A terra fica do jeito que ela é

Quando um belo dia chegou, as águas da transposição mudaram tudo. Chegou especulação do capital e gente de fora… O que os camponeses poderiam fazer? Se organizar, claro!

A terra fica do jeito que ela é

Quando um belo dia chegou, as águas da transposição mudaram tudo. Chegou especulação do capital e gente de fora… O que os camponeses poderiam fazer? Se organizar, claro!
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De Rio a Serra, seguindo uma linha imaginária coletivamente falando, assim é como os camponeses sempre fizeram as divisões das suas terras nas margens do Alto Paraíba.

Acima de tudo, quero deixar claras aqui duas questões, a primeira diz respeito ao quanto os camponeses no meio da Caatinga, na terra seca e desertada dos antigos Cariri Velhos da Paraíba, possuem espírito de coletividade em suas veias. Lá as terras são divididas de forma diferente, chega até ser incompreensível para quem olha de fora, pois se estreita nas margens do rio e vai alargando a partir do momento que se distancia do rio. Essa forma de divisão de terras não existe nas estruturas agrárias burocráticas do Estado brasileiro. Pelo contrário, como descreveu o geógrafo Manuel Correia de Andrade (2011, 198, grifo meu), os latifundiários locais ou aquele de novo tipo — o agronegócio — concentram as terras “à margem ou nas proximidades dos grandes rios […]. É a extensão que possui à beira-rio, na várzea, que indica o seu valor, sendo as terras das Caatingas quase sempre desvalorizadas”.

Os camponeses, também, sempre estiveram nessas margens, mas, diferente do latifúndio, em sua grande maioria não são proprietários de direito, apenas posseiros. Ou seja, são proprietários de fato, sendo assim, criaram uma divisão democrática e coletiva e se fizeram camponeses nas terras ribeirinhas da Bacia do Alto Paraíba, com o seguinte lema: “todos precisam ter acesso à terra molhada do Paraíba”. 

Não aconteciam grandes coisas por aquelas bandas, pelo fato de as terras serem completamente desvalorizadas devido às estiagens na região e à característica intermitente do Rio Paraíba. Com a chegada da água da transposição através do (Eixo-Leste), tudo muda.

Agora, entra a segunda questão que quero chamar atenção aqui. O quanto uma pesquisa científica pode servir de instrumento social de alerta para as comunidades rurais de camponeses saberem do risco eminente de perda da terra e da água, para o latifúndio local e capital agrário. E esse fato foi tratado na pesquisa de mestrado publicada em livro, com o título “A RENDA FUNDIÁRIA NA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO”. O livro mostra como a obra da transposição se encontra desviada das suas finalidades originais. Sempre propagandeadas pela mídia e governo como a salvação da seca no Semiárido Nordestino. Se inicialmente, as águas seriam para abastecer as populações historicamente afetadas pelas graves secas que se abatem sobre a região. Com a transposição via canal aberto e deságue nos grandes rios do Nordeste Setentrional (Rio Paraíba, Apodi, Jaguaribe e Piranha-Açu), as famílias camponesas arriscam continuar sem água e agora também perderem suas terras.

As propagandas ao entorno da transposição do Rio São Francisco sempre colocaram o campesinato como beneficiado. Os fatos concretos mostram que as condições impostas são propicias para a instalação do grande capital agrário na região. Para assegurar a regularização do abastecimento hídrico de Campina Grande, as águas poderiam ser canalizadas do Rio São Francisco para o açude de Boqueirão por tubulação. A opção por fazer a transposição no canal Eixo-Leste, aproveitando o leito do Rio Paraíba, provoca outros resultados econômicos que não estão apresentados no Projeto. Um efeito econômico muito mais amplo, pois, como não se trata de uma água tubulada, mas da utilização do leito de um rio antes intermitente, a transposição implicou em um aumento da fertilidade potencial dos terrenos localizados nas margens do Alto Paraíba e da valorização da terra. Portanto, está é a principal contradição do projeto da transposição do Rio São Francisco.    

Devido a essa valorização, a principal conclusão da pesquisa é que, dada as implicações econômicas subjacentes ao projeto da transposição, os camponeses ribeirinhos do Alto Paraíba estão em sério risco de perder suas posses para o grande capital agrícola, irmanado aos latifundiários locais. Esse é um iminente risco social para essas massas, e a transposição, que era um sonho, tem grandes chances de se tornar um grande pesadelo. À sua maneira, esses camponeses já têm consciência deste risco e, seguramente, saberão lutar para resistir e defender seus direitos econômicos e sociais

Digo isso com base na realidade concreta da região e por saber da resistência histórica dessa classe em permanecer na estrutura agrária brasileira, apesar do peso sobre os seus ombros, não deixam as suas terras por nada. Sempre aprenderemos com os tropeços e descaminhos da luta. 

Pois, bem, não passaram muitos anos desde 2019, quando defendi a dissertação na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), da publicação do livro em 2021. Para o mês de dezembro de 2023, quando os primeiros camponeses começaram a receber as primeiras escrituras públicas de terras em um novo modelo de reordenamento agrário no Cariri Oriental, no município de São Domingos do Cariri–PB. A vitória é para os camponeses do Alto Paraíba, que coletivamente se uniram pela titulação das suas terras. A união dos camponeses fez com que o sonho de muitos se tornasse realidade. E o processo avança pela titulação das terras na região, tendo o seguinte lema: “UNIR todos os camponeses do Alto Paraíba. Na luta pela titulação. União Camponesa é bala de canhão. Avança a luta pela terra e titulação. Viva a luta pela terra, água e liberdade!” 

Desse modo, nasceu desse processo a União Camponesa, em defesa da “luta pela reivindicação justa e necessária do reconhecimento do domínio das terras dos camponeses do jeito que elas são.” Assim, ficam as terras da forma como sempre foram. Os camponeses escrevem novas páginas sobre a sua permanência naquelas terras secas e desertas do Semiárido paraibano. Como ficou conhecida através da literatura de Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto. Inclusive, terras desvalorizadas que não tinham nenhum valor, para os de fora. Quando um belo dia chegou, as águas da transposição mudaram tudo. Chegou especulação do capital e gente de fora… O que os camponeses poderiam fazer? Se organizar, claro! Como sempre fizeram, se unir em busca de sobrevivência como classe, sempre negado na história do nosso país.   


Esse texto expressa a opinião autor.

Notas:

1. MELO, Maria José de. A Renda Fundiária na transposição do Rio São Francisco: uma análise da propriedade camponesa do Alto Paraíba. — 1. Ed. — Belo Horizonte: Editora Índica, 2021.

2. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 8ª edição. — São Paulo: Cortez, 2011.

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