Breve história do agronejo: a completa pulverização da música caipira

O agronejo talvez seja a última etapa da decadência da música financiada pelo velho Estado latifundiário brasileiro. Suas relações com a música caipira esgotaram-se por completo.

Breve história do agronejo: a completa pulverização da música caipira

O agronejo talvez seja a última etapa da decadência da música financiada pelo velho Estado latifundiário brasileiro. Suas relações com a música caipira esgotaram-se por completo.
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Há um fenômeno recorrente na história da música em que ritmos e estilos surgidos dentro do povo são sequestrados e gentrificados pelas elites de forma a neutralizar os ímpetos democráticos — quando não revolucionários — nas vozes das massas. José Ramos Tinhorão exemplifica isso bem na relação entre a bossa nova e o samba em História Social da Música Popular Brasileira. 

Podemos observar o mesmo fenômeno na difusão do Rock’n Roll, surgido nas periferias negras como uma aceleração elétrica do blues, protagonizado por astros como Chuck Berry, e depois convertido em mera rebelião juvenil em defesa do nascente “mercado da adolescência” a partir, principalmente, de Elvis. Houve também várias tentativas de embranquecer e neutralizar o rap americano, primeiro insuflando artistas como Vanilla Ice em pífia oposição a Tupac e, depois, com mais sucesso, inseminando a ideologia do consumo e da ostentação nos próprios artistas negros, muito dos quais desviaram o conteúdo de sua música para uma exaltação do luxo, o qual estaria “perdoado, permitido e merecido” devido a suas origens pobres. No Brasil, talvez o maior exemplo dessa cooptação da cultura do povo para transformação em “cultura de massas” (no sentido de que é produzido em massa) seja a música sertaneja. 

Com a centralidade da viola, a mesma usada desde o século XVI em Portugal, e em intercâmbio com os primeiros estilos populares brasileiros (cateretê, fados, modinhas, etc), a música sertaneja entra no mercado fonográfico do século XX com grandes impulsos democráticos. Na verdade, como coloca Tinhorão, a música sertaneja é uma síntese grosseira feita pela indústria fonográfica para ofertar em um rótulo unificado uma grande variedade de estilos que mantinham semelhanças. A primeira forma de “comercialização” do caipira, por assim dizer, foi inclusive em uma caricatura humorística nos teatros, precursora do Jeca Tatu.

De qualquer maneira, na década de 50, a presença de músicos de origem rural nas periferias das cidades, para trabalharem como mão de obra não especializada, propiciou uma série de gravações que retratavam os reais dilemas e sonhos do povo. Vejamos em Herói sem Medalha (Tião Carreiro e Pardinho) a epopeia do célebre criador de gado que é obrigado a vender sua boiada e, ao mudar-se para a cidade para trabalhar em um frigorífico, reencontra, com a tarefa de sangrá-lo, seu boi favorito. Há uma grande profusão de músicas que evocam uma vida campesina idealizada e perdida como Minha terra, minha gente (Tonico e Tinoco) e a célebre Saudades da minha terra, (composta por Goiá e gravada por Belmonte e Amaraí). Por último, destaca-se a verve mais revolucionária, pois liga-se diretamente à questão da terra, expressa, por exemplo, em Ladrão de Terra (Jacó e Jacozinho) e de maneira mais bem humorada em O Mineiro e o Italiano (Tião Carreiro e Pardinho).

Entendemos aqui “valores democráticos” não como necessariamente posições progressistas. Na verdade, a enorme maioria desses músicos possuía uma consciência social bastante superficial, mas que correspondia a anseios e problemas legítimos e que encontravam respostas dentro das possibilidades oferecidas em determinados níveis de organização das massas. Música popular significa a música que pinta o modo como o povo se defronta com questões nodais de suas vidas: a sobrevivência, os sentimentos, as mudanças sociais, a opressão do Estado e do latifúndio, etc. Via de regra, a cultura não consegue solucionar essas questões nodais, mas se transforma em uma forma de educação sentimental, um repertório de possibilidades a serem vividas dentro de um sistema, e que, sim, pode lançar as massas a ações mais concretas.

Já na década de 70, porém, ocorre uma subversão protagonizada pelo ex-cantor da Jovem Guarda, Sérgio Reis, nascido em um bairro nobre de São Paulo, que migrou para a música caipira muito provavelmente a fim de beber no sucesso que ela fazia com as classes pobres. Sua música, nota-se, só contém elementos caipiras no sentido formal, como “decoração”, visto que o conteúdo das canções volta-se muito mais para a boemia e o apelo sexual, como em Panela velha e Pinga ni mim, intercambiados em seu terceiro álbum com canções gospel e versões de músicas estrangeiras.

Aí inicia-se uma longa tradição do sertanejo de boemia, dentro dos quais podemos incluir duplas famosas como Leandro & Leonardo, Rick & Renner e Zezé Di Camargo & Luciano. Chitãozinho e Xororó também entram nessa categoria, mas mais voltados para o gênero romântico. 

Pode-se argumentar que o predomínio desses temas (a boemia e o amor) deve-se basicamente à possibilidade de ascensão social permitida pela popularização da indústria fonográfica. Assim, artistas pobres são subitamente “transplantados” para a vida pequeno-burguesa (e por vezes burguesa) das capitais. Assim, passam a reproduzir, em uma espécie de sincretismo musical, os valores da pequena burguesia sob uma ótica caipira. 

Não há nada mais típico da ideologia pequeno burguesa do que a ideia de um amor absoluto, já expressa nas raízes românticas da classe. Daí deriva a tríade que constitui boa parte dessas músicas: amor-traição-boemia. A pequena burguesia dá voltas infinitas em torno da questão do amor pois é a única possibilidade de felicidade que ela vislumbra quando exclui-se a possibilidade de transformar-se a realidade; todas os dilemas ao redor dos quais gira a pequena burguesia dizem respeito, direta ou indiretamente, às perspectivas e dificuldades em amar e ser amado.

Em meados dos anos 2000, como é a tendência da indústria, a dita música sertaneja adquiria uma sonoridade cada vez mais homogênea. A dupla de viola dera lugar à banda padronizada de bateria, acordeão, baixo e guitarra ou violão elétrico. Ao mesmo tempo, as duas vozes tornam-se uma no nascente sertanejo universitário. O nome diz tudo: não são mais emigrantes do campo, mas os filhos desses, que muitas vezes já eram nascidos em cidades médias, ou até capitais, e que integravam a vida urbana jovem — com destaque aos bares frequentados por universitários, alguns dos quais chegaram a lançar suas próprias carreiras, como Jorge & Mateus.

O conteúdo do sertanejo universitário, assim, gravita em torno da boemia universitária e a cultura jovem da época, como as baladas e o aumento da liberdade sexual, principalmente feminina. No mesmo contexto, logo surge o feminejo, o sertanejo imbuído dos valores das mulheres da pequena burguesia, que “ganhavam cada vez mais voz” desde que as usassem para reproduzir teses do feminismo liberal. 

Não há, muitas novidades, portanto. As letras do feminejo debruçam-se também sobre os relacionamentos amorosos, mas agora sob a perspectiva da das condições da opressão feminina — que, na pequena burguesia, diz respeito principalmente às liberdades individuais e sexuais. Normalmente, o arco da canção do feminejo é uma vitória sentimental dos valores tradicionais femininos sobre os masculinos (a sensibilidade e o amor vencem a canalhice) ou, o mais comum, a mulher passando a ocupar a posição do homem pequeno burguês, dando “o troco” ao adquirir “o direito de se comportar como canalha” (Hoje a moda é outra, os tempos mudaram/ A mulher é independente/ Bebe, bate e joga o homem pra fora). Não surpresa que muitas das porta-vozes do feminismo burguês tiveram que adaptar-se aos modelos de beleza da burguesia para terem sua vez nos palcos.

Porém, mesmo tendo afastado-se tanto de suas raízes rurais, estes “sertanejos” ainda mantinham certa conexão umbilical com as formas clássicas. Desde uma vaga sonoridade caipira até canções que explicitamente evocam o campo, observa-se que muitos dos artistas mantêm uma certa ligação real com o mundo rural, seja por conta de sua origem social, muitas vezes humilde, ou sua família, muitas vezes camponesa. Michel Teló, após tornar-se mundialmente famoso com talvez o primeiro hino do sertanejo universitário, Ai se eu te pego, gravou um álbum apenas de versões de músicas clássicas com artistas como Milionário e José Rico e Chitãozinho e Xororó.

Aparentemente, as investidas mais ou menos orgânicas do sertanejo urbanizado, em que os artistas nascentes — cujas músicas serviam aos interesses da burguesia e eram por ela financiados — serviram de experimento para um investimento mais direto e controlado, o chamado agronejo. O gênero nasce com a música O agro é top de Léo & Raphael, mas o nome provavelmente origina-se da música Agronejo de Dj Chris no Beat e Ana Castela. 

Ana Castela é, por sinal, a embaixadora do agro na música. De família rica e fazendeira no MS, a jovem teve um impulsionamento meteórico na carreira, assim como outros cantores que se propõe a louvar os “milagres” do agronegócio. Não deixa de ser irônico que seu mote, “a patricinha virou boiadeira”, é uma espécie de lembrete aos ouvidos atentos de que a principal força detrás do monopólio das riquezas no Brasil é o latifúndio: um dia os boiadeiros viraram engomadinhos. Esse retorno ao campo é muito diferente de Saudades da minha terra, se trata explicitamente dos valores do agronegócio, do luxo e de um suposto mérito do agro de “carregar o Brasil nas costas”. As figuras centrais são a mulher sexualizada e o homem viril, simbolizados pelo chapéu de boiadeiro, pela “cavalgada” e pela caminhonete de luxo.

Merece particular atenção a ligação do estilo com a promoção de uma estética supostamente campesina, mas de alto luxo e cuja principal repercussão se dá nas cidades. O cantor Luan Pereira emplacou dois hits com músicas que falam, basicamente, de carros luxuosos. Depois do lançamento de Ela pirou na Dodge RAM, as vendas das caminhonetes cresceram 519% no primeiro trimestre de 2023 (informação da Carta Capital). Luan Pereira demonstra, inclusive, a estreita união do agronejo com a indústria do funk (outra indústria dentro da qual não sobrou nada de valores democráticos). É comum que muitas músicas de agronejo sejam lançadas em duas versões, a “sertaneja” — que já lembra pouco sequer a banda com acordeão e violão elétrico —, e a completamente “funkinificada”, para tocar nas cidades e baladas. São exemplares os versos de Agronejo, “Juliet na cara, chapéu na cabeça […] As novinha’ tão descendo/Pra curtir o agronejo.”

O agronejo, é, portanto, um investimento muito mais controlado e consciente do latifúndio em uma tentativa de disseminar sua ideologia do Agro é Pop. Alguém poderia contestar, afirmando que muitas músicas são apenas reproduções orgânicas do estilo “ostentação”, uma consequência da cultura do consumo nas regiões rurais. De fato, assim como a cultura popular não é uma agenda de valores progressistas, a cultura dominante, mesmo produzida em massa, toma corpo através de indivíduos concretos que muitas vezes não estão conscientes por completo de estarem a serviço de determinados interesses econômicos, mas visam expressar apenas aquilo que conhecem como “realidade”. 

Em última instância, isso não importa muito para o debate, mas para quem duvida do completo aparelhamento do estilo pelo agronegócio, basta observar as canções mais “empobrecidas” (se é que tal hierarquização é possível a esse ponto) e “panfletárias”, como O agro malvadão, em que se ouve, “Tá comendo picanha de prato na mão/ Falando mal do agro, o agro malvadão”. Tais letras não são produtos orgânicos de indivíduos concretos, mas expressões encomendadas e mal-acabadas da ideologia burguesa codificada em versos e metáforas. 

É curioso observar que uma crítica comum feita às artes produzidas em países comunistas era seu aparelhamento em relação à ideologia de Estado. No entanto, vê-se que houve evolução das formas artísticas ao longo da história do comunismo, deixando gradualmente de incorporarem visões mecânicas da ideologia revolucionária. Enquanto isso, os filmes de super-heróis e o agronejo são exemplos distantes entre si, mas que apontam que o completo aparelhamento da arte à ideologia dominante — de maneira “camuflada” — não é um percalço no desenvolvimento do capitalismo, mas seu objetivo. É como a piada do agente soviético que vai aos EUA aprender a fazer propaganda para o Estado. Um americano, no avião, ao saber disso, retruca “que propaganda do Estado?”. Ao que o soviético responde, “exatamente.”

Dito isso, podemos nos perguntar, ainda existe algum resquício da música caipira no agronejo? A resposta é provavelmente não. Seja no conteúdo das letras, na melodia, nos instrumentos, na origem social, tudo aponta para o exato oposto, por isso é oportuno o rebranding saindo de “sertão” para agro. Um vago eco talvez possa ser ouvido nas notas vocais graves e longas, mas a semelhança é tão vaga que seria mais adequado aproximar o agronejo da ópera do que da longínqua e centenária música caipira.

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