Comandante da Marinha ataca Revolta da Chibata em carta contra título de herói para João Cândido

O que Olsen repudia acima de tudo são as críticas e os ataques às regalias cultivadas no Alto Comando. Afinal, o próprio Almirante cultiva um soldo de mais de R$ 40 mil.

Comandante da Marinha ataca Revolta da Chibata em carta contra título de herói para João Cândido

O que Olsen repudia acima de tudo são as críticas e os ataques às regalias cultivadas no Alto Comando. Afinal, o próprio Almirante cultiva um soldo de mais de R$ 40 mil.
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“O episódio constitui para a Marinha do Brasil (MB), fato opróbio da história, cujo estopim se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação”. Foi assim que o comandante da Marinha, Marcos Felipe Olsen, classificou a Revolta da Chibata de 1910 em uma carta enviada para o deputado federal Aliel Machado, autor de um projeto de lei que busca inserir João Cândido, líder da insurreição, no livro de Heróis e Heroínas da Pátria. 

A carta foi disponibilizada na íntegra no dia 24 de abril na coluna do jornalista do Metrópoles, Mario Sabino, e é parte do esforço da reacionária Marinha do Brasil de impedir a tramitação do projeto. 

A Marinha não pode decidir sobre o futuro do projeto, mas a carta é uma demarcação clara do que pensa a alta oficialidade da instituição militar, e não somente Olsen como indivíduo: “a Força Naval não vislumbra aderência da atuação de João Cândido Felisberto na Revolta dos Marinheiros com os valores de heroísmo e patriotismo; e sim, flagrante que qualifica reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro”, diz o documento. 

Porém mais do que buscar impedir o avanço do projeto, há também o propósito dos altos oficiais de manchar, por mentiras e difamações, a imagem do grande brasiliero que foi o Almirante Negro João Candido e a revolta por ele liderada, para que o exemplo nunca se repita. 

O Almirante Negro João Cândido

A Revolta da Chibata aconteceu em 1910. Naqueles anos, as baixas patentes da corporação eram preenchidas sobretudo por jovens pretos da periferia, e o tratamento dado a eles eram terríveis: baixos salários, exploração máxima e, aos que reclamassem, castigos físicos que iam desde espancamentos até chibatadas (nota: não muito diferente da realidade de baixas fileiras das Forças Armadas reacionárias até hoje, particularmente o Exército).

João Cândido era um desses jovens: nascido de família pobre, entrou na Marinha do Brasil entre 13 e 14 anos e se destacou: aos vinte anos era instrutor de aprendizes-marinheiros. 

Ao longo da carreira militar, Cândido conviveu profundamente com os jovens que compartilhavam sua experiência de vida. Além disso, e importante para seu futuro, também conviveu com marinheiros de outros países, também submetidos a condições degradantes, mas com uma experiência maior de luta acumulada. Uma viagem de suma importância para essa transformação de Candido foi à Grã Bretanha em 1909. 

Lá, além de ver a diferença com a qual eram tratados os marujos britânicos depois das lutas populares, tomou consciência da revolta dos cossacos do navio russo Encouraçado Potemkin, em 1905, uma grande sublevação dos marujos russos contra as condições péssimas de higiene e alimentação nos navios. 

Daí, a revolta de Cândido desenvolveu-se rapidamente: na Inglaterra, montou de forma clandestina um Comitê Geral para preparar a revolta. A organização central se ramifica em diferentes comitês revolucionários organizados em navios, aglutinando figuras como o Mão Negra (o marinheiro Francisco Dias Martins), conhecido entre os marinheiros pela carta contra a chibata dirigiu à alta oficialidade da Marinha: “venho por meio destas linhas pedir para não maltratar a guarnição deste navio, que tanto se esforça para trazê-lo limpo. Aqui ninguém é salteador, nem ladrão. Desejamos paz e amor. Ninguém é escravo de oficiais e chega de chibata. Cuidado!”, dizia o documento.

Com essa estrutura, no dia 22 de novembro de 1910, a tripulação do Encouraçado Minas Gerais amotinou-se, e matou o comandante a tiros e coronhadas quando ele retornou de um jantar pomposo. Outros cinco oficiais tiveram o mesmo destino. Outras embarcações, como o Deodoro, São Paulo e Cruzador Bahia, se juntaram ao Levante. Eles exigiam acima de tudo o fim dos castigos físicos, mas também melhoria nas condições de vida e trabalho dos marujos, separados por um abismo das regalias e privilégios que sempre tiveram os altos militares.

A revolta durou cerca de quatro dias, com uma tentativa de retomada por parte da Marinha repelida a tiros de canhões pelos revoltosos. Ao final, o governo cedeu e anistiou os marinheiros, mas voltou a trai-los pouco tempo depois: a maioria acabou perseguida, presa e expulsa da instituição. A alta oficialidade conservou-se. 

O Comandante mentiroso

Portanto, é mentiroso e mal intencionado o documento redigido por Olsen. “Mister rememorar dentre as reivindicações apresentadas por manifesto de rebelados ao Governo brasileiro: o aumento de salários; a exclusão de Oficiais considerados – por eles – indignos de servir à Marinha; e regime de trabalho menos exigente. Notável, então, entender que, além do justo pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite, buscavam, deliberadamente, vantagens corporativistas e ilegítimas”, diz o documento, com destaque desta tribuna.

Era ilegítimo exigir a punição e expulsão da Marinha os oficiais envolvidos em práticas condenáveis como a tortura? Se trata de “vantagens corporativistas” a exigência por melhores salários na condição de miséria as quais estavam submetidos os marujos, forçados a ver os comandantes empanturrados de benefícios? Não era só a baixa patente da Marinha que exigia coisas desse tipo: no Exército, também era comum exigências assim desde o século XIX, em períodos como a Guerra do Paraguai (marcada pela corrupção e enriquecimento dos altos militares às custas dos soldados), e durante o século XX, nas mobilizações dos jovens tenentes que criticavam acidamente a alta oficialidade mesmo antes das revoltas tenentistas. 

O que Olsen repudia acima de tudo são as críticas e os ataques às regalias cultivadas por ele seus cupinchas no Alto Comando. Afinal, o próprio Almirante cultiva um soldo de mais de R$ 40 mil. Mas disfarça isso tudo de “preservação da instituição militar” e do “Estado Democrático de Direito”. 

Nos dias atuais, enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas e pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito”, concluiu ele assim o documento.

Não seja leviano, Almirante. Todos sabemos que o enaltecimento das “passagens afamadas pela subversão” e “pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros” não está nas honras ao herói João Cândido, mas sim nas cerimônias militares e nos cursos que ocorrem nos quarteis até hoje para tratar do golpe militar de 1964.

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