As tragédias cotidianas, aflições do povo e a PPI praticada pela Petrobrás
No semestre final da gerência do fascista Bolsonaro, vários veículos do monopólio de imprensa noticiaram os acidentes domésticos que vitimaram (alguns de forma fatal) várias trabalhadoras e trabalhadores que utilizavam combustíveis, principalmente álcool, em substituição ao gás de cozinha/gás liquefeito de petróleo (GLP) na cocção de alimentos [1, 2, 3]. O uso pelas classes trabalhadoras de combustíveis alternativos para o preparo de alimentos se deveu ao aumento do preço médio do botijão de GLP que, entre março de 2020 a setembro de 2022, saltou de R$ 69,74 para R$ 112,37 [4]. Isso correspondeu a um aumento de 61,13% no preço do combustível que é utilizado por mais de 91% das famílias brasileiras [5].
O aumento abusivo dos combustíveis derivados de petróleo como o GLP, a gasolina e o diesel foi resultado da Política dos Preços Paritários de Importação (PPI) implantada desde outubro de 2016 pela direção da Petrobrás. De acordo com a PPI os preços dos derivados do petróleo produzidos nas refinarias da Petrobrás são calculados como se esses combustíveis tivessem sido importados. Os resultados são: (i) a entrega de 30% do mercado brasileiro para multinacionais devido a falta de competitividade da Petrobrás; (ii) diminuição do processamento de petróleo e produção de seus derivados e consequente aumento da ociosidade das refinarias da “estatal” brasileira; (iii) elevação da exportação de óleo cru.
Para justificar esse verdadeiro crime lesa-pátria os serviçais do imperialismo inventaram mil mentiras, seguindo a máxima fascista de Goebbels. Diziam que o petróleo brasileiro é incompatível com o parque de refino nacional, o que justificaria a importação de petróleo bruto, daí a necessidade da PPI. Todavia as refinarias da Petrobrás processaram 92% do óleo cru produzido no país em 2021. Aventaram a possibilidade de desabastecimento argumentando a falta de capacidade das refinarias para atender o mercado interno e a necessidade de importação, entretanto desde a fundação da Petrobrás, em 1953, não se tem notícia de desabastecimento. A farsa continuou ao citarem os prejuízos entre 2011 e 2014 devido a prática de preços inferiores aos de importação que quebraram a “estatal”. Mas durante a maior parte de sua história a Petrobrás praticou preços inferiores aos de importação e nunca quebrou, ao contrário sempre contou com reservas de caixa superiores às das transnacionais petrolíferas. A provocação tem continuidade com o argumento de que a Petrobrás tem que maximizar seu lucro, o que escancara toda a putrefação desse Estado provando que a “constituição cidadã” de 1988 é letra morta. O artigo 173 da “carta magna” que prevê a exploração direta de atividade econômica pelo Estado diz em seu parágrafo 4o que será reprimido o aumento arbitrário dos lucros. Os tecnocratas da Petrobrás na maior cara de pau ainda citam o monopólio do refino do petróleo no Brasil que seria exercido pela empresa. Mas a Lei 9.478/1997 assinada pelo vende-pátria Fernando Henrique Cardoso estabeleceu “o petróleo agora é vosso” – leia-se das multinacionais do setor [6].
Durante a farsa eleitoral, a chapa Lula/Alckmin prometeu pôr fim à PPI. Em 16 de maio de 2023 Jean Paul Prates, indicado por Luiz Inácio para “presidir” a Petrobrás, anunciou a nova estratégia da companhia para definir o preços dos combustíveis. É importante notar que o oportunismo lacaio do imperialismo não utilizou a palavra fim da PPI nessa suposta “nova estratégia”. Esse sofisma é a constatação do caráter demagógico e fraudulento dessa “mudança”.
De acordo com o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), Felipe Coutinho, a atual gerência de Luiz Inácio pratica a mesmíssima política de Temer e Bolsonaro vinculando os preços praticados no Brasil com os preços no exterior. Não houve nenhuma redução que mudasse substancialmente o que o povo brasileiro paga pelos combustíveis [7].
O sistema energético adotado no país e a situação na qual se encontra a Petrobrás refletem o caráter semicolonial do Estado brasileiro. As tragédias cotidianas que assolam o nosso povo, incluindo a crise energética reforça a necessidade de uma ruptura com o sistema energético vigente.
Sistemas energéticos
A relação entre o homem e a natureza passa irremediavelmente pelos sistemas energéticos. A energia faz parte dos fundamentos de toda sociedade. As mudanças nas matrizes energéticas ao longo da história geralmente se deram sob o aguilhão da penúria, do bloqueio e também do desmoronamento de sistemas energéticos anteriores. Nenhuma sociedade conseguiu escapar das restrições causadas por uma crise de energia e atualmente, por mais desenvolvida que seja, uma sociedade não passa ilesa à essas restrições. A crise energética que o mundo atravessa, com as guerras, injustiças, tragédias e sofrimentos a ela relacionados, é mais um aspecto da crise global de nosso tempo. Uma gestão mundial da energia não é possível nos marcos do capitalismo, pois esse modo de produção não é capaz de gerar desenvolvimento antes sim um impasse histórico: universalização de seu sistema energético sem universalizar o modo de consumo característico dos países imperialistas, nem mitigar os impactos ambientais por ele gerado.
Alternativas ao petróleo
De acordo com Hémery, Debier e Deléage em sua obra Uma História da Energia [8], as crises mundiais do petróleo de 1973 e 1979 que desmoronou o sistema energético capitalista, ofereceram uma oportunidade ímpar para os países oprimidos pelo imperialismo criarem um novo sistema energético baseado em energias renováveis, principalmente a biomassa. Apesar de iniciativas como o Pró-Álcool no Brasil, no geral, devido a herança e a mentalidade colonial impregnada nestes países a biomassa foi excluída dos planos energéticos por ser considerada uma alternativa ultrapassada, subdesenvolvida e sem perspectivas.
Diferentemente dos combustíveis fósseis, a produção da energia a partir da biomassa e sua utilização é distribuída sobre o território e descentralizada com a valorização estratégica da terra como fator de produção. Promove a redução da dependência externa em nível nacional e regional com a criação de empregos e valorização do trabalho no campo favorecendo o meio rural e as empresas de caráter local em relação aos centros urbanos e ao grande capital [8]. A energia da biomassa embora utilize inicialmente tecnologias simples e mão-de-obra pouco qualificada não conduz necessariamente ao imobilismo tecnológico e social. O desafio tecnológico se apresenta como necessidade implicando na melhoria dos rendimentos energéticos e na produtividade do trabalho proporcionando um desenvolvimento industrial auto-sustentado, demandando mão-de-obra mais qualificada e valorizada.
A subserviência nos planos econômico, social e cultural às nações imperialistas impede que esse debate seja realizado. A alienação nos meios universitários e técnico-científicos não permite o estudo e a compreensão da realidade que nos rodeia e a proposição de modelos de desenvolvimento para resolução dos problemas nacionais.
Lenha
Considerando a dificuldade enfrentada pelo nosso povo para aquisição de combustível para preparar seus alimentos, é necessário se falar da lenha. Importante deixar claro que ao abordar esse combustível não se está defendendo as condições degradantes e prejudiciais à saúde humana que o uso da lenha pode ocasionar, mas sim a sua utilização considerando o desenvolvimento de tecnologias que tornaram o seu uso seguro e saudável. Os fogões a lenha modernos podem ser mais eficientes e seguros que os que utilizam GLP [9].
Em 1970, a lenha era o principal combustível utilizado no Brasil sendo responsável por cerca de 48% da produção primária de energia [10, 11]. Em 2021 esse valor foi de 7,8% [12]. A política do Estado brasileiro sempre foi a de promover a substituição da lenha pelos combustíveis derivados do petróleo e a eletricidade. Ocorreu o desaparecimento do fogão a lenha nos centros urbanos e uma redução drástica de seu uso no campo devido a concorrência desleal com os fogões a gás. Essa situação tem origem na dificuldade de abastecimento de lenha e da imposição cultural estrangeira que tornou o fogão a gás um símbolo de status social e modernidade. Nenhum argumento técnico ou econômico fundamenta a substituição da lenha pelo GLP, mas sim a justificativa de lucro aumentando a dependência do campo em relação aos centros urbanos e suas redes comerciais e energéticas centralizadas com a consequente transferência de renda dos camponeses para os grandes empresários e multinacionais. A queda no consumo de lenha no Brasil, principalmente no setor residencial, representa abandonar uma fonte de energia estratégica, abundante e acessível, integrada ao quadro físico e social do país, exigindo menos investimentos e com custos de produção mais baixos, para se enveredar pelo caminho da dependência e da energia cara.
Biogás
Uma outra fonte de energia renovável que poderia ser utilizada para atender a demanda do povo brasileiro para cocção de alimentos é o biogás, obtido a partir da decomposição de matéria orgânica por microrganismos num processo denominado digestão anaeróbica que ocorre dentro de câmaras fechadas (biodigestores). O biogás é uma mistura de gases em que o principal é o metano (inflamável) podendo ser utilizado para geração de energia térmica (calor), mecânica (incluindo veicular) e elétrica. O potencial de produção de biogás do Brasil é da ordem de 83 bilhões de metros cúbicos por ano. Esse potencial poderia suprir 40% da demanda nacional de energia elétrica e 70% do consumo brasileiro de óleo diesel [13]. Fala-se aqui de energia gerada a partir de resíduos agropecuários (dejetos de animais, restos de culturas agrícolas), agroindustriais e esgoto urbano. No entanto o país explora somente 2% do seu potencial de biogás por meio de 675 usinas. Para comparar a Alemanha, com área próxima ao estado do Mato Grosso do Sul, possui cerca de 10.000 usinas de biogás instaladas em seu território.
Além de representar a independência energética de famílias e comunidades, o biogás contribui para a emancipação feminina – levando em consideração que são as mulheres na maioria dos lares, que preparam o alimento. A redução de esforços e tempo gasto na coleta de combustível poderia ser empregado em atividades sociais e comunitárias, bem como nos estudos [14].
A digestão anaeróbica também produz o biofertilizante que consiste no material remanescente nos biodigestores com alto teor de macro e micronutrientes com grande potencial agronômico. O biofertilizante pode colaborar para diminuir a importação de adubo químico e reduzir o preço dos alimentos.
Mas a pergunta que não quer calar é a seguinte: como tornar o biogás uma realidade no Brasil?
Hoje a visão hegemônica no setor do biogás brasileiro é de que o biocombustível deve ser regulado pelo mercado. Seguem o mesmo modelo do sistema energético do petróleo mais intensivo em capital, equipamentos e tecnologia e menos intensivo em trabalho. Esse, definitivamente, não é o caminho.
O estabelecimento de um sistema energético que sirva plenamente às necessidades do povo, passa necessariamente pelo estabelecimento de políticas de Estado. O caso do biogás na China é um bom exemplo. Durante o Grande Salto Adiante (1958-1960), o Presidente Mao TseTung declarou que o biogás deveria ser popularizado em todo o país [15]. Atualmente a China, apesar de ter abandonado o rumo socialista em 1976, ainda possui mais de 25 milhões de casas utilizando biogás, principalmente nas províncias de Sichuan, Yunnan e Guangxi [16].
Presidente Mao Tsetung assiste a uma demonstração de um fogão a biogás em 1958 [17]
No mundo financeiro, entre os tecnocratas de empresas como a Petrobrás e BNDES e na classe dominante brasileira a oposição a um programa de energia da biomassa é quase unânime. É no plano do combate político que deve se situar a discussão sobre a energia da biomassa. Os desafios para a ruptura são mais políticos e sociais que científicos e tecnológicos.
A crise energética não tem solução nos marcos do capitalismo. O caminho é o da revolução de Nova Democracia ininterrupta ao Socialismo com a mobilização e organização das classes trabalhadoras para estabelecer o novo sistema energético que empregue a força de trabalho humano independente das leis de acumulação do capital.
Referências:
[4] https://www.sindigas.org.br/?page_id=3020
[5] https://www.sindigas.org.br/Download/PANORAMAS/NOVO%20GLP%20EM%20MOVIMENTO_MAIO_2022.pdf
[8] HÉMERY, Daniel; DEBIER, Jean-Claude; DELÉAGE, Jean-Paul. Uma história da Energia.
Brasília: Editora UnB, 1993.
[9] Fogão a lenha sem fumaça http://arquivo.ufv.br/dea/ambiagro/arquivos/Lenha.pdf
[10] https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=467547642003
[12] Balanço Energético Nacional – Empresa de Pesquisa Energética – 2022 – Ano Base 2021 https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-675/topico-638/BEN2022.pdf
[13] https://cibiogas.org/blog/pequenos-produtores-ajudam-a-impulsionar-o-mercado-do-biogas/
[14] LIBAISI, Judith; NJENGA, Mary. Biogas as a Smart Investment for Women’s Empowerment and Livelihood Enhancement. Recovering. Bioenergy in Sub-Saharan Africa: Gender Dimensions, Lessons and Challenges. Nairobi: Kenya, 2018. p. 33-38.
[15] https://www.ecoinflexiones.org/historias/detallados/china-biogas.html
[16] https://link.springer.com/article/10.1007/s12182-016-0105-6
[17] Smith, Kirk R. 2007. Methane Emission Reductions: Opportunities to Promote Health, Development, and Climate. Paper presented at the Methane to Markets Partnership Expo, Beijing, 30 October – 1 November.
Este texto reflete a opinião do autor.