A Literatura Palestina, por Ghassan Kanafani

Reproduzimos abaixo um trecho do livro Literatura de Resistência na Palestina Ocupada: 1948-1966, escrito pelo escritor, dramaturgo e poeta palestino, co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Ghassan Kanafani.

A Literatura Palestina, por Ghassan Kanafani

Reproduzimos abaixo um trecho do livro Literatura de Resistência na Palestina Ocupada: 1948-1966, escrito pelo escritor, dramaturgo e poeta palestino, co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Ghassan Kanafani.
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Reproduzimos abaixo um trecho do livro Literatura de Resistência na Palestina Ocupada: 1948-1966, escrito pelo escritor, dramaturgo e poeta palestino, co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Ghassan Kanafani. O livro é uma publicação rara, sem tradução para o inglês. O trecho é um dos poucos que existem em inglês e foi traduzido de forma inédita para o português pelo apoiador Pedro Camargo.


A queda da Palestina aos Sionistas em 1948 desaguou em uma mudança desastrosa no número e também na estrutura social da população árabe na Palestina ocupada. Quase três quartos dos 200.000 árabes que continuaram a viver em suas terras eram camponeses, e as cidades foram majoritariamente evacuadas durante ou logo após a guerra. Isso resultou em uma deterioração chocante das condições sociais árabes, porque as cidades eram os centros de disseminação cultural e política.

No momento que os Sionistas fecharam seu braço militar, eles começaram a impor suas medidas opressoras; a atmosfera era conveniente para eles. Seu propósito central era erradicar qualquer traço da personalidade árabe e implantar as sementes de novas tendências que podem crescer e integrarem-se à vida literária e política dos Sionistas. 

A Literatura Palestina era uma das correntes principais do movimento literário árabe que floresceu na primeira parte do século [20] até essa queda trágica. Ela bebia de fontes de e havia influenciado escritores egípcios, sírios e libaneses, que lideravam o movimento na época. Até mesmo escritores palestinos renomados deviam a maioria da sua fama às capitais árabes que costumavam recebê-los e patrociná-los. Diversos fatores contribuíram, na verdade, para a diminuição do valor da Literatura Palestina num tempo em que a Palestina gozava de uma posição proeminente na arena política e na luta pelo nacionalismo árabe.

Depois de 1948, a Literatura Palestina obteve êxito em estabelecer bases de um novo movimento literário que pode ser melhor descrito como Literatura de Exílio, ao invés de Literatura Palestina ou de Refugiado. A poesia, o elemento central desse movimento, conseguiu presenciar durante os últimos anos um progresso excepcional em qualidade e técnica. O curto período de silêncio depois da guerra de 1948 foi seguido por um grande despertar, e a poesia nacional explodiu, refletindo o fervor nacional do povo. Ela interagiu com tendências literárias árabes e estrangeiras e quebrou gradualmente as leis tradicionais da técnica, rejeitou as velhas explosões sentimentais e deu luz a um sentimento único de tristeza profunda, mais ligada à realidade da situação.

Por outro lado, a literatura de resistência dentro da Palestina ocupada foi confrontada com diferença de princípios radical. A espinha dorsal da Literatura Árabe na Palestina ocupada desapareceu com a migração de toda uma geração de escritores e homens de cultura. Os que não migraram constituíram uma sociedade que era principalmente rural e estava submetida à perseguição política, social e cultural nunca vista em qualquer outro lugar do mundo.

Os seguintes pontos podem esclarecer a situação real dos árabes na Palestina ocupada:

  1. A maioria dos palestinos que ficaram não estavam, graças à sua condição social, à par com o padrão cultural que permitiria a criação de uma nova geração de escritores e artistas.
  2. As cidades árabes que costumavam receber e encorajar a juventude talentosa que vinha do setor rural foram transformadas em cidades proibidas do inimigo.
  3. A população árabe estava completamente isolada e não tinha contato algum com os países árabes
  4. O regime do exército Sionista impôs restrições tirânicas à população árabe, e censurava suas produções literárias
  5. Os meios de publicação e distribuição foram ou limitados, ou estavam sob forte restrição.
  6. Não existia oportunidade de aprender línguas estrangeiras para os árabes. Muitos poucos tinham permissão para entrar no Ensino Médio, e quase nenhum tinha permissão para entrar na Universidade.

Deve-se ter em mente ao ler a literatura que foi capaz de emergir, que a população árabe estava lutando contra a perseguição e tortura mantidas por debaixo dos panos para consolidar sua existência e para se expressarem. Ela agora teve êxito em formar sua própria expressão, cristalizando-a em uma literatura de resistência palpitante.

É muito fácil entender por que a poesia foi a primeira precursora do chamado de resistência sob esse forte cerco, já que ela é transmitida de boca-a-boca e sobrevive sem ser publicada. Isso também explica por que essa poesia era restringida no começo à forma tradicional, mais fácil de memorizar e mais rápida no apelo sentimental. A primeira explosão era primariamente expressada em letras de amor, mas ao lado da poesia tradicional, letras nacionais populares pareceram começar a formar o primeiro núcleo da manifestação de resistência. A poesia popular, fato é, teve um papel grande na história da Palestina desde os anos 20, e era famosa por todo o mundo árabe. Quase todo palestino sabe e consegue recitar a letra popular a seguir, improvisada por um guerrilheiro palestino logo antes de ser executado pelo Mandato Britânico em 1936:

Noite, fique por mais um pouco, até o cativo
Terminar sua canção.
Ao raiar, sua asa se agitará
E o homem enforcado vai balançar
No vento.

Noite, passe mais lentamente, 
Deixe-me desabafar para ti,
Talvez esqueceste de quem sou e de quais
São meus problemas.
Uma pena, como minhas horas deslizaram
Por debaixo de suas mãos.

Não aches tu que choro por medo,
Minhas lágrimas são por meu país
E por um bando de inocentes
Com fome em casa
Sem ao menos um pai.
Quem vai alimentá-los depois de mim?
E meus dois irmãos,
Que balançaram antes de mim no andaime.

E como minha mulher vai passar seus dias,
Sozinha e em lágrimas?
Não deixei sequer uma pulseira
Em seu pulso
Quando meu país implorava por armas.

Letras populares dominaram a cena por quase uma década depois de 1948 antes de qualquer literatura padrão e bem-desenvolvida aparecesse. Eram o meio em que o povo derrotado expressava a si mesmo. Elas dominavam quaisquer manifestações de sua vida. Manhãs de casamento, encontros à tarde e quaisquer outros eventos eram transformados em heroicas demonstrações, alheias aos esquadrões de fuzilamento, graças ao efeito dessas letras. Muitos poetas populares foram presos ou confinados sob severas restrições, e com o crescimento e a expansão da poesia popular, as forças da ocupação aumentaram suas medidas tirânicas, mataram poetas e proibiram quaisquer encontros árabes. Medidas como essas não conseguiam exterminar a tendência de resistência, mas apenas mantiveram-na dormente por quase seis anos para inflamar-se de novo com enorme força e vitalidade. Com o começo dos anos 60, surpreendentemente, um novo e marcante ramo da literatura foi posto em centro. Os princípios desse novo ramo eram corajosos, cheios de vitalidade e otimismo, e cheio do espírito de contestação, diferentemente da literatura dos poetas exilados daquele mesmo período, que era na maioria triste e veemente. 

A década de precedeu essa nova explosão pode ser melhor explicada como um período de integração da personalidade e da identificação da personalidade árabe com a causa da luta. Os derrotados e perdidos que recorreram à poesia de amor durante os poucos anos que seguiram 1948 começaram, com o começo dos anos 60, a se desenvolver em uma força de resistência real, audaz, corajosa e esperançosa.

A poesia de amor foi o resultado do sentimento amargo de solidez e privação que sobrecarregou a população árabe depois de 1948. A percepção de que eles eram uma minoria derrotada começou, com a passagem do tempo, a mudar para um sentimento de rebelião, e eles conseguiram confrontar suas circunstâncias difíceis cara-a-cara.

 Resistir não foi uma escolha fácil; era, na verdade, uma luta diária contra um inimigo feroz que considerava isso uma questão de vida ou morte. E, com os meios de perseguição se tornando cada vez mais cruéis, a resistência se consolidou. Ao contrário da poesia do exílio, a poesia de resistência nasceu com um espírito revolucionário palpável e completamente livre da tendência triste e melancólica. Estranhamente, ela rapidamente reverberou com toda a revolta política dos países árabes.

A poesia de resistência não só presenciou uma mudança em teor e efeito poético, mas também em forma e técnica. Rejeitava as formas poéticas tradicionais e adotava técnicas modernas sem perder sua força. Sobre o teor, a poesia de resistência recorreu a vários meios de expressão:

  1. Amor: O amor pela mulher é ligado completamente ao amor pela pátria. Mulher e Terra são completamente assimiladas em um só grande amor e transformadas em uma só grande causa de libertação.
  2. Sátira: O inimigo e seus agentes são ridicularizados e os atos de supressão são expressos com ironia ácida. Esse teor expressa um espírito vivo e inconquistável que considera todo acontecimento como condições efêmeras e em transição, que cedo ou tarde devem e vão mudar e voltar à normalidade.
  3. Rebelião e desafio: O inimigo é exposto e posto cara-a-cara com o espírito firme e destemido dos lutadores. 

É notável que a literatura de resistência é majoritariamente caracterizada como de esquerda. Esse é o resultado das circunstâncias que dominavam a vida palestina, que podem ser resumidas no seguinte:

  1. A maioria da população árabe é rural e profundamente envolvida nas revoluções e revoltas feitas na Palestina antes 1948 contra o Mandato Britânico. São eles também que receberam o maior golpe em 1948. 
  2. As condições de vida deploráveis e a tirania cruel na qual eles se encontram na luta pelo pão diário
  3. O fato de que a existência do inimigo é resultado dos esquemas imperialistas e capitalistas, e que sua continuação é majoritariamente sustentada pelo capitalismo. Ainda mais, a poesia de resistência é um desafio a todas as crenças Sionistas. Ela trata delas, e as descarta uma após a outra. É uma literatura baseada em uma racionalização, e não em pura emoção. Acima de tudo, continua uma parte fundamental da Revolução Árabe e vai de mãos dadas com o movimento progressista árabe. Foi capaz, mesmo com todos os obstáculos, de se firmar como uma literatura real e apresentar a personalidade do poeta em luta.
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