Latifúndio e caminho democrático: a guerra civil americana e seus ensinamentos

Confira o artigo da colaboradora de AND Maria de Fátima SIliansky de Andreazzi acerca do problema do latifúndio e o caminho democrático

Latifúndio e caminho democrático: a guerra civil americana e seus ensinamentos

Confira o artigo da colaboradora de AND Maria de Fátima SIliansky de Andreazzi acerca do problema do latifúndio e o caminho democrático
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Ninguém pode negar que o terceiro governo Lula é um governo em permanente crise, no qual há pressões de todos aos grupos políticos que procuram benefícios e salvações diante da profunda crise do capitalismo burocrático. A grande burguesia cobra dívidas de campanha; o latifúndio, subsídios fiscais e perdão de dívidas; e os setores bolsonaristas, dentro e fora do Congresso, chantageiam Lula com ameaças de golpe para manter suas emendas parlamentares e outras benesses. O imperialismo pressiona por seus interesses do pagamento da dívida e de que os projetos do PAC o contemplem. Trabalhadores insatisfeitos, em particular, servidores públicos. querem a busca de reposição salarial, mas a aristocracia operária, base do governo, procura colocar água fria no ânimo das massas para lutar. O argumento mais recorrente que justifica muita gente a aconselhar a resignação de vastos setores das classes dominadas à luta por direitos é a ameaça de impeachment, como uma espada de Dâmocles pendurada na cabeça de Lula. Paralisia, impotência, desmobilização do movimento popular, salva-nos do golpe?

Tomemos a história dos EUA no século XIX.

Os EUA saíram da guerra de Independência no final do século XVIII com duas economias bem diferenciadas: no Sul havia uma economia de plantation (latifúndio monocultor voltado para exportação baseado no trabalho escravo) que, com a independência política, se transforma de economia colonial em semicolonial, mantendo relações subjugadas com a Inglaterra. Os territórios do Norte tiveram outro processo de formação:  foram colônias de povoamento de pequenos agricultores que, claro, tomaram a terra dos índios. Uma burguesia nacional aí se desenvolvia numa época em que capitalismo ainda estava em sua fase competitiva. O Oeste estava sendo disputado com a população nativa. Aí também se estabeleceram colonos, pequenos produtores agrícolas que ganharam terras do governo.

Com a independência, classes sociais que estavam provisoriamente unidas pela retirada da intermediação da Inglaterra nos seus negócios, se distanciam: os latifundiários escravistas defendiam a situação semicolonial e suas relações privilegiadas com a Inglaterra, portanto, o livre mercado e a manutenção das relações escravistas. A burguesia necessitava de proteção do mercado interno para se desenvolver e sabia que o fim da escravidão ampliaria o proletariado para ser por ela explorado.

Marx, na década de 1860, foi correspondente de jornais dos EUA na Europa e escreveu uma série de artigos sobre a Guerra Civil. Ele afirmava que a burguesia conciliou quase 80 anos com o latifúndio escravista para não se chocar com ele, pensando que ele se limitasse aos estados onde já estava antes da Independência, o que foi o compromisso da Constituição até a Guerra Civil. Seu mercado seria os tradicionais estados do Norte e o Oeste em expansão. Mas o latifúndio escravista precisava se expandir para novas terras pois sua forma predatória de cultivo esgotava rapidamente a terra. Ele começou a pressionar para ocupar o oeste onde estavam os camponeses livres, pequenos proprietários. Criou-se uma contradição aguda entre o campesinato e os latifundiários que queriam ocupar as terras da forma como o latifúndio age no Brasil até hoje: expulsão violenta e outros meios fraudulentos. Os camponeses também eram contra a escravidão nesses estados assim como o pequeno comércio que se arruinaria caso perdesse seu mercado assentado no campesinato. No Kansas, o conflito de desdobrou em guerra de guerrilhas entre camponeses livres e latifúndio escravista sobre a questão da terra e para definir a posição desse estado quanto a escravidão, no que foi conhecido como o Kansas sangrento (1854-1861). Abraham Lincoln, que conduziu o Norte na guerra civil, tem essa origem camponesa do Oeste. Essa tentativa de expansão do latifúndio foi um dos estopins da Guerra civil onde uma corrente democrática-revolucionária assentada no campesinato alcança uma hegemonia no país com Lincoln a frente, em relação à burguesia do Norte com seus representantes políticos liberais divididos em correntes mais ou menos conciliadoras que tradicionalmente ocupavam a Presidência dos EUA. A I Internacional, inclusive, manda uma saudação a Lincoln por sua postura abolicionista.

O episódio do Amistad (1841, 20 anos antes da Guerra), navio negreiro da Espanha apreendido pelos EUA em suas costas, onde teria havido uma rebelião de pessoas escravizadas, evento retratado no filme homônimo, mostra o que seria a disposição de várias classes sociais diante da contradição antagônica entre os dois modelos de desenvolvimento na situação de pré  Guerra. Por um lado, a situação semicolonial defendida pelo latifúndio, classe sempre ligada a interesses externos (na Guerra, os jornais inglese defendiam abertamente o Sul a despeito de sua posição hipócrita contra a escravidão. Por outro lado, o desenvolvimento de um capitalismo nacional que ainda estava em sua fase competitiva defendido pela burguesia nacional e as demais classes populares (mal sabiam, ainda,  os camponeses que muitos perderiam posteriormente suas terras para os bancos e empresas capitalistas através dos processos de concentração do capital). A questão envolvendo os escravizados do Amistad foi à Corte Suprema para decidir se haveria a devolução dessas pessoas para a Espanha ou sua libertação. O tema polariza a sociedade americana que se mobiliza radicalmente pelo pano de fundo do problema que era a escravidão no próprio território americano. Para defender a posição dos negros, o movimento em prol da libertação dessas pessoas acha por bem contratar um advogado famoso branco. John Quincy Adams era um congressista liberal de Massachusetts (tradicional reduto de posições da pequena burguesia democrática do Norte). Havia sido Presidente, era filho de um pioneiro da Independência.

A sua defesa no júri se torna uma peça até estudada nas escolas de ensino médio.

Depois de uma longa argumentação, em determinado momento ele diz: Devemos vencer o medo e os preconceitos e ter coragem, Há uma campanha e muitos dizem e ameaçam que a libertação dessas pessoas (escravizadas do navio Amistad) será a guerra civil (pois criará jurisprudência contra a escravidão). Que seja!. Será a última batalha da Revolução Americana.

A solução democrática da Guerra foi uma diferença fundamental entre os EUA ser ou não uma semicolônia, caminho que poderia ter trilhado caso o Sul escravocrata vencesse a guerra.

No Brasil, muitos dizem que certas medidas mínimas de interesse do povo serão motivo de impeachment.  Mas não temos liberais, muito menos social democratas do PT e adjacências da altura de Jonh Quincy Adams. Vimos, ainda, que o campesinato livre foi fundamental para empurrar a burguesia de uma posição conciliadora para uma posição democrático-revolucionária.

É claro que as classes sociais que bancarão o desenvolvimento nacional e a ruptura do projeto semicolonial não são mais as mesmas. A grande burguesia no imperialismo já não tem mais projeto autônomo e a burguesia média é fraca economicamente e politicamente vacila. Mas haverá de ter outras classes, o próprio campesinato, que dirão: se tiver luta que venha. E só ser preparar para ela.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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