No dia 17 de novembro, os Guarani-Kaiowá da comunidade Pyelito Kue retomaram mais uma parte de seu território tradicional em Iguatemi, Mato Grosso do Sul. Dois dias depois, os indígenas passaram a ser atacados por “seguranças privados” que atuam como pistoleiros a mando do latifúndio. Já no dia 22 houve um recrudescimento dos ataques por parte dos latifundiários das fazendas Maringá e Cachoeira.
Moradores da retomada utilizaram um celular emprestado para denunciar o que está ocorrendo lá, já que não possuem acesso à internet na área. Segundo um relato, “a situação se agravou, uma família foi detida com uma mulher grávida de sete meses. Invadiram lá e estão [nos] retirando sem mandado”. A mulher Elizete Nunes Lopes e seu marido Jackson Vilhalva estavam a caminho da Aty Guasu (Grande Assembleia do Povo Guarani-Kaiowá) quando foram sequestrados e permanecem desaparecidos.
Em entrevista ao monopólio de imprensa O Globo, a liderança Guarani-Kaiowá Valdelice Veron, disse que um jornalista canadense foi a Iguatemi cobrir o caso e “foi pego pelos pistoleiros da Fazenda Maringá e está sendo espancado”. Ainda segundo ela, disparos de arma de fogo teriam sido feitos contra indígenas que tentaram intervir. Em depoimento publicado na rede social X (antigo Twitter), o jornalista, sua esposa e um outro repórter afirmam terem sido cercados por mais de 30 homens encapuzados. Os pistoleiros tomaram câmeras, passaporte e outros pertences deles. Toda a ação foi observada pela Polícia Militar e pelo Departamento de Operações da Fronteira (DOF) que não fizeram nada, segundo os depoentes.
Conflito é resultado de mais de 14 anos de enrolação do velho Estado
O tekoha (terra tradicional indígena) Pyelito Kue compõe junto com outros oito tekoha a terra indígena Iguatemipegua I, cuja área total deveria ser de 42 mil hectares. A maioria dos descendentes dessas terras, porém, foi expulso entre os anos 1950 e 1970 da região. Eles foram obrigados a ir para a cidade vizinha de Tacuru para viver na TI Sassoró, demarcada com 2 mil hectares, porém onde os indígenas usufruem de fato de cerca de 1.930 hectares.
Em novembro de 2007, há quase exatos 16 anos, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público Federal (MPF) e a atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que prometia a demarcação de Iguatemipegua e outras terras Guarani-Kaiowá em até dois anos. Passado o prazo e, diante da visível inoperância do velho Estado, os indígenas adentram a área já em novembro de 2009, conforme entrevista dada ao MPF. Eles foram violentamente expulsos no mês seguinte, quando mais de 50 pessoas, inclusive idosos, foram espancadas, e um adolescente desapareceu.
Os indígenas continuaram na região vivendo numa área de apenas míseros 2 hectares. Após diversos ataques em 2011 e uma decisão de reintegração de posse em 2012, as comunidades Pyelito kue e Mbarakay e seus 170 membros lançaram uma carta aberta em outubro que obteve repercussão nacional. Nela, diziam “não acreditamos mais na Justiça brasileira”, “não vamos sair da margem do rio” e que não tinham outra opção a não ser morrer lutando. Interpretada como um anúncio de suicídio, o texto reafirmava apenas a vinculação vital entre a terra e esse povo, que estava disposto a morrer por ela.
Mesmo com a área delimitada após estudo antropológico e relatório publicado no Diário Oficial no começo de 2013, os indígenas seguiam em situação lastimável. Denunciavam que continuavam vivendo em apenas 1 hectare e, no final do ano, afirmaram: “Nós gritamos que esgotou a nossa paciência (…). Imediatamente precisamos ocupar de volta nosso tekoha“. Os Guarani-Kaiowá afirmaram que não esperariam mais “de braços cruzados” e que “se houver algum pedido de liminar ou reintegração de posse, já vamos deixar bem claro que a guerra será declaratoriamente (sic)”. Em 2014, cerca de 250 indígenas retomaram 1200 hectares ao adentrar a fazenda Cambará. Após sucessivos ataques, um acordo permitiu que eles ficassem em 97 hectares da Cambará, a título de comodato, até decisão definitiva do processo demarcatório.
No ano seguinte, 300 Guarani-Kaiowá adentraram as fazendas Santa Rita e Maringá, quando capangas dos latifúndios disseram que “todos seriam mortos”. Apesar de dez feridos, os indígenas conseguiram garantir a retomada. E apesar das bravatas dos pistoleiros, os Guarani-Kaiowá seguem vivos e lutando. Doze anos depois da carta interpretada como uma nota de suicídio coletivo, as ações subsequentes e a nova retomada demonstram que, na verdade, o que aquele texto afirmava e a cada dia é reafirmado não é senão a intrepidez desse heroico povo com sua persistência inquebrantável e combatividade inabalável.