100 anos de Jayme Caetano Braun: Gaúcho sem fronteiras

Por ocasião dos 100 anos do artista do povo Jayme Caetano Braun, completados no dia 30 de janeiro de 2023, republicamos a matéria da edição nº 27 de AND, de novembro de 2005, “Gaúcho sem fronteiras”, de autoria de Henrique Júdice.

100 anos de Jayme Caetano Braun: Gaúcho sem fronteiras

Por ocasião dos 100 anos do artista do povo Jayme Caetano Braun, completados no dia 30 de janeiro de 2023, republicamos a matéria da edição nº 27 de AND, de novembro de 2005, “Gaúcho sem fronteiras”, de autoria de Henrique Júdice.
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Nota da redação: Por ocasião dos 100 anos do artista do povo Jayme Caetano Braun, completados no dia 30 de janeiro de 2023, republicamos a matéria da edição nº 27 de AND, de novembro de 2005, “Gaúcho sem fronteiras”, de autoria de Henrique Júdice.


E, nesse andejar em frente
sem procurar recompensa
fui vendo — na diferença
entre passado e presente
que a lembrança de um ausente
tem mais força que a presença

Querência, tempo e ausência, de Jayme Caetano Braun.

Jayme Caetano Braun (1924-1999) nasceu em Timbaúva (hoje Bossoroca), então distrito de São Luiz Gonzaga, um dos sete povos das Missões guaranis. Filho de pai alemão e mãe índia, trazia simbolicamente na própria origem de sangue e solo a síntese da formação histórica do Rio Grande do Sul:

“Avô paterno, o lavrador colono,/ no mundo novo, perseguindo anseios;/ avô materno, o campeador de entono,/ guardião de pátria em pedestal de arreios!/ Avó paterna, a camponesa reta,/ germana ruiva de ancestrais heranças;/ avó materna, a campesina inquieta,/ amando a terra e maldizendo as lanças” —escreveu em Estirpe.

Arte, contexto, militância

Jayme torna-se poeta ao mesmo tempo que entra na vida adulta, em meados dos anos 40. Iniciava-se então, no Rio Grande do Sul como no conjunto do país, um tempo de crise e reafirmação de uma identidade ameaçada pela penetração econômica e cultural do imperialismo. O modelo latifundiário exportador esgotara suas possibilidades de manter na sociedade gaúcha um grau mínimo de coesão, a questão agrária tornava-se ineludível e a literatura refletia estas contradições. Na trilogia composta por Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1954), o romancista Cyro Martins denunciava que o gaúcho, reduzido à servidão nos latifúndios da fronteira, estava a pé, despojado que fora até de seu instrumento essencial de trabalho e guerra, o cavalo.

Paralelamente, alguns setores rurais médios ligados à oligarquia, emigrados para Porto Alegre, buscavam, face à própria decadência econômica e à crescente americanização da elite e da classe média da capital, revalorizar um passado mítico. Os valores associados à figura do gaúcho (coragem, solidariedade, honra, altivez), contudo, só poderiam ser efetivamente defendidos no bojo de um projeto de enfrentamento do imperialismo e do latifúndio. Esta tarefa coube ao trabalhismo, força política que unia pequenos e médios industriais e comerciantes, profissionais liberais, setores das forças armadas e, a partir do fim dos anos 50, camponeses com pouca ou nenhuma terra.

Jayme torna-se militante político ao mesmo tempo em que torna-se poeta. Filho da pequena burguesia do interior do estado, identifica-se com a ala esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro. Participa das campanhas de Getúlio (para a Presidência em 50), Leonel Brizola, Rui Ramos e Alberto Pasqualini. Defendia as tradições gaúchas compreendendo que a ameaça a elas vinha da penetração imperialista e que, para salvá-las, eram urgentes as reformas de base, em especial a agrária.

A questão da terra, aliás, perpassa toda sua obra. Missioneiro, tem como referência recorrente Sepé Tiaraju, o líder da resistência guarani à invasão portuguesa no século XVIII, cuja derrota é a origem ancestral do problema agrário no Rio Grande do Sul:

“Não pude deter a vaga de Andonega e Barbacena./ Se a História não os condena, a mancha nunca se apaga!/ A opressão jamais indaga na sua ambição mesquinha./ Era meu tudo o que tinha, era meu tudo o que havia,/ e eu morri porque dizia que aquela terra era minha!”, escreveu em Payada.

O que é ser gaúcho?

A defesa das raízes culturais do Rio Grande do Sul e o movimento de resistência surgido nos anos 40 têm pontos em comum com um esforço de igual natureza iniciado no Nordeste do país, na mesma época, por homens como Ariano Suassuna. Ambos os movimentos buscam preservar manifestações populares frente à invasão cultural do USA, empreendida via Rio e São Paulo através de emissoras de televisão, de rádio e gravadoras. Ambos buscam superar a cisão entre arte erudita e popular através da síntese destes elementos. E ambos nascem à margem da universidade e da imprensa, que só reconheceram sua existência pela forte repercussão social que tiveram.

O esforço de coleta e sistematização de dados sobre a cultura popular que Suassuna realizou em Pernambuco foi empreendido no Rio Grande do Sul por homens como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) que, em seus primórdios, teve uma importância análoga à do Movimento Armorial de Suassuna. Todavia, o MTG, como instituição, sofreu, ao longo dos anos, um processo de estagnação que terminou por subtrair-lhe importância. As manifestações mais vivas e autênticas da cultura do povo gaúcho deram-se no bojo do movimento, mas fora da obediência estrita a suas diretrizes.

Na realidade, toda a história do tradicionalismo gaúcho é perpassada pela contradição entre sua ala conservadora e a progressista. As duas têm em comum a valorização do passado e de alguns símbolos. Mas a maneira de compreendê-los as difere. Enquanto a vertente conservadora tende a emoldurar o passado, para a progressista o passado é história. E história viva, cheia de opressão e lutas. A primeira prende-se à defesa de imagens cristalizadas, a segunda à de princípios. Esta contradição aumenta à medida que, pela repercussão social do movimento, políticos e empresários passam, de maneira oportunista, a valer-se do sentimento de identidade do povo do Rio Grande do Sul em proveito próprio.

O próprio Jayme cantou, principalmente no início de sua carreira, a indumentária e a cozinha tradicionais do gaúcho (o mate, o arroz de carreteiro, o lenço, a faca). Mas sempre denunciou o uso indevido destes símbolos pelos opressores para confundir o povo.

“Eu pergunto: de que adianta/ plantar um pé de erva-mate,/ como sinal de combate/ em defesa de uma planta/ se a mesma mão que levanta/ nessas considerações/ é a que assina concessões/ num inconsciente floreio/ aos assassinos do meio/ que fazem devastações?”, questionou em Primavera. E em Sangue Farrapo, escrita após o golpe de 1964:

“Hoje — quer seja funcionário,
ou operário,
ou da cidade — ou da lavoura
ou do rodeio,
ante os que aviltam o trabalho
e o salário,
se me obrigarem a escolher, volto e peleio!”

Poeta e pesquisador

Poeta-repentista de gênio, intérprete dos anseios de seu povo, crítico da opressão exercida pelo latifúndio e pelo imperialismo, Jayme tem, no sul, papel equivalente ao de Patativa do Assaré no nordeste. Só diferencia-se do cearense pelo fato de, até mesmo em decorrência das condições objetivas do meio em que vivia, ter tido maior acesso à cultura erudita, mesmo que como autodidata — primeiro através do pai, professor primário, depois como diretor da Biblioteca Pública no governo Brizola. Exemplo disto é o poema Chimarrão e poesia, pontilhado de referências à poesia grega e medieval.

Jayme tinha também um sólido conhecimento de história e geografia, principalmente de sua região. As referências históricas são uma das marcas de sua obra e embasam a denúncia da opressão a que o gaúcho é submetido:

“Meu canto é rio,
meu canto é sol,
meu canto é vento,
Eu tenho pátria,
eu tenho berço,
eu tenho glória.
Eu só não tenho
terra própria
porque a história
que eu escrevi
me deserdou no testamento!”

Da terra nasceram gritos, de Jayme Caetano Braun.

Além de poeta, foi pesquisador do folclore gaúcho. Tinha especial interesse pela medicina campeira, pelos remédios à base de ervas usados pelos índios (carqueja, quebra-pedra). Chegou a escrever um livro, Vocabulário pampeano – pátrias, fogões e legendas, sobre as tradições do estado.

Esta formação não livrou-o do preconceito das elites contra a arte popular. Em resposta, escreveu os versos de Identidade:

Meia dúzia de impostores
que se arvoram folcloristas
e andam — mesmo que angolistas
ciscando nos corredores
com siglas de professores
que adotaram por decreto
me chamam de analfabeto —
aceito a definição,
mas tenho o usucapião
que me concede o dialeto!

Regional, nacional e continental

A militância cultural e política de Jayme não limitou-se às fronteiras do Rio Grande do Sul ou do Brasil. A partir dos anos 60, começa a estudar a cultura gaúcha da Argentina e do Uruguai e estreita contatos com artistas daqueles países, como o uruguaio Sandalio Santos, seu amigo.

Foi através destes contatos que encontrou a forma de expressão em que melhor se saía: a payada, arte de compor e declamar de improviso versos de rima entrelaçada, geralmente em décimas e ao som de violão. De origem ibérica, nascida na campanha uruguaia no século XIX, a payada é o equivalente gaúcho do repente nordestino. Assim como este, pode ser improvisada em dueto, em jogo de perguntas e respostas, variante denominada payada de contraponto, que equivale ao desafio dos cantadores do Nordeste. Jayme foi o primeiro e mais importante payador brasileiro.

O poeta e pesquisador Antônio Augusto Fagundes, um dos maiores conhecedores da cultura gaúcha, conta, em artigo publicado no jornal Galpão Crioulo quando da morte de Jayme, a impressão que lhe causou vê-lo se defrontar numa payada de contraponto com Sandálio Santos e o argentino Cayetano Daglio em Porto Alegre, em 1962, durante um congresso tradicionalista.

Em sua luta em defesa da identidade cultural latino-americana, Jayme homenageou em versos comoventes (Don Atahualpa) o argentino Atahualpa Yupanqui, a quem tinha como ídolo, e chegou a escrever poemas em espanhol. Para ele, não havia incoerência entre esta aproximação e sua postura de ferrenho defensor da cultura riograndense e brasileira. Afinal, argentinos e uruguaios eram povos irmãos, oprimidos pela mesma potência, contexto em que perdiam sentido rivalidades menores.

Sem deixar de valorizar o heroísmo do gaúcho e sua importância para a definição das fronteiras do Brasil nas guerras platinas do século XIX, um dos motes principais do tradicionalismo, defendia a unidade entre os povos da América do Sul, especialmente as “três pátrias gaúchas” (Brasil, Argentina, Uruguai). Os poemas de seu livro Paisagens perdidas contém inúmeras referências a manifestações culturais rioplatenses como Martín Fierro, o poema nacional argentino. No poema Tres gauchos, sintetizou este ideal:

“Hermanos de sembra y paz,/ América és tu bandera!/ ayer – hicimos frontera,/ hoy- no la queremos más.

Jayme também recebeu homenagens como esta. Em Paisagens perdidas, transcreve um poema de Sandalio Santos escrito em agradecimento por seu livro Pátrias, fogões e legendas. Mais recentemente, no Brasil, o repentista potiguar Geraldo do Norte, em seu disco Diploma de nordestino (2000), gravou um poema intitulado Tributo a Jayme Caetano Braun.

Da terra nasceram gritos

Mataram meus infinitos
e me expulsaram dos campos;
Da terra nasceram gritos,
Dos gritos brotaram cantos!


E me fiz canto
De tropeiros e ervateiros
Rasgando sulcos,
Com arado e saraquá;
Nas alpargatas dos “quileiros”
e “chibeiros”,
Andei as léguas
De Corrientes e Aceguá!


Meu canto é rio,
Meu canto é sol,
Meu canto é vento,
Eu tenho pátria,
Eu tenho berço,
Eu tenho glória,
Eu só não tenho
terra própria
Porque a história
Que eu escrevi,
Me deserdou no testamento!


De qualquer forma –
bem ou mal,
Não me emociono,
Com os que combatem
As verdades do
meu canto;
Sem ter direito de comer,
Nem o que planto,
Só não entendo,
É tanta terra
E pouco dono!


Mas mesmo assim,
Tenho pra dar,
Um outro tanto,
Se precisarem do meu sangue
Noutra guerra;
Mesmo sem terra,
Hei de voltar grito de terra,
Pelo milagre
Das espigas do meu canto

Jayme Caetano Braun nasceu em 30 de janeiro de 1924. Em 1943, começa a publicar poemas na imprensa de sua cidade natal, São Luiz Gonzaga. Quis estudar medicina, mas não pôde. Mudou-se na década de 50 para Porto Alegre, onde foi funcionário do Instituto de Pensões e Aposentadorias dos Servidores do Estado (Ipase, hoje Ipergs). Foi um dos fundadores, nos anos 50, da Estância da Poesia Crioula. No rádio, apresentou, em São Luiz, Galpão de estância, a partir de 1948, e, em Porto Alegre, Brasil Grande do Sul, nos anos 70.

Publicou oito livros de poesia: Galpão de estância (1954), De fogão em fogão (58), Potreiro de guachos (65), Bota de garrão, Brasil Grande do Sul e Paisagens perdidas (todos de 66). Em 1990, publicou a coletânea Payador e troveiro e, em 96, 50 anos de poesia, ambos coletâneas. Em 1974, lança Vocabulário Pampeano – Pátrias, fogões e legendas.

Gravou também discos de poemas declamados, entre os quais Payador, Pampa e Guitarra, de 1974, com Noel Guarany, e Êxitos 1, acompanhado pelo violão de Lúcio Yanel. Teve também inúmeros poemas musicados por Noel Guarany, Cenair Maicá e Luiz Marenco. Boa parte de sua obra, no entanto, encontra-se ainda esparsa ou inédita, e uma parte também significativa, feita de improviso em ocasiões informais, “se perdeu nas noites de galpão”, no dizer do poeta Balbino Marques da Rocha, seu amigo.

Jayme morreu em Porto Alegre, em 8 de julho de 1999. Uma lei estadual tornou o dia de seu nascimento Dia do payador. Vários Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) pelo Brasil levam seu nome.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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