Heróis estadunidenses da Palestina e da humanidade

O método escolhido por Bushnell e Corrie não é replicável em grande escala: em circunstâncias excepcionais, pode ser de grande valia, e eles o dignificaram.

Heróis estadunidenses da Palestina e da humanidade

O método escolhido por Bushnell e Corrie não é replicável em grande escala: em circunstâncias excepcionais, pode ser de grande valia, e eles o dignificaram.
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Gladiador defunto, mas intacto.
(Tanta violência, mas tanta ternura).

Mário Faustino, Balada (em memória de um poeta suicida)

1

Em 25/02 último, um homem se postou diante da embaixada de Israel em Washington, capital dos Estados Unidos. Antes, redigira um testamento deixando para um amigo uma geladeira cheia de cervejas e confiando a outro o cuidado de seu gato. Suas economias, legou-as ao Fundo de Assistência às Crianças Palestinas, uma organização de ajuda médica voluntária; e fez constar o desejo de que, após sua morte, suas cinzas fossem guardadas até que pudessem adubar o solo de uma Palestina livre.

Ato contínuo, ateou fogo a si mesmo. A notícia correu o mundo, assim como suas últimas palavras:

Meu nome é Aaron Bushnell. Sou um membro da Força Aérea dos Estados Unidos em serviço ativo. E não serei mais cúmplice de um genocídio. Estou prestes a me entregar a um ato extremo de protesto – mas, comparado ao que as pessoas têm passado na Palestina nas mãos de seus colonizadores, não é tão extremo assim. Isso é o que nossa classe dominante decidiu que será normal. Palestina livre!

Aos alvos do protesto que levou a efeito mediante esse gesto sacrificial, Bushnell deixou um problema maiúsculo. Tendo no respaldo incondicional dos EUA a única garantia de sua existência, uma das poucas coisas (talvez a única) que o Estado constituído pelo sionismo na Palestina ocupada não pode se permitir é ter contra si a opinião pública do país que veta, sozinho, todas as tentativas de fazer que a ONU ordene o fim do massacre.

Contando apenas com Israel como preposto no Oriente Médio; e refém, ao mesmo tempo, do lobby sionista em suas próprias instâncias de poder, a casta política estadunidense, por sua vez, não tem como justificar perante seu próprio povo a sujeição abjeta da maior potência do mundo aos caprichos sanguinários de um etno-Estado cuja essência racista e genocida não pode mais ser tergiversada.

Se, até então, as atrocidades perpetradas em Gaza só feriam o senso moral e humanitário de milhões de estadunidenses, a morte de um compatriota de 25 anos, engenheiro militar, genro dos sonhos de qualquer sogra wasp, os leva a sentir bem mais de perto as consequências desses crimes acobertados por seu governo – sentimento que atinge também outros milhões de cidadãos, até então indiferentes.

Nas forças armadas dos EUA, é antigo e crescente o mal-estar com o apoio incondicional a Israel e a suas atrocidades. Por incrível que isto possa parecer a quem discerne o papel que os EUA cumprem no mundo, grande parte de sua população acredita, de boa fé, na propaganda sobre os valores de justiça e liberdade que seu Estado diz defender – e tal engano leva muitos estadunidenses à carreira militar. Quando a ilusão se desfaz, muitos se degradam; mas, de dentre os que se mantêm íntegros, surgem os Ellsberg, Manning e Bushnell. Por uma tradição ética que tem raízes nos quacres e em seu rechaço intransigente à escravidão, o povo dos EUA é uma fonte inesgotável de objetores de consciência e whisteblowers – figuras que conjugam as crenças no serviço à comunidade e na importância da ação individual, ambas igualmente arraigadas em sua cultura. É para evitar sua proliferação que os EUA, cada vez mais, travam suas guerras com mercenários.

A expressão desse descontentamento, todavia, se limitava, até então, a artigos ou vídeos críticos feitos por militares da reserva, como Scott Ritter. Bushnell se propôs – e, em alguma medida, conseguiu – ser a fagulha que incendeia a pradaria: seu gesto gerou um quadro nunca antes visto, com a participação de militares em manifestações por todo o país. Alguns queimam suas fardas em público, outros protestam vestidos com elas¹.

2

A morte do jovem oficial e o compromisso que a guiou se parecem muito aos de outra estadunidense corajosa e altruísta que, em 2003, aos 23 anos, entregou sua vida lutando de forma não violenta contra os crimes do sionismo: Rachel Corrie. É surpreendente, e só explicável pelo dano que a sobreposição incessante de imagens e estímulos causa à memória e ao raciocínio, que ela e essa óbvia semelhança não tenham sido lembradas de imediato.

É certo que Corrie não morreu pelas próprias mãos, mas trucidada pelo exército israelense ao se colocar entre a casa de uma família palestina e a escavadeira militar que a demoliria. Mas as diferenças de forma pesam menos que as semelhanças de fundo.

A maior delas: a decisão, comum a ambos, de colocar as convicções e a justiça acima da própria vida. Tal  força levou Bushnell a se dirigir resolutamente em direção à morte e Corrie a aceitá-la como possibilidade ao se expor à covardia e à crueldade sionistas. Ele tinha certeza de seu final e o buscou conscientemente; ela sabia a que se arriscava, não porque fosse legítimo o exército de Israel atropelá-la, mas por ela saber que ele age sem se ater a critérios de justiça, moral ou legitimidade.

Dizer isso não é, como hoje comumente se diz, culpar as vítimas: é reconhecer os heróis. Bushnell e Corrie não são vítimas, são heróis.

3

Choca e dói pensar em vidas tão jovens e valiosas ceifadas tão cedo. Quem é capaz de se entregar assim a uma causa justa seria capaz de, vivo, fazer muitas coisas valiosas.

É também inevitável a sensação de injustiça e de algo fora de lugar; de que  Bushnell e Corrie deveriam estar vivos, e os criminosos de guerra sionistas deveriam estar mortos.

Todavia, logo cedem lugar à compreensão de que, algumas (raras) vezes, uma vida encontra sua realização em seu próprio sacrifício. E de que ambos conseguiram – bem mais que a maioria dos que continuamos vivos – firmar “o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura”, em palavras do autor da epígrafe.

Entre as lições que os atos heroicos de ambos ensinam ou recordam, está a de que morrer de velho numa cama não é sempre o melhor final que um ser humano pode ansiar.

4

Ambos deram a vida em atos de resistência pacífica: Corrie não cometeu ato algum de violência contra alguém, Bushnell apenas contra si mesmo.

Isso não se contrapõe a ações armadas e/ou violentas: o próprio Bushnell, como militar, havia assumido a possibilidade de matar numa guerra, tanto quanto a de morrer.

A resistência pacífica não é o oposto da resistência armada, com a qual tem um denominador comum expresso numa palavra em comum Requer tanta convicção, ação e compromisso quanto ela, e está mais próxima dela que da morna política institucional-parlamentar que se desenrola à base de conchavos em gabinetes com ar condicionado.

Tampouco deve ser confundida com a pretensão de equidistância que lava as mãos equiparando o colonizador sionista que já esgotou o catálogo dos crimes de guerra e contra a humanidade, à resistência nacional palestina e a suas ações armadas – reconhecidas, ademais, como legítimas pelo direito internacional.

O método escolhido por Bushnell e Corrie não é replicável em grande escala: em circunstâncias excepcionais, pode ser de grande valia, e eles o dignificaram.

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O sentido de seus sacrifícios, todavia, só se completa mediante a ação de quem permanece vivo. Seus gestos denotam uma confiança plena na humanidade e a interpelam.

Seus exemplos luminosos nos convocam a um maior compromisso e servem para elevar a consciência e a luta a outro nível. As reações de admiração e de ira contra os crimes de Israel que despertam em todo o mundo, começando pelo país que os viu nascer, mostram que o ponto de não-retorno para o sionismo se aproxima, e que seus sacrifícios não terão sido em vão.

Que sejam firmes e profundas as raízes fincadas por eles em nossas consciências.

PS: em dezembro de 2023, uma mulher, envolta numa bandeira palestina, ateara fogo a si mesma frente ao consulado de Israel em Atlanta, também nos EUA, sendo, todavia, socorrida e levada a um hospital. Maiores informações – como seu nome, ocupação e idade – foram ocultadas pelas autoridades locais. A ela, seja quem for, o mesmo reconhecimento aqui expresso a Bushnell e Corrie.


Este texto expressa a opinião do autor:

Notas:

¹Tradução do vídeo: Temos tecnologia e podemos ver exatamente quem está nesses lugares e edifícios.  localidades e edifícios. Portanto, estão atacando e bombardeando casas sabendo quem e quantas crianças estavam dentro. Meu nome é Josephine Guilbeau, sou uma veterana militar com 17 anos de Exército. Deixei recentemente as forças armadas, no ano passado. Tendo essa experiência como oficial de inteligência e entendendo o que é realmente defesa, posso ver claramente que isso não é legítima defesa. As baixas civis são uma catástrofe. Eles estão mirando em lares cheios de crianças. A elite sentada no Capitólio mente mais, e mais, e mais. Eu só quero destacar que uma das maiores tomadas de consciência que penso que tive nessas últimas semanas vindo aqui e fazendo lobby com os senadores e os congressistas [por um cessar-fogo] foi justamente a compreensão do quão corrupto é o nosso governo e de que qualquer um que esteja nas forças armadas é simplesmente uma peça de xadrez que eles usam a seu bel-prazer para seu próprio benefício interno, para proteger seus próprios interesses e seu dinheiro.”

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