Olga Werneck Sodré: ‘O Brasil merece ter acesso ao legado do pensamento de grande envergadura de meu pai’

Incansável na defesa da extensa e profunda obra de Nelson Werneck Sodré, Olga defendeu que "o Brasil merece ter acesso ao legado do pensamento de grande envergadura".

Olga Werneck Sodré: ‘O Brasil merece ter acesso ao legado do pensamento de grande envergadura de meu pai’

Incansável na defesa da extensa e profunda obra de Nelson Werneck Sodré, Olga defendeu que "o Brasil merece ter acesso ao legado do pensamento de grande envergadura".
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O AND entrevistou, nas últimas semanas, Olga Werneck Sodré, filha do maior historiador marxista do País, Nelson Werneck Sodré. Também com uma carreira acadêmica, Olga se empenha por décadas a difundir amplamente a obra do seu pai. Além de ter colocado em domínio público a integralidade da obra, no objetivo de divulgar as ideias fundamentais para a compreensão do Brasil, Olga se empenhou em participar e promover palestras e mesas redondas em diversas instituições durante as últimas décadas.

Em 2011, ano de centenário de Nelson Werneck Sodré, Olga participou de um grande evento promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB). No mesmo propósito, esteve também na Academia Brasileira de Letras (ABL). Em todas estas oportunidades, Olga, incansável na defesa da importância da extensa e profunda obra de Nelson Werneck Sodré, destacou sua importância: “Mostrei que a importância está no fato de meu pai ter sido inovador no método maraxista e de ter utilizado com grande criatividade para entender o que ele chamava de enigma da realidade brasileira”.

Na entrevista, Olga dá detalhes da atuação política de seu pai, até então pouco conhecida. Nelson Werneck Sodré (que, por ser militar, teve de manter secreta sua condição de membro do Partido Comunista) foi lançado à reserva, após discordar de João Goulart que, cedendo aos generais golpistas, propôs sua transferência para o Norte. Mantendo-se sempre firme em seus princípios, foi um dos primeiros que perderam os direitos políticos após o golpe de 1º de abril de 1964. Tendo sido preso, sua obra também foi perseguida pelos militares e pela acadêmia.

Confira abaixo a íntegra de entrevista com Olga Werneck Sodré:

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A Nova Democracia: Na sua percepção, qual a importância das obras de seu pai para a compreensão sobre a realidade brasileira?

Olga Werneck Sodré: Na minha opinião a obra de Nelson Werneck Sodré é de grande importância para essa compreensão. A inovação do Nelson no marxismo é porque ele não aplicava o marxismo de modo automático e esquemático. Ele foi muito influenciado por outros intelectuais como Gramsci e pelos italianos, também escreveu vários livros – que, aliás, eu ajudei a coletar o material – sobre o marxismo, fundamentos históricos, fundamentos econômicos do marxismo. Ele conhecia profundamente. Mas ele não fez disso um esquema. Ele guardava essa compreensão dos atores da história. E mostrava não apenas o contexto econômico social, mas como era o desenrolar da ação desses atores e essa questão de focalizar os atores e as ações – os atores podiam ser pessoas ou instituições – é muito importante.

E para dar um exemplo, eu ia fazer um doutorado em sociologia em Paris, com um professor que era muito renomado. Ainda é numa outra área, mas ele na época se dizia marxista. E lá fui eu, porque eu trabalhava na área da pesquisa urbana e queria fazer uma tese sobre a fusão do estado do Rio com a Guanabara. E esse professor marxista (não vou dizer o nome, para não comprometer, porque ele ainda é muito renomado aqui no Brasil), ele queria que eu explicasse isso de uma forma muito esquemática. E eu que estava acostumada com o Nelson, com a sua compreensão e tudo, fui chegando num ponto que eu não mais suportava e eu desisti desse doutorado. Então se criou um impasse, e acabei fazendo meu doutorado em Filosofia e não em Sociologia. Na época, as pessoas diziam que era um absurdo. Digo, é um absurdo, pode ser, mas eu não quero botar o meu nome num esquemazinho assim que não tem nada a ver.

Então é por isso que afirmo que o Nelson usou o marxismo para a análise da sociedade brasileira de uma maneira muito interessante. Que desvendou muitos aspectos da realidade.

AND: Pode nos falar como foi essa repercussão da obra de Nelson Werneck Sodré na academia?

OWS: É claro que os historiadores, depois da USP, começaram a criticar porque ele não fazia a bibliografia. E ele não citava, porque ele era militar e não podia citar os marxistas, então eles não compreendiam nada disso. Ele escreveu antes da criação das universidades. Então, ele nunca seguiu essas regrinhas. Isso não era a essência do que ele escrevia. Ele escrevia muito bem, é uma outra qualidade, muito importante.

Ele tinha realmente um conhecimento também cultural da língua e da realidade brasileira, pois pelo exército viajou pelo Brasil todo. Ele usava documentos que os outros não tinham acesso, documentos do exército. De modo que a obra dele, realmente, é de grande importância. Eu acho que é um tesouro, um tesouro da realidade brasileira, do pensamento. É raro um pensador marxista desta qualidade. Uma pessoa que escreveu 60 livros (fora artigos, inúmeros artigos). Está tudo na Biblioteca Nacional. Eu coloquei tudo em domínio público. Porque eu acho que era a vontade dele, porque eu acho que é um patrimônio, é um patrimônio nacional.

AND: Poderia nos contar sobre as suas memórias das prisões que seu pai sofreu? 

OWS: Assim que houve o golpe [de 1964], meu pai, e eu também, entramos na clandestinidade, depois eu verifiquei que eu podia voltar para casa, voltei, mas ele estava na clandestinidade. A primeira prisão dele ocorreu na fazenda de uma prima dele, em São Paulo, em Fernandópolis. Eu não sei como foi. Mas aí ele foi para o Forte de Copacabana. Os militares tinham, digamos assim, muita reverência, sobretudo pela patente dele de general. O meu pai era conhecido internacionalmente, não é mesmo? E no Brasil tinha livros editados no estrangeiro. Eu sei que ele sempre conviveu cordialmente com os colegas mesmo da direita.

Desde o início, ele esteve entre os dez primeiros que perderam os direitos políticos e foram cassados. É claro que ele foi bastante perseguido. Mas digamos que ele estava já na reforma. Eu sei que ele foi preso primeiro no Forte de Copacabana e minha mãe e eu íamos visitá-lo. Ela que ficava mais tempo com ele. Depois, ele saiu dessa prisão, foi para casa. E lá ficavam [os militares] todo o tempo, não só fazendo os inquéritos, contra as obras dele, mas também dizendo na imprensa que ele seria preso novamente. Ele estava tranquilo. Ele era um homem que enfrentava isso de uma maneira muito tranquila, porque estava mais ou menos preparado. E eu, que não era radical (eu me revoltava contra tudo, mas, digamos assim, não era a esquerda neste sentido que se diz mais radical, mais esquerdista). Mas aí ele falou “pode vir, deixei a malinha pronta”.

E finalmente, eles vieram. Aí já era na casa dele, em Botafogo e por acaso, nesse dia eu estava lá de noite. Eles vieram com um grupo grande, de militares. Aí vieram para prender, e minha mãe abriu a porta e eles entraram e anunciaram que ele estava preso. Ele perguntou, onde está o general para me prender? Tem de cumprir as regras, não é? Para prender um general, só pode ser com outro general. Bom, esperaram chegar o outro general. E minha mãe até ofereceu cafezinho. Eu fiquei furiosa com essa história do cafezinho. Eu falei, “não, nada para eles”. A minha mãe dizia, “mas tem que ser cortês, minha filha”. Eles ficaram lá, meu pai mudo, eu também, olhando enfezada, e minha mãe, servindo cafezinho. Aí chegou o general. E ele falou assim: “Vocês têm a escolha. Podem me arrastar, mas sem cumprir a regra do exército, não vou sair daqui de bom modo não”. Aí chegou o general, levou ele então para Santa Cruz.

E lá, o comandante era “amigo” dele – quer dizer, foi aluno dele – então tratava com toda a deferência. Foi lá, que o general perguntou para ele: “Meu general, em que posso lhe ser útil?”. E Nelson disse: “Olha, você dar a minha liberdade você não pode, é o que eu quero. Então me faça um favor, que eu tenho o deputado Neiva Moreira [político trabalhista do Maranhão], que está com pneumonia na masmorra, o senhor, ponha ele num lugar para ele não vir a falecer aqui”. 

E Nelson ficou preso, mas bem tratado. Essa condição de general o protegia de uma certa maneira. E quando se aproximou o momento do AI-5, ele quis que eu saísse do Brasil, que fosse estudar. “Eu quero que você pegue essa bolsa que ofereceram, você vai para o estrangeiro aqui, vai ficar muito perigoso”. Mas ele não foi mais preso, mas tinha que responder a todos os inquéritos e tudo.

E nos inquéritos militares, um pesquisador trouxe um para mim em que um milico que fazia o questionamento ao meu pai, comentou um parecer dele: “Ele é um homem muito afável, muito interessante, muito culto, mas ele tem uma ideia fixa do Socialismo, da justiça social, e ele tem essa ideia fixa”. Não era uma ideia fixa, era realmente uma coisa no qual ele acreditava profundamente, na qual ele dedicou a vida dele para isso.

AND: Como foram os tempos durante o Regime Militar, principalmente para seu pai?

OWS: Uma vez, eu estava na casa do meu pai, de passagem, estava visitando. Eu ia sempre lá, na realidade, depois do trabalho. Eu trabalhava em Botafogo e eu passava lá. E foi antes do golpe. Um pouco antes do golpe. Ia descendo a escada e me sentei para ouvir: ele estava no telefone conversando e estava bravo, sabe, ele nunca ficava bravo. Eu estranhei, ele era muito calmo, que eu estranhei mesmo. Mas estava falando com alguém do outro lado, que de jeito nenhum ele ia pro Amazonas, quando falou: “Avise com o presidente Jango que ele está desmontando o esquema militar de defesa dele e que se ele tirar todos os militares legalistas e mandá-los para longe, os golpistas vão dar um golpe. É tão simples assim”. “Diga para ele que eu vou para a reserva e não vou para o Amazonas”. E foi assim que ele foi para a reserva. Então, há uma série de fatores, isso não é muito divulgado, né? As pessoas têm mais interesse em botar a culpa, aqui e acolá, mas, na realidade é uma política de conciliação que o Jango levou e essa política de conciliar com a direita, os golpistas não é boa. Tanto assim que ele escancarou as portas aos golpistas.

E depois do golpe, eu já estava lá em Paris, o Raul Ryff, que era o assessor em questão, estava transmitindo para o meu pai a notícia que o Jango ia mandar ele pro Amazonas, e meu pai tinha dito que não, que ele já tinha ido exilado para o Sul e que agora para o Norte, ele não ia. E, então, foi para a reserva. Em seguida, aconteceram todas as coisas que já se sabe, do golpe, o AI-5 e tudo. E o Raul Ryff, que era o assessor que tinha transmitido a notícia, foi para Paris com a família, exilado. E nos tornamos muito amigos. Tivemos uma ocasião de conversar sobre isso e ele me dizia que meu pai tinha toda a razão que tinha sido um erro estratégico, fundamental.

Foram terríveis os tempos daquela época do governo militar. Do golpe, do regime militar golpista. Foi uma época sufocante. Não só ver meu pai perseguido, os livros apreendidos, a falta de condições de diálogo, de livre expressão do pensamento. É insuportável. Além disso, havia um clima de morte. A gente sabendo das pessoas mortas e torturadas. Eu perdi muitos amigos. Mesmo não tão próximos, mas pessoas que eu sabia que combatiam pelo Brasil, que eram bons nacionalistas, queriam o bem do povo.

Meu pai era muito forte e resistiu escrevendo. A gente pode dar os dados, mas isso não conta o sofrimento todo vivido. Vivido não só por aqueles que morreram e foram torturados, mas aqueles que viviam espezinhados porque tinham ideias, queriam coisas boas para o Brasil.

AND: Quais são as suas memórias mais marcantes durante o tempo que conviveu com seu pai?

OWS: As minhas memórias mais marcantes dessa época. É uma memória de grande alegria, de grande esperança no Brasil. De participação intensa de vários setores da sociedade, de muito debate, de muita reflexão. De vontade de mudar as coisas. A casa do meu pai era muito animada por essas discussões, esses debates e vinha gente de todo tipo consultá-lo. E ele era um homem que criou lá em casa um ambiente também democrático. A minha mãe gostava muito do Brizola porque moramos no sul. Era brizolista. Meu pai escutava, respeitava todas as opiniões e a gente debatia muito em casa também. Minha mãe vinha de uma família italiana muito alegre, meu pai aderiu a essa família, ele gostava muito. Ele lia todos os livros marxistas em italiano, que ele era muito ligado à escola italiana. Então, era um ambiente muito excepcional.

E tudo isso foi dilacerado com o golpe. Dispersado, destruído, pisado. Então, a memória mais fantástica são as memórias do homem que ele era, de como combatia, das pessoas que ele conseguia reunir em torno dele e que cativa. Ele cativava as pessoas. Mesmo os opositores o admiravam. Então, as minhas memórias são um contraste muito grande com esse período da ditadura e mesmo com esse período agora. Nós não temos mais esse clima de reflexão. Vivemos um momento de grande alienação. E também de decadência da civilização, do humanismo de tudo. No mundo inteiro. Eu participei ativamente de 1968 na França. O clima em todo o mundo era diferente. E ele sempre ligado em tudo isso, sempre participando, até mesmo aos 87, quando ele faleceu. É uma memória fantástica que eu tenho dele, de toda a minha família. Era muito alegre em casa, muita, muita confusão.

AND: Para além do intelectual de peso que seu pai foi, quem era Nelson Werneck Sodré, quais interesses ele tinha e o que o movia?

OWS: Era uma pessoa extraordinária. Eu costumo dizer que não se fabricam mais pessoas como Nelson Werneck Sodré. Porque a gente olha esses políticos corruptos e cada um pensando no poder, no dinheiro. E ele não era nada assim. Ele era muito humilde. Ele era uma pessoa que tratava todos de modo muito afável. E tinha uma vida muito disciplinada. Ele dizia que se dedicava à escrita e à família. Ele era um homem que amava muito a minha mãe todos os dias. Depois do jantar, eles passeavam na rua Dona Mariana, de mãos dadas.

Ele se dedicou muito à minha educação. Me levava nessas reuniões políticas. Uma vez eu me lembro que foi uma reunião com muitos militares, não era uma coisa assim muito aberta. Eu sei que eles disseram “Nelson, você trouxe essa menina?”. Eu era ainda pré adolescente. Aí ele falou assim, “ela é de toda a confiança”. Ele respeitava muito as crianças e as mulheres. E ele não tinha essa visão fechada sobre que o pessoal tem hoje em dia sobre, por exemplo, mesmo os marxistas atuais que me colocam para escanteio, porque eu sou católica. E os católicos dizem que eu sou comunista. Até o papa eles agora dizem que o papa também é comunista. A relação dele com o mundo não era assim. Ele combatia ideias se a pessoa era reacionária, se era um católico muito reacionário, a criticava e ria. Mas quando a pessoa era uma pessoa autênticamente boa, ele tinha aquelas ações muito afáveis, com todo tipo de pensador.

Então ele era muito aberto, uma pessoa muito aberta. Agora ele era muito disciplinado, né? Ele dizia que as pessoas que querem defender o povo devem ser como monges. Ele era muito austero nesse sentido. Ele não passava da linha, né? E quando a minha mãe queria que ele, por ter bastante prestígio, me arrumasse emprego assim que eu comecei a trabalhar, ele falou “não, ela tem que se virar por ela mesmo eu não gosto dessa coisa de pistolão, nada disso”. Então ele era realmente muito estrito na ética, na cordialidade, no humanismo. Ele era muito humanista, não é? Isto se perdeu muito. E ele não tinha essas viseiras, assim não ficava descartando as pessoas, tinha um diálogo com todos. E é o que é o que hoje em dia não se faz.

Então, às vezes, os intelectuais cariocas (que eram e tinham uma vida boêmia, a chamada esquerda festiva), ficavam danados, porque marcavam reunião, chegavam lá nas reuniões, na minha casa, já passado do horário, e ele não recebia mais. Era muito estrito nisso. É porque ele dedicava todo o tempo dele ao trabalho e à família e às reuniões sérias. Ele não gostava de blá blá blá. Então, quando era essa cena nas reuniões, ele reclamava que não se cumpria horário. Ele não gostava disso. Ele era sério nessas coisas. Mas ele tinha razão, é um absurdo, não é você marcar e dizer uma falta de respeito com o próximo. Você marca e deixa o outro plantado lá. Então eles não entendiam, eles pensavam que ele era uma pessoa bem fechada e tudo, mas não era fechado, não.

Para se ter ideia, quando eu estava morando em Paris, ele foi num Congresso de escritores da União Soviética. E quando eles voltaram, a gente se reunia no hotel, eu levava pão francês com com queijo e vinho e ficávamos batendo papinho. E a minha mãe disse: “Minha filha, você não imagina que o seu pai aprontou lá na União Soviética. Primeiro, ele não comia a comida que ofereciam, dizia que era muito gordurosa. Não podia comer. Ele só queria comer sanduíche”. Depois chegou um dia em que ele se rebelou contra a reunião e abandonou a reunião e disse que não ia mais participar. E ele disse: “Olha, não vim aqui para saber que Lênin era genial, que a revolução soviética foi uma maravilha. Isso eu já sabia. Eu quero falar dos problemas latino-americanos”. Aí passou um tempo sem ir a reunião até que convenceram ele de voltar.

Então ele não era assim, digamos, fechado, era muito democrata. Era democrata no trato, na política. Ele acreditava que o caminho brasileiro seria próprio do Brasil, uma revolução democrática. E isso custou para ele muito porque, quando houve o golpe, ele foi muito criticado mesmo pelos companheiros porque  atribuíam a ele o fato dos comunistas não terem se preparado para o golpe. De modo que ele defendia realmente um caminho democrático, o que era diferente de outras tendências, por isso ele foi execrado depois até pelos companheiros, mas ele nunca, nunca, nunca abandonou a ideia de uma revolução socialista, democrática.

Ele sempre foi até o final materialista, ele respeitava a espiritualidade, tinha um diálogo muito profundo, mas ele era materialista. Um filme que ele gostava muito era Dom Camilo, que é a história de um padre e de um comunista que ficaram muito amigos, e ele tinha amigos assim. Mas ele foi até o final muito, muito fiel às ideias dele.

Quando eu voltei ao Brasil, eu fui fazer um mestrado em Psicologia, tive que refazer tudo o que eu já fiz. Eu já era psicóloga na França, já ensinava na Sorbonne, mas aqui eu tive que fazer tudo de novo. Mas resolvi aceitar a regra. E participava da pastoral universitária um padre que dirigia, um espanhol, o padre Javier, que pediu para convidar meu pai. Ele foi num círculo de estudantes universitários católicos, não da pastoral, para uma conversa. Os estudantes e o padre ficaram encantados que ele é muito brincalhão, cordial, humilde. Então o padre perguntou assim: “Meu general, meu professor, o senhor não ora?” Aí ele falou: “A Olga não me ensinou”. Era uma brincadeira comigo, né? Eu falei “não padre, ele medita todo dia, ensinei meditação. Ele gosta de meditar todo dia, ele medita para descansar do trabalho intelectual”. Contei que ele ia lá na igreja do Bom Jesus, em Itu, que é o sacrário do Coração de Jesus, criado pelos Jesuítas: “Ele vai lá e fica meditando com a minha mãe”. Aí o meu pai disse: “não, eu gosto do silêncio, eu saio de lá, renovado, descansado, gosto do silêncio”, e o padre disse: “Ma professor, isso é o ápice da oração, o silêncio”. E rimos todos.

As pessoas aqui em Itu mesmo e gostavam muito dele. Olha que é um meio muito conservador, mas até hoje falam dele com carinho. Ele tinha uma vida muito simples, mas era uma vida muito cheia, muito interessante. Ele gostava de escrever, ele gostava de música. Ele escrevia com música. Desde criança, ele tomava conta de mim. E quando a minha mãe ia fazer as coisas dela, ele ficava tomando conta de mim. Eu gostava, ia lá pro escritório, ficava em silêncio, desenhando só para estar junto dele. Escutava aquelas músicas e ele ia batendo a máquina muito rápido, pensamento muito veloz. E eu ficava lá com ele. Então, desde pequenininha, ele me ensinava as coisas. Eu perguntava questões assim que eu questionava muito sobre o universo, sobre o espaço. Eu gostava muito das coisas cósmicas. Eu perguntava, ele dialogava e às vezes eu fazia mais questões, questionava o materialismo dele. Mas ele sempre me tratou com muita consideração. Uma vez em uma reunião em São Paulo, não era uma reunião aberta, era só com militares, ele me levou porque ele estava tomando conta de mim nesse dia. Eu estava chegando na pré-adolescência. Mas era ainda uma menina.

AND: O que te moveu a levar para frente as obras de seu pai e trabalhar na sua difusão?

OWS: O que me levou a essa luta por manter viva a obra dele foi o valor que eu atribuo a essa obra.  E também a grande amizade que existia entre nós, assim como ele aceitou o meu caminho espiritual e nos mantivemos muito unidos e eu respeitando o pensamento dele. E tudo o que ele fez por mim merecia um retorno. E também eu acho que o Brasil merece ter esse legado, de um pensador da envergadura dele. Merece o Brasil, sobretudo agora, em meio de tanta alienação. É importante esse esclarecimento histórico. 

Mesmo estando em uma outra caminhada, eu tive que abrir um parêntese nela para lutar pela obra do meu pai. Aqui então em São Paulo, em Itu, que é meio conservador,  as pessoas chegam a dizer que já estamos num regime comunista com Lula! Imagine! Eu sou contra essas ideias idiotas, mas tenho esperança, por isso continuo escrevendo, não é na esperança de ver se muda alguma coisa na cabecinha. Então é isso. Por isso é que eu acho que inclusive a obra dele é muito mais importante do que a minha. É um Tesouro para o Brasil. Como é que vamos deixar esse tesouro desaparecer, não pode.

Confira também o Programa A Propósito sobre o livro ‘Governo Militar Secreto’ de Nelson Werneck Sodré:

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