Porque entrei na guerrilha (1973) – Cordel de Lúcio Petit

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Porque entrei na guerrilha (1973) – Cordel de Lúcio Petit

Como colocado no artigo Memória de Rosalindo Souza, cordelista e combatente no Araguaia, a produção embrionária de Nova Cultura pelos combatentes e massas da região foi importante elemento para identificação do povo com a luta guerrilheira dirigida pelo Partido Comunista do Brasil. Infelizmente, a maior parte dessa produção foi destruída pela intempérie ou pela reação. O seguinte cordel de Lúcio Petit da Silva, o “Beto” (1943-1974) Porque entrei na guerrilha é um dos poucos materiais a que temos acesso integralmente, devido à sua publicação na edição nº 12 da revista Princípios [1] em 1985.

O cordel possui 83 estrofes setilhas construídas em redondilha maior, utilizando-se de vários regionalismos e descrição de situações típicas no contexto da luta revolucionária.

Segundo o suposto “diário” de Maurício Grabois, sua opinião sobre este cordel seria a seguinte:

“É muito bem feito. Não contém ‘apelações’. Tem boa estrutura e coordenação. Possui qualidades poéticas e literárias. Conta a vida atribulada de um camponês da região e descreve os motivos que o levaram a ingressar nas FF GG. Penso que terá repercussão entre os moradores. Será excelente veículo de propaganda.”

Originário de Piratininga, São Paulo, Lúcio Petit da Silva iniciou sua militância política no movimento estudantil, onde participou ativamente do Diretório Acadêmico do Instituto Eletrotécnico de Engenharia e de seu jornal, “O Dínamo”, também atuando no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). No início dos anos 70, se transfere, juntamente a seus dois irmãos, Jaime Petit e Maria Lúcia Petit [2], para a região do Araguaia. Lúcio atuou militarmente através do Destacamento A, realizando trabalho de mobilização, politização e educação das massas – da qual a seguinte literatura de cordel fez parte. Os três irmãos foram mortos em combate contra o regime militar fascista.

Lúcio Petit da Silva. Foto: Reprodução

Porque entrei na guerrilha

Eu que nunca fui poeta
Que nunca fui cantador
Hoje vou contar a vida
De um homem trabalhador.
Limpe bem o seu ouvido
E ponha muito sentido
Me ouça peço o favor

Eu nasci não sei bem onde
Maranhão ou Ceará
Andei Piauí e Goiás
Rolando ao Deus dará
Morei no Norte e Nordeste
Viajando mais que a peste
Vim me plantar no Pará

Tinha uma casa famosa
Canteiro de alho e coentro
Muita fruteira plantada
No meu sítio lá do centro
Morando perto do porto
Deixei todo esse conforto
Me soquei por mata a dentro

Naquele tempo eu havia
Cinco quadras empreitado
Com dinheiro que o Banco
Tinha dado emprestado
Eu pagaria depois
Que colhesse todo o arroz
Já batido e ensacado

Entreguei o meu arroz
Junto com muito parceiro
Porém um cabra safado
Nos botou no atoleiro
O dono da cooperativa
Que do inferno ninguém livra
Fugiu com o nosso dinheiro

Havia nesta cidade
Um juiz sem consciência
Que ao Banco deu razão
Sendo fraco e sem ciência
O pobre sempre sai mal
Ficaram com o meu local
Eu paguei a diligência

Mudei prá nova morada
Onde tinha muita caça
Da estrada fica longe
Cristão por aqui não passa
Vou trabalhar sem patrão
E se dinheiro me dão
Não aceito nem de graça

Bem importante é o local
Onde vim me situar
Os quatro aceiros da roça
Já acabei de marcar
Eu estou esperançoso
E como não sou preguiçoso
Amanhã vou trabalhar

Peitei da rede pro broque
De espinhaço dolorido
Cedo entrei tarde saí
Sem ver o sol já pendido
Levei a empuca no peito
Aumentando muito o eito
Deixei foi cipó caído

Trabalhei dia e semana
Do braço ficar inchado
Mas quando a folha secou
Amolei o meu machado
Enfrentei foi muita linha
Comendo caça e farinha
Vi o mato derrubado

Fui tratar da farinhada
No fim de agosto passado
Mas quando chegou setembro
Com o rancho fracassado
Fui logo caçar um meio
Enfrentei trabalho alheio
De roçar quinta de gado

Por sorte todo o verão
Foi sem muito aguaceiro
O sol queimou queimando
Secou até no aceiro
Bem a sete de setembro
De certo que bem me lembro
Botei fogo com isqueiro

Quando o fogo terminou
O seu trabalho fecundo
O chão ficou bem limpinho
Não vacilei um segundo
Construí um novo rancho
Roça limpa sem garrancho
É a melhor coisa do mundo

Nesse tempo apareceu
Roubando todo posseiro
Um grande ladrão de terras
Chegou dizendo o grileiro
No INCRA sou registrado
Sou agente autorizado
Do governo brasileiro

O presidente falou
Que a terra foi reservada
Para a criação de gado
Essa matona fechada
Que de onça ainda tem rastro
Vai virar um grande pasto
Será toda derrubada

O grileiro sem vergonha
Prá aumentar minha desgraça
Um dia em casa chegou
Com um sargento e um praça
Embora saia uma guerra
Não deixo a minha terra
Só se subir na fumaça

Ao ouvir minhas palavras
O grileiro foi embora
Dizendo que voltaria
prá me botar para fora
Eu sei que ele saiu cedo
Porque ficou foi com medo
Aqui tem homem na hora.

Um vizinho esmorecido
Veio em casa pra dizer
Que o grileiro era forte
O melhor era vender
Não dou ouvido a fuxico
Daqui não saio eu fico
O fim disto eu quero ver

E quando a primeira chuva
Matou do chão a secura
Plantei melão e maxixe
Quiabo e muita verdura
De melancia e tomate
De fruteira e abacate
Vamos ter muita fartura

Tivemos mesmo fartura
Foi o que se sucedeu
Porém prá minha tristeza
Nenhum lucro tirei eu
Sem estrada prá exportar
E ninguém prá comprar
Muita fruta se perdeu

Logo que o inverno chegou
Do sol apagando o brilho
Só com chacho e facão
Ajudado por meu filho
Fomos plantar só nós dois
A roça cheia de arroz
E meia quadra de milho

De dia eu cortava o mato
Com o facão já bem cotó
De noite o mato crescia
Batia no mocotó
Era a pura jitirana
Subindo em riba da cana
A malva de fazer dó

Com o arroz já parindo
A febre me deixou fraco
Mulher e filhos doentes
Ficaram no meu barraco
E eu não tendo outra escolha
Vendi o arroz na folha
A dez cruzeiros o saco

Viajei prá Marabá
Passando no entroncamento
Um soldado procurou
E eu não tinha documento
Cinco cruzeiros o praça
Para beber de cachaça
Me roubou nesse momento

Achar recurso é difícil
Para quem é lavrador
E que tem pouco dinheiro
Sem remédio nem doutor
Sem vaga no hospital
O pobre morre do mal
Ou sofre que é um horror

Ali o roubo e ganância
Andam compactuados
Olhos das autoridades
Para isso vivem fechados
Preço de medicamento
É de tal avultamento
Que os pobres são depenados

Diz o povo que pro pobre
Se Deus dá o diabo tira
Além da doença peguei
Uma danisca de pira
Na roça o arroz secava
A minha força não dava
Para enfrentar a juquira


Com dinheiro eu faria
Como o mineiro já fez
Compraria muita lona
Se o pobre tivesse vez
Nisto eu ponho minha fé
O arroz cortado no pé
Colheria em menos de mês

Dei meu arroz de terça
Prá quem quisesse ganhar
Deixei duas linhas perdidas
Que acabaram por secar
Desta feita esta colheita
Posso dizer que foi feita
Em meio de muito azar

Depois do começo da guerra
Todo mês em casa vem
O pessoal da malária
Aquele povo do CEM
Se muito conversador
É mesmo investigador
Disto eu sei muito bem

Borrifou com BHC
Enquanto ia dizendo
Que o mosquito ia morrer
Ao cheirar esse veneno
Morreu foi minha gatinha
A ninhada da galinha
E muito pato pequeno

Procurou se eu tinha visto
Da mata algum guerriiheiro
Respondi que esse povo
Anda é muito vasqueiro
Nunca encostam aqui
E caçando nunca vi
Nenhum modo nem piseiro

Na verdade eu conhecia
Todo o grupo guerrilheiro
E com eles aprendi
A razão do cativeiro
Eles vivem na labuta
Prá por meio dessa luta
Libertar o povo inteiro

Conheci que no Brasil
Existe uma ditadura
Que entrou há muitos anos
De velha já está madura
Esse governo feroz
É para o povo o algoz
E carrasco não se atura

Quando bati o arroz
Foi grande a tristeza minha
Ao ver que era bem pouco
O arroz que ainda tinha
Separo o que vou plantar
E quando o arroz acabar
Eu escapo na farinha

Acabou todo o legume
Nem da dívida estou livre
E para o meu desengano
Da boa esperança que tive
Ao ver a roça queimada
Já não sobrava mais nada
De teimoso o pobre vive

No Pará tem cinco males
É nisto a verdade pura
Muito pior que as pragas
Da Sagrada Escritura
que me perdoem dizer
Tudo fazem para ver
O pobre na sepultura

Posso logo ir dizendo
Tanta doença é a primeira
A segunda é todo inseto
Roubo de rico a terceira
Quarta o imposto maior
Por fim o INCRA é pior
e o pobre fica sem beira

Todo inseto se alimenta
Do suor que era meu
Vem curica e capivara
De rama o rato roeu
Vem lagarta e vem pulgão
Rouba o governo ladrão
Só quem não come sou eu

E por querer o destino
Perdi a minha riqueza
O fato que sucedeu
Aumentou minha tristeza
Com uma febre danada
De uma dor de pontada
Morreu a pobre Tereza

Na rua o INCRA chegou
Montou logo um escritório
Dizendo que para o pobre
Daria muito adjutório
Mas prá quem foi registrado
Muito bem documentado
E selado no cartório

Prá começo de conversa
Vinha um agrimensor
Prá medir todos os piques
Da terra do lavrador
Cobrando muito dinheiro
Era quinhentos cruzeiros
Prá qualquer lado que for

Um quilómetro de terra
Dois milhões me custaria
Se eu tivesse esse dinheiro
Pro governo não daria
Não vivia na descrença
Não é de qualquer doença
Que Teresa morreria

E prá tirar os papéis
Era um outro tormento
Gastando tanto dinheiro
De ninguém dar vencimento
Roubava nosso delegado
E o fiscal descarado
Prá assinar o documento

Da terra sei que o governo
Ia cobrar o imposto
Prá fazer sua criação
O pobre ia ter desgosto
É melhor não assinar
Não sair e não pagar
A lutar estar disposto

Reuni com os moradores
Prá valer nossos direitos
Tudo isso em segredo
De noite com muito jeito
E juntando tanto pobre
Logo, a gente descobre
que é preciso ter peito

A união dos lavradores
O problema resolveu
Vamos acabar com o mal
Se ele ainda não cresceu
Preparei a minha brasa
Quando num dia lá em casa
O fiscal apareceu.

Procurou pelo caminho
Eu na hora respondi
Cuidado com os guerrilheiros
Andam muito por aí
Eles te matam fiscal
Te comem assado em sal
Com jacuba de açaí

O fiscal então fugiu
Como o diabo foge da cruz
Ia levar uma peia
De ficar obrando pus
Assombrei esse malvado
Porque o INCRA é encravado
Só embuança produz

A terra não vou deixar
Escute bem meu ouvinte
Que o INCRA fique sabendo
Que pobre não é pedinte
Se o governo quer tomar
Passo por riba do azar
Quem fala é o cano da vinte

E depois desta vitória
Cresceram as uniões
Se juntaram lavradores
Os tropeiros e os peões
Prá ajudar a guerrilha
Derrotar a camarilha
Dos militares ladrões

Quatro ou cinco moradores
Formam uma irmandade
Um vem ajudar o outro
Estando em dificuldade
Uma roça prá brocar
Com cinco pra enfrentar
É a maior facilidade

Muita raiz ter no chão
E um paiol separado
Onde ninguém possa ver
Com arroz e milho guardado
Pois se o exército chegar
A gente pode escapar
Se estiver aperreado

Com arroz e com farinha
Com inhame e macaxeira
Ajudo a abastecer
Toda a força guerrilheira
Padim Cícero dizia
Que um dia o pobre ia
Roubar de sua capoeira

Se o exército acampar
Ou passar por uma estrada
Chegando um guerrilheiro
A notícia será dada
Pois com a sua informação
Ajuda na execução
De assalto ou emboscada

Disse um vizinho meu
Que era bem remediado
Com o governo ninguém pode
Tem o exército armado
A aeronáutica e polícia
A marinha e a milícia
Pro povo manter peado

Respondi que com o exército
O povo unido podia
E que prá nação armada
Outra força não havia
Nada empata o seu caminho
Pois quem come um boi sozinho
Não come tudo num dia

Retalho o boi e manteio
Trato logo de salgar
No sol ou fogo bem manso
Ponho tudo prá secar
Como a carne de pescoço
Vou roendo até o osso
Dia a dia devagar

Vamos entrar com cuidado
Em cada batalha enfrentada
Assim sua força será
Pouco a pouco escabrejada
Desse modo o inimigo
Levará o seu castigo
Numa guerra prolongada

Um vizinho então chegou
Correndo prá me avisar
Que com cabo e bate-pau
O grileiro ia voltar
Não respeito autoridade
Que vem de lá da cidade
Para o pobre humilhar

Nesta hora eu conheci
Que o grileiro então era
Aliado dos milicos
Governo da besta-fera
O chumbo de um cartucho
Ele vai levar no bucho
De vinte fiquei na espera

Sei que cinco guerrilheiros
Ao saber da situação
Vieram prá me ajudar
A emboscar a guarnição
Sabendo disso o grileiro
Ficou foi muito treteiro

E não deu aparição
A vida me ensinou
Que não adianta ficar
Esperando uma melhora
Todo ano a trabalhar
Bem com razão que se diz
Deste governo a raiz
É preciso arrancar

Já vivi muito na vida
Já vi a morte de perto
Eu rolei por muitos anos
Uma coisa digo e é certo
Se é prá viver cativo
Antes morto do que vivo
Eu na luta me liberto

Digo a roça vai ser
Este ano bem diferente
Todos vão se melhorar
Vou plantar boa semente
Vou cultivar outro chão
Vou plantar revolução
No coração desta gente

Nem é preciso dizer
Qual foi o meu paradeiro
Hoje ajudo a libertar
Todo o povo brasileiro
Junto com gente disposta
Levo a mochila nas costas
Hoje sou um guerrilheiro

Prá melhor compreender
O que fazer e falar
Encontrei um professor
Tratei logo de estudar
Na leitura eu era bobó
Hoje prá fazer um ó
Não preciso me sentar

Conheci que no Brasil
Para o povo progredir
O imperialismo estrangeiro
É preciso destruir
Derrubar a ditadura
Nem que a luta seja dura
Nova nação construir

Neste país hoje em dia
Só quem manda é militar
De presidente a prefeito
Essa corja é titular
É tudo pura opressão
Já não existe eleição
Para o governo mudar

Imperialismo meu irmão
É roubo de nação forte
Sem riqueza este país
Vive à beira da morte
A produção já é curta
E muito ainda nos furta
O americano do norte

Toda indústria do país
O estrangeiro tem na mão
Seja máquina ou cerveja
Automóvel caminhão
Remédio e medicamento
Adubo ferro e cimento
Tecelagem e fiação

Em Rio Doce Serra Norte
A riqueza mineral
Que vem do fundo da terra
É roubada no total
Sai cassiterita e urânio
Manganês ferro e titânio
Diamante ouro e cristal

Castanha café e cacau
O americano cobiça
Madeira e peles se vão
Come a carne maciça
Do nosso gado zebu
Leva até o urubu
Para lá comer carniça

Mas tem também brasileiro
Com estrangeiro conluiado
São grandes industriais
Donos de nosso mercado
Também o rico banqueiro
Dono de muito dinheiro
No governo está montado.

No sul a terra que existe
É do grande fazendeiro
De café cacau e cana
Pecuarista ou mineiro
E o lavrador explorado
Vive cuidando de gado
É agregado ou meeiro

Na cidade o operário
Sem a casa para morar
Na mata o lavrador
Sem roupa para usar
Dois irmãos de sofrimento
Sustentam o esbanjamento
Do governo militar

Contra o povo este governo
Usa de toda maldade
Com exército e polícia
Prende e mata na cidade
Não há outra solução
Do que a revolução
Para ganhar a liberdade

O imposto que o povo paga
Compra arma e avião
Para esta ditadura
Oprimir toda a nação
O pobre está revoltado
E para se ver libertado
Luta de fuzil na mão

Ainda não disse meu nome
Sou Alfredo ou Carretel
Não importa quem eu seja
Sou Antônio ou Manoel
Eu sou homem do povo
Que constrói um Brasil novo
Vou cumprindo o meu papel

O romance terminou
Mas não findou minha história
O povo dirá o final
Até o dia da vitória
Posso dizer que se o pobre
Defende uma causa nobre
Tem também a sua glória


[1] Publicação do período em que o partido já tinha sido afundado pelo revisionismo da camarilha de João Amazonas. Pode ser acessado por este link.

[2] Laura Petit, irmã dos três, foi entrevistada por AND em 2013.

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