Jovem comunista enfrenta cavalaria com estilingue: Entrevista com o Dr. Zequinha

José Ferreira Lopes: Uma vida de militância, clandestinidade e resistência à ditadura dos militares e à tortura.

Jovem comunista enfrenta cavalaria com estilingue: Entrevista com o Dr. Zequinha

José Ferreira Lopes: Uma vida de militância, clandestinidade e resistência à ditadura dos militares e à tortura.
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José Ferreira Lopes, mais conhecido como Dr. Zequinha, médico e militante, hoje com 82 anos, foi um dos jovens que enfrentaram a repressão no confronto que entrou para a história como A Batalha do Politécnico, no Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná, em 1968. O destemor do então estudante de Medicina, “armado” com um simples estilingue, diante da investida da Cavalaria da Polícia Militar, tornou-se ícone da desproporção de forças e da determinação invencível dos jovens comunistas. Dr. Zequinha nasceu em Marília (SP), em 11 de abril de 1942. Entre seus combates, esteve também o apoio logístico, na Bahia, à  Guerrilha do Araguaia.

AND – (Mostramos ao militante veterano a famosa foto de sua juventude, na Batalha do Politécnico, e pedimos que falasse de sua trajetória como militante).

Dr Zequinha – A foto que vocês, do AND, trouxeram, me traz à lembrança uma juventude que combateu, com tantos outros, a ditadura militar. Ela é o reflexo dos meus 82 anos de idade, porque permite, hoje mais do que nunca, analisar o momento da foto do saudoso Edson Jansen, fotógrafo amigo, premiado nacionalmente.

Podemos falar sobre o movimento estudantil de 68, que na verdade não era isolado do que acontecia no mundo. Na França, os estudantes da Sorbonne revolucionaram o ensino e o próprio poder, querendo a liberdade de se expressar, e também uma reformulação do ensino, do currículo da época, e dos costumes. 

Nos Estados Unidos, havia a efervescência do movimento estudantil, que se ampliou mais ainda com as manifestações do povo americano contra a guerra do Vietnã, quando o imperialismo tentava massacrar o Vietnã, hoje livre, soberano e independente.

Foi uma época muito importante na vida dos povos.

No Brasil, que já vivia sob uma ditadura militar, o movimento estudantil não poderia estar fora do que acontecia no mundo. E tinha essa particularidade. A França sob a democracia burguesa, como os outros países, geralmente sob democracia, e nós sob a ditadura implantada em 1964, derrubando o governo nacional, desenvolvimentista e popular de Jango Goulart, que teve um papel histórico na luta pela democracia no país, pela mudança, defesa da soberania nacional e dos interesses populares.

A ditadura começou a fazer projetos megalomaníacos para o Brasil, mas sempre pensando no imperialismo, nada que fosse nacional, para o nosso povo, para o nosso país. E a educação, os estudantes universitários e tal, era um importante segmento para tentar impor uma mudança no Brasil. Foi feito o chamado acordo MEC-USAID, entre o Ministério da educação, no Brasil, e o Usaid, um órgão americano, que visava, basicamente, mudar o que nós tínhamos como forma de educação. Pegou em uma conjuntura favorável a eles, pelo corte, se eu não me engano, de 12% ou 22% do MEC, e uma crise nos currículos, que eram afastados da realidade dos universitários e do povo em geral. Eles tinham como objetivo principal a privatização do ensino brasileiro. Era interesse dos grandes grupos monopolistas brasileiros e americanos imperialistas, para que pudessem ter mais uma fonte de renda para seu usufruto, e nessa conjuntura foi possível mobilizar, com a rapidez de um ano, uma coisa impressionante, e que acabou eclodindo depois que a ditadura, acuada também com as manifestações de outras áreas, greves operárias, manifestações de intelectuais do cinema, do teatro e da música, setores econômicos médios resolveu fazer essa experiência, um processo de privatização.

A bandeira fundamental do movimento estudantil, que perdura até hoje, é o ensino público e gratuito, e eles vinham com a história do ensino pago, como se fosse a solução dos problemas que tínhamos. Então tudo se precipitou, com as manifestações que estavam ocorrendo na sede da UNE, no Rio de Janeiro, que na verdade era um restaurante que atendia universitários e estudantes secundaristas se preparando para o vestibular, e nesse entrevero assassinaram o estudante Edson Luís, um jovem secundarista, e isso eclodiu nacionalmente, e, como deveria ser, eclodiu no Paraná, onde já tinham sido realizadas manifestações e onde existia um forte movimento estudantil organizado, com diretórios universitários, grêmios estudantis, UNE presente, UPE (União Paranaense dos Estudantes) presente, DCE presente. Foi possível, então, aglutinar as lideranças e o povo em geral para um combate em defesa do ensino público e gratuito, e simultaneamente defender a liberdade e a democracia.

Na época, quando ocorreu a minha primeira prisão, estava a pixar um muro, junto com João Urban, ABAIXO A DITADURA! Acabei preso pelo DOPS e levado à delegacia da Ordem Pública que ficava na Rua Carlos de Carvalho, e sofri ali a primeira tortura, que foi uma forma “simples” de tortura – “simples”… não sei se existe simplicidade na tortura -, que era ficar nu, apoiado sobre uma lata de cera. Você ficava em pé com as mãos encostadas na parede e ficava ali sem poder se mexer, e aquilo ia doendo, e de vez em quando davam socos na parte renal, que não deixam muita marca. Houve uma forte mobilização estudantil, que acabou me tirando na mão do DOPS (Dr Zequinha ficou preso, nessa ocasião, por 36 horas).

Nesse momento eu estava no quarto ano de medicina na Universidade Federal do Paraná. No outro dia apareceu destacado assim, na Tribuna do Paraná: “Preso jovem comunista estudante de Medicina”, e o texto descrevia o que eu tinha feito, e tal. Isso na verdade não diminui o ânimo da gente, até provoca uma mobilização interna, você tem que “resolver essas paradas agora, né?” você se sente motivado à luta, com certeza, não poderia deixar de ser.

Ontem eu estava aqui, ouvindo Taiguara, um show em Goiânia, 1968, e Geraldo Vandré, um show extraordinário, que na época eu ouvia na rua XV, em frente em frente a uma loja de discos, na rua, pois não ia comprar. Ficava ouvindo Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda e outros, Jovem Guarda, e tudo aquilo era um ambiente, e lendo as notícias da Guerra do Vietnã, aquele genocídio e a reação espetacular e fenomenal, consciente, do povo, para conquistar a soberania, a independência do país, e para conquistar novos futuros.

Num repente aparece a convocação de um vestibular do curso de Engenharia noturno (pago), para a Universidade Federal do Paraná, que seria realizado no campus universitário, e então começaram as mobilizações. Como os estudantes eram muito organizados, as reuniões eram feitas por representantes eleitos por todos os diretórios, no mesmo método democrático, consciente, para fazer as assembleias, e a gente fazia as assembleias. Naquele tempo a UPE, da qual eu fui vice-presidente, tinha um R.U., que atendia de forma sensacional os estudantes secundaristas que iam fazer o vestibular, dando condições de sobrevivência e tranquilidade para os estudos.

Realizamos várias manifestações, e apareceu também um movimento bancário e um movimento popular na Vila Nossa Senhora da Luz, que também aderiram a essas manifestações.

Fizemos uma assembleia grande, só com lideranças, no Diretório Acadêmico Nilo Cairo (DANC – Medicina), quando definimos que iríamos fazer um boicote ao vestibular, no campus universitário. Lá, fomos recebidos pela repressão da PM. No esquentar da manifestação é que foi possível o saudoso Edson Jansen me fotografar com um estilingue contra o cavalo da Polícia Militar que vinha com a espada para me agredir. Felizmente tínhamos o apoio da população ao redor, e tive a possibilidade de me esconder na casa de uma família. Primeiro subi pelas escadarias, com dois que iriam também (o morador escondeu os estudantes embaixo da lona de sua caminhonete e os levou para o Centro de Curitiba).

Em uma reportagem, pediram para eu mostrar o local onde foi, na rua onde foi realizado o ato da estilingada, e reencontrei aquela família. Eles  me chamaram para tomar café e tal, o repórter junto. A mulher  me entregou uma blusa, “Eu tenho guardado isso aqui a anos, Dr. Zequinha, essa blusa vocês deixaram aqui comigo, eu guardei e faço questão de devolver”. Foi emocionante.

No outro dia dariam continuidade ao vestibular. Fizemos uma nova assembleia e adotamos uma tática. Saímos em passeata, como se fôssemos para o campus universitário. Divulgamos o itinerário, e todos os da PM foram para lá, e então dividimos nossa caminhada em duas e conseguimos tomar a Reitoria, que ficara desguarnecida. Foi um trabalho rápido, imenso, coletivo. Erguemos barricadas, cercando a Reitoria, arrancando paralelepípedos. Tínhamos gente em cima dos prédios para ver quando a polícia ia chegar. Foi bem planejado.

Quando a polícia veio e cercou, não conseguiu invadir. E ali a gente ficava, gritando palavras de ordem, na eminência de eles atacarem, e era muita gente da polícia.

O presidente da UPE, o Stênio Jacob, e a própria direção toda da manifestação, mas principalmente o Stênio, começou a negociar com o Governador, que era Paulo Pimentel, deixando claro que seria responsabilidade do governador qualquer coisa que acontecesse com os estudantes. Pimentel interveio e conseguiu apaziguar, e esse fato acabou derrubando o ensino pago. A presença dos estudantes na rua, o povo apoiando, os bancários, o povo da periferia da Nossa Senhora da Luz, fez com que ficasse como estava, sem privatizar. O Reitor era o Flávio Suplicy de Lacerda. Derrubamos o busto dele e arrastamos pela rua até a praça Santos Andrade. Não depredamos nada, só fizemos o cerco, e o povo disposto a brigar… essa foi a chamada manifestação da reitoria. Do ponto de vista histórico, foi o movimento mais importante, naquele momento, no Paraná, para impedir o ensino pago. Teve repercussão nacional.

AND – O Sr foi preso novamente. Como era a repressão política no Paraná, na época? O senhor era militante da Ação Popular, e, após esse período, ingressou no PcdoB, não foi? Consta que foi para Minas Gerais, participar do movimento operário, e depois para a Bahia, e teria tido um papel de apoio à Guerrilha do Araguaia, em Jequié.

Dr Zequinha – Eu sou filhos de pais nordestinos, analfabetos, que capinaram e foram criando sua sobrevivência. Nasci em Cabrália, um distrito de Marília. Nasci na roça, minha mãe me pariu dentro de uma bacia, a mesma onde eu tomava banho e ela cozinhava para todos. Tenho uma estima muito grande e reconheço o esforço que eles fizeram, não só pra mim, mas para todos os irmãos, todos têm curso superior, tem um que é médico, tem professora da USP, pedagogas, e isso foi fruto do suor deles.

Em Marília, principalmente, eram amigos de muitas pessoas, tanto da elite como outras, que eram proprietários de lojas, o alfaiate, que era comunista. Tinha os Silva, que eram donos de uma sapataria, todos comunistas,  e o Falcão, que era vizinho, todos eram do Partido Comunista, e meu pai tinha um cargo honorário na cidade, como se fosse um delegado (naquele tempo não existiam as carreiras bem definidas, como hoje), e ele sempre protegia esses três. Era para eles amigo mesmo, como era amigo de outros, que tinham fazendas, etc. Era uma pessoa especial.

Quanto à repressão no Paraná, ela aumentou. Ela vinha se apresentando. Numa manifestação de rua, fui preso, levando uma porrada por trás, e fui levado pro quartel da Polícia Militar na Rua Marechal Floriano, e depois teve outra prisão, mas o povo se mobilizava e tirava a gente de lá. Veja o grau de mobilização que havia!

Quando teve o congresso da UNE em Ibiúna, foi todo mundo, e eu fiquei cuidando da UPE. Não foram todos os diretores, e os que foram acabaram presos, como vocês sabem.

O movimento foi crescendo e crescendo, então veio o AI5, e só restaram duas opções. Era ficar para ser preso, ou sair para continuar a luta de forma clandestina.

Eu cheguei a Curitiba em 64, logo após o golpe. Tive um professor de Português no curso Científico (Ensino Médio), o Hilário, que exigia de nós muita leitura e produção de texto. Era uma figura de teatro, um poeta. Meu pai, mesmo sem educação formal, sempre comprou livros de Jorge Amado, Graciliano Ramos, fazia coleção, e a gente lia, e ouvíamos música clássica e música popular. Fomos criados, eu e minha trupe, 18 jovens, muito próximos uns dos outros, diferentes situações sociais, classe média, uns mais ricos, outros mais pobres, e éramos muito amigos. Desses dezoito, acho que catorze viraram médicos. Um estava no Rio, outro professor da Universidade de Ribeirão Preto, um lavrador que foi campeão brasileiro de natação, um que trabalhou na VASP e teve cargos importantes, era isso, essa mistura.

Lembro de um comício, um discurso de Jânio Quadros, em 60, que tinha como vice o Jango Goulart, que disputava com o General Lott. Votei Jango. Jânio e Jango.

Quando cheguei a Curitiba, passei no vestibular em 65. Estava com namorada, bebia, ia a festas, carnaval, além de estudar, como todo jovem. Acabei entrando na Ação Popular. Quem me trouxe foi o China, Issamu Ito, estudante de Medicina. Comecei a me aproximar de leituras e me engajar no movimento, e comecei a ler Marx, Engels, ainda muito inicial, sempre ativo, mais ativo do que estudioso.

Quando veio o AI5, eu devia ir para a clandestinidade. Era uma política interna da AP (especialmente para militantes que se encontravam muito visados em suas cidades originais). Vamos integrar-se à produção, onde o povo está. Fui para São Paulo, mas não me integrei à produção, fui para a organização do Comitê Central (Secretaria Nacional de Organização) da AP. Participavam Renato Rabelo, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Ronaldo Freitas… Aquilo era uma responsabilidade. Fazia todos os trabalhos e morava clandestinamente. Foi quando veio o conhecimento do Partido Comunista do Brasil, a história do Partido, fundado em 22, todas aquelas lutas. Discutia-se na direção nacional, e eu também acabava participando, porque fazia serviço e a segurança, e fazia ponto com um para passar para outro, falava com Renato e encontrava com Haroldo. Com tudo isso, você acaba trocando opiniões e opiniões, fui amadurecendo. 

Quando a luta de ideias se tornou mais forte, decidi tomar a posição de ir para o PcdoB, em 1972 (até o presente). Antes de entrar oficialmente, ainda na AP, saí de São Paulo e fui para Minas Gerais, para me integrar ao movimento operário, e particularmente o metalúrgico, na Belgo-Mineira, que era o objetivo final, mas não era tão fácil assim entrar, precisava de um trabalho preparatório, primeiro tive que me desnudar do meu ar de estudante de classe média, para ter uma história no mundo trabalhador.

Trabalhei em construção civil (ajudante de pedreiro), depois como operário têxtil (fábrica de tecidos Renascença), e depois me chamaram para ser peão da Belgo-Mineira. Fui arrastando rolos de arame, até ser operador da máquina que produzia arame farpado. Lá criei amizades, tive até uma namorada que trabalhava na parte elétrica. Mas um belo dia estava trabalhando – sabia que estava tendo uma pressão em cima da AP em Minas – e chamaram por Isaias José de Souza, que era meu nome na clandestinidade (a identidade era de baiano, filho de mãe solteira). Pediram que fosse até o escritório, me pegaram, botaram um capuz na minha cabeça e me arrastaram para o DOPS. Começou, como de hábito, a tortura, espancamento, afogamento, pau-de-arara, acontecendo, acontecendo e acontecendo, e eu sempre mantendo o álibi, sou Isaías José de Souza, operário. Me levaram para uma sala e lá estava um Major. O chefe dos torturadores chegou e disse “José Ferreira Lopes! Zequinha! Até que enfim te pegamos!”

Mantive a postura, “o meu nome não é José Ferreira Lopes, é Isaias José de Souza”.

Apanhei, apanhei, tortura, tortura diária. Me levaram de novo.

“Você não vai confessar, fulano disse que era você, e você vai dizer que não é?”.

Então eu falei: “Meu nome é José Ferreira Lopes, conhecido como Zequinha, mas também sou Isaías José de Souza, operário, e fui levado a isso pela ditadura militar.” E fiquei repetindo isso.

Mais tortura, me botaram num avião e me levaram para o Cenimar (Centro de Inteligência da Marinha, um dos polos da tortura no regime militar), no Rio de Janeiro, e lá foi porrada. Saía da tortura e me jogavam numa câmara que alternava calor e frio, fechada no calor, barulho e barulho. Aí abriam  a porta e peguntavam “Confessa? Confessa?” Eu só falava meu nome. Fiquei lá um tempo, depois entrei numa cela, não tinha grade, uma porta, um vaso, você dormia no chão. Ficava aquela tensão psicológica.

Um dia vi alguém datilografando do meu lado, falando meu nome. Vi a filha do Reitor da UFF, militante também, meio acabada, assim, numa cela em frente, olhamos um para o outro, quietos. Botaram-me em um avião e me levaram de volta para Belo Horizonte, e continuaram as torturas. Um dia jogaram um papel na minha frente para escrever. Fiz uma declaração, “Eu me chamo José Ferreira Lopes, estudante de Medicina”, não citei o nome de ninguém, só disse que   lutava contra a ditadura militar, pela independência do Brasil, pela liberdade e soberania nacional”, Eles ficaram putos. 

Um dia me botaram de novo em um avião e fizeram como se fossem me jogar de um avião. Eu estava acabado, quase 90 dias dessa brincadeira, e eles diziam “fique tranquilo, isso vai se acalmar, a gente te joga aqui e tu cai do mar e vai ficar tudo bem, e acaba sua história.”

Me deixaram aqui em Curitiba, me acusaram pela atuação no movimento estudantil, só. Aqui tinha um promotor militar (juiz auditor), um cearense, não me lembro o nome, progressista, que disse que sabia o que a gente estava fazendo, mas dava o direito à gente de fazer, e fui lá pro presídio onde estava o pessoal, no Ahu, e a vida mudou, parecia um hotel de primeira. Comecei a receber visitas da minha família. Minha mãe, meu irmão…

Ia ter um um julgamento (referente a um processo antigo, do tempo de militância estudantil em Curitiba), mas fui liberado por um habeas corpus concedido por aquele juiz auditor. Ele foi lá no Ahu e disse “você está saindo, mas é o seguinte, é um conselho que lhe dou, acho bom você voltar.  Isso vai ser bom. Venha.” Fui para São Paulo e me escondi lá. Comentei com a minha família, e resolvi vir.

Eu tinha, ainda, muito reservadamente, contato com o PcdoB, e apresentei a alguns dirigentes aquela questão, disse que tinha aparecido uma situação favorável, e que era isso, ou pegar a mala e me mandar, sumir para qualquer lugar por aí. Pensei, pensei e pensei, falei com meu pai e ele veio comigo. Fui absolvido.
(Dr Zequinha voltou para São Paulo com a família, mas não ficou no mesmo apartamento, e sim em uma estrutura do PcdoB. Dois dias depois o apartamento da família foi invadido pela polícia paulista, em busca do militante).

Eu estava no PcdoB e me deslocaria para a Bahia, Jequié. Estava em curso a Guerrilha do Araguaia.

Casei (na igreja, com um padre progressista, para ter algum documento) com Maria de Fátima (de Azevedo Ferreira), também militante da AP/PcdoB, montei uma holaria na região de Antonio Conselheiro, cidade de Vitória de Conquista. Comprei um terreno lá, de transição, para depois ir para Bahia, e então houve  a queda da Lapa e eu perdi o contato do partido. Foi preso o Haroldo, que eu tinha absoluta confiança que não abriria a boca (Haroldo era o único dirigente que conhecia o paradeiro de Dr Zequinha). Outro que estava lá era o José Novaes, que conseguiu fugir, e esse não cumpriu nem um ponto que a gente marcou, se protegendo, tinha o direito… não posso criticar essa falta. Depois ele foi pro PT

(A Chacina da Lapa ou Massacre da Lapa foi uma operação do Exército no bairro da Lapa, em São Paulo, em 16 de dezembro de 1976, em que foram mortos três dirigentes do PcdoB, durante uma reunião do Comitê Central do partido. João Batista Franco Drummond, capturado na véspera, morreu sob tortura, e Ângelo Arroyo e Pedro Pomar foram mortos na operação. Elza Monnerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade foram presos e torturados).

Então foi isso, essa é minha história, aí resolvi fazer Medicina, consegui a minha vaga, uma briga com o Ministério da Educação, porque tinha sido jubilado. Em 1980 eu voltei a cursar Medicina e me formei médico, militando no PcdoB, já fui presidente estadual, essas coisas. Hoje eu faço hoje 52 dois anos de PcdoB, com muito orgulho.

AND –  Pouca coisa era revelada, por motivos óbvios, mas o que o senhor pode dizer sobre como se dava esse apoio à Guerrilha do Araguaia?

Dr Zequinha – Era secreto, e quem estava lá tinha se integrado profundamente ao povo. O Haas (João Carlos Haas Sobrinho, o Dr Juca), um médico querido, tinha aquela figura especial, que era o Osvaldão, João Amazonas, Maria Tavares, não era de conhecimento aberto. A gente não falava da guerrilha, era uma preparação a médio a longo prazo, não tinha nada que divulgar, não tinha manifestações, muitos da própria militância ficaram sabendo que teve a guerrilha do Araguaia somente depois. Tentávamos ser o mais discretos possível, e quando apareceu a coisa pegou, mataram todo mundo. 

O Dr. Juca, que é o Haas, tinha uma farmácia que cuidava de todo mundo, uma prova de que a guerrilha estava integrada. Muitos camponeses de lá entraram para a guerrilha. E ela se dava em um momento muito importante, porque na cidade a resistência à ditaduta militar era impossível, era muito forte. Matavam.

AND – Qual o papel da guerrilha contra a Ditadura, e seu legado revolucionário, o que representa para o novo tempo?

Dr Zequinha – Qual o objetivo final estratégico da guerrilha? Acabar com a ditadura e estabelecer a democracia no país. Ninguém estava pensando em descer a serra como Fidel. Nossa realidade era diferente.

A guerrilha é histórica, tem importância histórica. Hoje em dia parece que a história de tudo começa depois do PT, mas tem muita história antes do PT, greves feitas em São Paulo contra o fascismo de Getúlio, tudo feito pelo Partido Comunista do Brasil. A gente não pode remendar a história, apagar. O Brasil é um passado de luta, Zumbi dos Palmares, Tiradentes… É um movimento popular, é um movimento com massas? Não, mas eram pessoas que tinham a visão de que o brasil não podia pagar para Portugal e tinha que ser livre. Como vai esquecer um negócio desse? Tem que comemorar Tiradentes. Não é como Bolsonaro, que não falou nada de Tiradentes, somente do Elon Musk, pois para ele o herói é o Americano.

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