ele propõe que "a Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão possa fazer um exame prévio de adequação de candidatos".
Recessão na veia
A política macroeconômica da qual essa proposta de gestão do Estado é complemento foi, por sua vez, enunciada por Pastore e sua assessora Maria Cristina Pinotti no evento de dezembro. O que eles propõem num documento intitulado "A Crise de 2008 e o Brasil" é lançar o país numa recessão sem precedentes.
"Para que haja o ajuste necessário nas contas correntes" — escrevem — "é preciso que ocorra uma queda da demanda total doméstica em relação ao PIB". Isto significa que o crescimento do consumo interno — já hoje muito mais baixo do que seria necessário para assegurar condições dignas de vida à população trabalhadora — deve ser reduzido a níveis inferiores aos do conjunto da economia. Além de significar miséria e desemprego, isto significa também aumento da concentração de renda, já que quando a produção cresce mais que o consumo interno é porque essa diferença foi apropriada pelos mais ricos, que estocam ou esterilizam capital em vez de consumir.
A recessão defendida por Pastore e Pinotti tem uma justificativa antes política do que econômica: trata-se de preservar, a qualquer custo, a hegemonia conquistada pelo capital financeiro nas décadas de 1990 e 2000. A equação é simples: como o mercado de capitais perdeu sua capacidade de financiar investimentos, é preciso impedir que o Estado o faça, pois, do contrário, a posição dos bancos e corretoras como supridores de capital para o restante das empresas e o consequente poder que isso lhes dá sobre elas estariam ameaçados. Nas palavras deles, "se o governo decidir-se pela adoção de políticas contra-cíclicas, estará reduzindo o espaço para os investimentos privados".
Daí porque, do ponto de vista do FN, "a reação correta do governo não é praticando políticas contra-cíclicas, e sim cortando os seus gastos", motivo pelo qual ele deve "limitar-se ao que vem fazendo até aqui. Cuidar do suprimento de linhas de exportação e da normalização do crédito bancário, mas tentando evitar navegar contra a maré".
Petróleo e Amazônia
O programa traçado nos dois encontros emergenciais do FN não implica, contudo, a paralisação total dos investimentos. Um dos pontos principais da reunião de setembro foi a apresentação de projetos de entrega da Amazônia a monopólios da agroindústria, da mineração e da chamada "bioindústria".
Esse incremento do saque dos recursos naturais da região (inclusive seu patrimônio genético) foi defendido pelos dois principais dirigentes do Fórum, o ex-ministro do Planejamento (governos Médici e Geisel) João Paulo dos Reis Velloso e seu ex-secretário-executivo Roberto Cavalcanti de Albuquerque.
Reis Velloso pregou, ainda, a continuidade dos leilões de campos de petróleo e a entrega das reservas submarinas situadas na camada pré-sal aos monopólios anglo-ianques. "Não mudar as regras do jogo, não romper contratos, não mexer na legislação. Desapropriação não" — foram suas palavras, contidas na apresentação "Como ser o melhor dos BRICs".
O que vem por aí
Plano Diretor do Mercado de Capitais 2008 detalha medidas destinadas a concretizar diretrizes traçadas pelo Fórum Nacional e passos para sua implantação.
Não foi apenas o Fórum Nacional que, face à crise, reviu, no fim de 2008, sua estratégia. O Comitê Executivo do Plano Diretor do Mercado de Capitais (PDMC) apresentou, em 28 de novembro daquele ano, uma nova versão de seu programa, reelaborada em função das novas condições em que passa a atuar.
O PDMC parte do mesmo pressuposto essencial do FN (o de que "o sistema financeiro privado, bancos, mercado e capitais, deve ocupar o papel central na mobilização e alocação de recursos") e atua como braço executor de suas diretrizes mediante um intenso trabalho de lobby. Esse trabalho se dá em nível parlamentar, judicial e junto ao segundo escalão do ministério da Fazenda — com o qual possui, desde 2003, um canal permanente de "cooperação e diálogo" — isto é, um grupo de trabalho destinado a atender suas reivindicações — com resultados que seus dirigentes avaliam no documento de novembro como "muito positivos".
No documento em questão, definem-se como prioritárias para 2009 cinco medidas, todas situadas dentro do programa de privilégios ao capital monopolista e confisco da renda popular enunciado por Coutinho e Pastore. Essa lista é reproduzida exatamente como consta do PDMC 2008:
1Reforma tributária — É nosso desejo que a Reforma seja aprovada ainda em 2008, recomendando-se alguns aperfeiçoamentos do projeto que irá ao Plenário.
2Novo modelo previdenciário para novos trabalhadores
3 Desconsideração da personalidade jurídica — O Projeto de Lei 3401 que disciplina o procedimento de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica encontra-se de acordo com as recomendações feitas pelo GT do Plano Diretor que estudou o assunto.
4Uso de instrumentos do mercado de capitais para o desenvolvimento do mercado imobiliário — Além da contribuição dada pelo mercado para a abertura de mais de 20 empresas do setor temos um Grupo de Trabalhadores analisando outras alternativas de direcionamento de recursos via Fundos Imobiliários, Fundos de Direitos Creditórios, Certificados de Recebíveis Imobiliários, CEPACs – Certificados de Potencial Adicional de Construção (…).
5PREVIC — As entidades do Plano Diretor do Mercado de Capitais apóiam a criação da PREVIC desde o ano passado. A reapresentação da proposta ao Congresso através do PL3962/08 que se encontra na Comissão de Seguridade Social da Câmara espera-se que seja aprovada ate 2009.
Dessas cinco medidas, a que atinge mais drasticamente a população trabalhadora é a reforma privatizante da Previdência Social a que o PDMC se refere pelo eufemismo de "novo modelo".
A ênfase conferida, no plano de ação para 2008, à rapina de recursos pertencentes aos trabalhadores (contribuição previdenciária e FGTS) é consequência direta da falta de liquidez que atinge o sistema financeiro desde a eclosão da crise atual. Essa antiga aspiração dos bancos e corretoras — já presente na versão original do PDMC, datada de 2002 — torna-se, agora, uma necessidade para eles. Não é por acaso que o PDMC 2008 define como medidas necessárias "envidar esforços de convencimento da sociedade civil e da classe política quanto à urgência da aprovação do Novo Modelo Previdenciário" e "apoiar a instalação dos fundos de pensão para servidores públicos dos três níveis de Governo", bem como "flexibilizar as regras do FGTS" de forma a que ele possa ser usado na compra de ações.