Proporções

Após seis meses completados ontem (7 de abril), a proporção de 1 para 31 finalmente chocou os líderes mundiais. Após seis meses de genocídio, bastou que seis estrangeiros sofressem o mesmo destino que trinta e três mil palestinos.

Proporções

Após seis meses completados ontem (7 de abril), a proporção de 1 para 31 finalmente chocou os líderes mundiais. Após seis meses de genocídio, bastou que seis estrangeiros sofressem o mesmo destino que trinta e três mil palestinos.
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Quantos assassinatos de trabalhadores de ajuda humanitária são o suficiente para dizer chega? Sete, talvez seja o número mágico da vez. Ou melhor, seis. No dia 1 de abril, drones sionistas caçaram, até assassinarem, passageiros em veículos de ajuda humanitária claramente marcados com o logotipo da ONG World Central Kitchen (WCK), pertencente ao chefe de cozinha mundialmente famoso, José Andrés Os drones sionistas primeiramente destruíram um veículo. Os sobreviventes deste primeiro ataque foram realocados para um segundo carro, que também foi bombardeado menos de 800 metros de distância do primeiro. Os que ainda assim conseguiram sobreviver foram bombardeados em um terceiro carro, menos de 2 quilômetros de distância do segundo. Dentro dos veículos, sete trabalhadores de ajuda humanitária, voluntários, foram assassinados. Três cidadãos britânicos, um polonês, um estadunidense, uma australiana. E um palestino.

Líderes dos “países ocidentais”, a imprensa quase inteira, o mundo inteiro exigem uma resposta. As fotos das vítimas foram colocadas nas capas de periódicos britânicos. O presidente ianque Joseph Biden realizou uma ligação de cerca de trinta minutos com o primeiro-ministro sionista Benjamin Netanyahu, na qual “enfatizou que ataques contra trabalhadores humanitários e a situação humanitária em geral são inaceitáveis”, e que “um cessar fogo imediato é essencial para estabilizar e melhorar a situação e proteger civis inocentes”. O “ocidente” – leia-se, a Europa e os USA – chegaram ao seu limite: seis de seus cidadãos foram assassinados pela sanha sanguinária sionista. São os primeiros trabalhadores de ajuda humanitária estrangeiros assassinados em Gaza desde outubro. Não que os outros cento e noventa e um trabalhadores de ajuda humanitária palestinos já assassinados por Israel – inclusive o motorista do comboio, Saif Abu Taha – sejam menos importantes. Mas, sabe… não são “um de nós”.

Em julho de 2006, drones sionistas atacaram duas ambulâncias da Cruz Vermelha, claramente marcadas, no Líbano. Imediatamente após o ataque terrorista, uma onda de acusações apontava o incidente como falso, uma farsa orquestrada pelo Hezbollah para difamar as forças invasoras sionistas7. Investigações exaustivas provaram que o ataque de fato ocorreu, e Israel jamais se desculpou ou sequer assumiu a responsabilidade. As nove vítimas, embora não fatais, eram todas libanesas. Seus rostos não viraram manchetes em jornais europeus.

Voltando para 2024, nem mesmo a “investigação interna” israelense havia terminado e Netanyahu já assumia a responsabilidade pelo ataque aos veículos da WCK, mas a investigação concluiu que o ataque terrorista foi “apenas um erro”. A pressa com a qual o primeiro-ministro genocida de Israel assumiu o erro e a celeridade das investigações, que levaram à demissão de 2 militares israelenses, levou todos a levantarem uma sobrancelha em suspeita. Por mais patética que seja a alegação sionista de que “foi um caso isolado, um acidente”, o mero fato das Forças de Ocupação Israelenses e do governo sionista assumirem a culpa ao invés de culparem o Hamas, ou dizerem que o Hamas usou “escudos humanos”, já é um giro de 180 graus em relação aos prévios assassinatos de trabalhadores de ajuda humanitária.

Ao que parece, vidas estrangeiras – especialmente europeus e ianques, brancos ainda por cima – valem pelo menos 31 vidas palestinas. Esta é a proporção de palestinos assassinados em Gaza em relação aos israelenses mortos em 7 de outubro. Esta também é a proporção de 6 para 191. Cento e noventa e um palestinos trabalhando com ajuda humanitária, a maioria esmagadora ligados à agência da ONU, UNRWA (sigla em inglês para Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente), já foram assassinados por Israel, que ainda segue seu trabalho de difamação da organização, acusando seus membros de serem operativos do Hamas infiltrados na ONU. Esta difamação levou à retirada de fundos doados para a organização por parte dos USA e Alemanha, os dois maiores doadores. A UNRWA é a maior responsável por ajuda humanitária em Gaza, seja em forma de alimentos, saúde, educação ou moradia, e vem sofrendo com essa campanha difamatória e retirada de fundos, se vendo, finalmente, incapaz de realizar suas atividades. Em contraste, imediatamente após o ataque, porta vozes das Forças de Ocupação e do Estado Sionista se apressaram a ressaltar que a WCK “é um dos bons”, e que, portanto, o ataque foi trágico.

O esforço colossal da Hasbará (propaganda sionista) para desqualificar e difamar a UNRWA – bem como qualquer outro órgão internacional – ao mesmo tempo em que julga a WCK como sendo “um dos bons”, não surpreenderia aos mais atentos. Em 15 de outubro do ano passado já se passavam onze dias desde o início desta fase do genocídio do povo palestino, a fase na qual o genocídio de baixa intensidade se tornou um de alta intensidade. Naquele momento, mais de 800 estudiosos e praticantes da lei internacional, incluindo estudiosos de genocídio e do Holocausto, assinaram uma declaração pública alertando sobre a possibilidade de um genocídio em Gaza, perpetrado pelas Forças de Ocupação Israelenses. No dia seguinte, o fundador da WCK, José Andrés, surgia em uma rede social atacando Ione Belarra, líder do partido político Podemos, da Espanha. Belarra tem sido, desde outubro, uma das vozes europeias mais fortes em apoio à Palestina, e chegou a perder seu cargo no governo espanhol por exigir que Netanyahu seja julgado por crimes de guerra. José Andrés, ao ver Ione Belarra culpar o governo sionista por cometer crimes de guerra, acusou a então ministra de direitos sociais da Espanha de ser “pró Rússia e pró Hamas”, dizendo que “Israel está defendendo seus cidadãos”, e exigiu que o presidente espanhol a destituísse de seu cargo.

Com tamanha fidelidade por parte do fundador da WCK, Israel então permitiu, em março deste ano, que a ONG entregasse alimentos a Gaza através de um corredor marítimo, enquanto milhares de caminhões de outras organizações, especialmente da UNRWA, tem sua passagem bloqueada em Rafah. Saindo do Chipre e coordenados com Israel, as barcas carregadas com o equivalente a 1 milhão de refeições em alimentos, aportavam em um píer construído com os entulhos e destroços das construções, casas, mesquitas e ruas de Gaza, completamente destruídas e demolidas pelas forças sionistas. Agora, finalmente, José Andrés e a WCK assumem que Israel está usando a fome como arma de guerra. E decidiram suspender suas atividades em Gaza, que eram completamente coordenadas com Israel. Ao mesmo tempo, o píer que os USA iria construir em Gaza para levar ajuda humanitária começa a ter sua construção posta em dúvida pela administração ianque.

O ataque ao comboio da WCK provou-se, afinal, extremamente eficaz no seu propósito, o mesmo propósito pelo qual a UNRWA sofre difamações atrozes e tem seus funcionários assassinados, e o mesmo propósito pelo qual o parlamento sionista aprovou uma lei que permite proibir canais estrangeiros, como a Al Jazeera, de atuarem no país: Israel visa isolar Gaza do mundo de todas as formas possíveis. O ataque ao comboio da WCK não foi um acidente, não foi um caso isolado. Os quase duzentos trabalhadores humanitários, quase cem jornalistas, dezenas de funcionários médicos e, num total, mais de 33 mil palestinos assassinados fazem parte de um plano colonial genocida de mais de 75 anos de idade. Os dois funcionários demitidos após a investigação do ataque ao comboio da WCK não são exceção e não cometeram nenhum erro, e sua demissão não irá solucionar nenhum problema. Quando civis israelenses vão às ruas protestar não protestam contra um genocídio em curso que seu país leva a cabo: protestam contra seu governo, pedem novas eleições e criticam Netanyahu por não trazer os prisioneiros capturados pelo Hamas de volta. A sociedade civil israelense, como um todo, pouco se preocupa ou se ocupa com as bombas de duas mil libras que são arremessadas sobre prédios civis e acampamentos de refugiados. A desumanização do povo palestino, um projeto em curso há sete décadas, surtiu efeito. Para os manifestantes israelenses, não importa que mais 13 mil crianças palestinas sejam bombardeadas: o importante é que o governo mude e os prisioneiros sejam resgatados. Se Netanyahu estivesse obtendo sucesso em resgatá-los, o público israelense talvez nem estaria protestando contra ele.

Um ditado popular conhecido mundialmente diz que um tigre à beira da morte é o mais perigoso de todos porque ele não tem mais nada a perder, e a única forma que ele pode evitar se tornar a presa é sendo ainda mais violento, agressivo e cruel que seu potencial predador. O historiador e dissidente israelense Ilan Pappé argumenta que estamos testemunhando o “início do fim do projeto colonial sionista”, e que são nesses momentos que regimes como este “lutam pela sua sobrevivência”33.

O regime colonial sionista enfrenta sua perda de legitimidade global, diante de líderes, organizações e cidadãos de todos os países do mundo. A Espanha já afirma que reconhecerá o Estado Palestino em julho, se tornando o primeiro país da União Europeia e, em geral, do Norte Global, a fazê-lo. O Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou, semana passada, uma resolução que pede o fim de vendas de armas para Israel – contando, como um relógio preciso, com o voto contrário dos USA. Após seis meses completados ontem (7 de abril), a proporção de 1 para 31 finalmente chocou os líderes mundiais. Após seis meses de genocídio, bastou que seis estrangeiros sofressem o mesmo destino que trinta e três mil palestinos.

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