60 anos do golpe de 64: O Movimento Camponês combativo e a ameaça ao latifúndio

Nas vésperas do golpe de 1964, a questão agrária era a mais urgente no Brasil. O movimento camponês sacudia o país proclamando por intermédio das Ligas Camponesas a exigência da “reforma agrária na lei ou na marra”, do fim da concentração de terras.

60 anos do golpe de 64: O Movimento Camponês combativo e a ameaça ao latifúndio

Nas vésperas do golpe de 1964, a questão agrária era a mais urgente no Brasil. O movimento camponês sacudia o país proclamando por intermédio das Ligas Camponesas a exigência da “reforma agrária na lei ou na marra”, do fim da concentração de terras.
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Nas vésperas do golpe de 1964, a questão agrária era a mais urgente no Brasil. O movimento camponês sacudia o país proclamando por intermédio das Ligas Camponesas a exigência da “reforma agrária na lei ou na marra”, do fim da concentração de terras. O pavor das classes dominantes frente à atitude combativa camponesa, em especial dos latifundiários, as arrastou cada vez mais para o lado da reação fascista e do golpismo. Ao mesmo tempo, o imperialismo ianque tinha certeza que um movimento daquele tipo minaria não apenas sua hegemonia, mas as próprias bases da subjugação nacional.

Os produtos culturais e as obras científicas da época, como os filmes Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Vidas Secas, adaptação do romance homônimo de Graciliano Ramos, de Nelson Pereira dos Santos, ambos de 1963, a obra Quatro Séculos de Latifúndio, de Alberto Passos Guimarães, do mesmo ano, por exemplo, são também testemunhos de uma viva tentativa de representar e analisar detidamente a questão agrária. O governo, igualmente, não podia passar por cima dela ou adiá-la, motivo pelo qual um dos componentes mais importantes das reformas de base de João Goulart era a reforma agrária. O Congresso, em 1963, chegou a aprovar o Estatuto do Trabalhador Rural, que, em tese, daria ao camponês os mesmos direitos que tinham os trabalhadores urbanos. 

No famoso discurso na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, Goulart disse que buscava a “abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”. A via escolhida pelo governo para conseguir o resultado, que envolvia a mobilização das Forças Armadas (FA) na demarcação e atribuição das terras e na garantia do processo e dependia da aceitação de uma alteração constitucional que permitiria o pagamento de indenização aos latifundiários em títulos de dívida pública, comprovou-se falha. Desprezando a mobilização popular, a reforma agrária de Goulart, que não quis se dar “na marra”, foi vítima da reação latifundiária e das FA, que comprovaram mais uma vez quais interesses de fato defendiam e seu destino golpista.

As Ligas Camponesas

As primeiras Ligas Camponesas brasileiras nasceram em 1945, sob direção do Partido Comunista do Brasil (P.C.B.), tendo sua existência legal encurtada pela passagem do Partido à clandestinidade, logo em 1947. Apesar da dissolução em 1948, as Ligas, que surgiram às centenas e organizavam milhares de camponeses, deixaram uma marca permanente no Movimento Camponês combativo, encabeçando a luta armada de Porecatu. A atuação do campesinato dirigido pelo P.C.B. também foi essencial para a conformação do território livre de Trombas e Formoso

Em Porecatu, o campesinato deslocado pela política da “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas e traído pelo governo, que lhe prometera terras, mas não concedeu títulos de propriedade, deixando aquelas massas como vítimas da predação grileira do latifúndio, juntou-se ao P.C.B. para invadir as fazendas, expulsar a tiros os jagunços e deter os latifundiários grileiros. O governo fascista do Estado Novo levaria, mesmo com todo o aparato repressivo à sua disposição, três anos para conseguir desarticular a revolta. Em Trombas e Formoso, às margens da estrada Transbrasiliana, camponeses liderados por José Porfírio, destacado militante comunista e camponês de origem, tomaram as terras devolutas griladas por latifundiários. A luta de Trombas e Formoso, que repeliu constantes ataques da repressão com sucesso e garantiu a criação de um território com governo próprio, continuaria até o golpe militar de 1964, quando a repressão passaria a perseguir e assassinar suas antigas lideranças, inclusive Porfírio, um dos “desaparecidos” do regime militar fascista, em 1973. 

Quando se deu a fundação do embrião das Ligas Camponesas que ficariam marcadas pela liderança de Francisco Julião, em 1955, reivindicava-se, de fato, o direito de ser enterrado e dos camponeses terem um caixão próprio, o interesse dos mortos pela fome e pela miséria, como destacou o médico e geógrafo Josué de Castro. O caráter de classe da luta camponesa logo se ressaltou, porém. A fundação da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, em Engenho da Galiléia, contou com a presença de Oscar Arruda Beltrão, latifundiário dono do Engenho, que, apesar de ter aceito o convite, logo passou a atacar as reivindicações camponesas como “artimanha comunista” junto aos demais donos de terra da região e mandou fechar a organização. Julião, advogado e deputado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que já defendia desde 1940 os direitos do campesinato, foi procurado pelas famílias camponesas para defender seu caso e prontamente aceitou o chamado. De advogado, porém, passou logo à agitador social, aprendendo cada vez mais que a lei beneficiaria sempre o latifúndio.

Sob a defesa e liderança política de Julião, as Ligas Camponesas, como viriam a ser chamadas pelos jornais reacionários que as comparavam às antigas Ligas do P.C.B. e nome que adotariam com orgulho, expandiram-se e espalharam-se, indo além das fronteiras do estado e tomando o campo do Nordeste. O desespero dos latifundiários perante a potente mobilização criou a urgência de que fossem empreendidas logo medidas repressivas. 

Não apenas os latifundiários, porém, mas o próprio Estados Unidos atentaram-se ao Nordeste. Os ianques pensavam que as Ligas vinham para terminar o trabalho do Levante Popular Armado de 1935. O monopólio de imprensa The New York Times, dizia, em 1960, que as Ligas eram uma organização marxista, que queriam repetir os feitos da Revolução Cubana ou da Revolução Chinesa, dando às declarações o cunho apocalíptico que era próprio do anticomunismo da época. Já desde o ano anterior a reivindicação pela “reforma agrária na lei ou na marra” era entoada pelo campesinato. Em 1961, demonstrou-se toda a robustez da luta política do campesinato, sendo realizado em Belo Horizonte um Congresso das Ligas que reuniu delegações de 20 estados e sendo aprovado por unanimidade o programa da Reforma Agrária Radical, que reivindicava a liquidação definitiva do latifúndio e o fim de todas as sobrevivências feudais e escravistas no campo do país.

Além da liderança política de Julião, as Ligas contavam com a direção de figuras importantes do Movimento Camponês combativo, como Alípio de Freitas, Amaro Luiz de Carvalho e Diniz Cabral Filho. A liderança militar das Ligas era de Alexina Crespo, revolucionária e grande mobilizadora e organizadora da luta pela terra – também companheira de Julião.

1964: a reação do velho Estado

A iminência do golpe vinha se desenhando desde a posse de Goulart, ela mesma já marcada pelo intervencionismo dos ministros militares, que o impediram no primeiro momento de ter plenos poderes impondo um regime parlamentarista inconstitucional. Várias lideranças das Ligas foram, nessa época, sistematicamente assassinadas por jagunços e policiais amparados pelo velho Estado, preparando terreno para a reação fascista. Também o progresso de Trombas e Formoso tinha, para os latifundiários, de ser imediatamente parado. 

Combinando a luta legal pela terra e a autodefesa contra os ataques do latifúndio, o Movimento Camponês combativo defendia, de um lado, a reforma agrária, mas exigia urgência e o seu aprofundamento, no concreto defendendo uma mudança revolucionária a ser iniciada do campo e que cumpriria etapas democráticas que o velho Estado brasileiro, latifundiário-burguês por essência, jamais cumpriu. Essas etapas não estavam de acordo com os interesses dos latifundiários e também do imperialismo ianque, que tem por base da subjugação nacional a manutenção da produção agroexportadora e primária, do latifúndio, isto é. No Manifesto à Nação de 1962, as Ligas Camponesas e outras organizações de luta pela terra diziam com todas as letras que um governo que se apoiasse nos programas ianques, como Aliança para o Progresso “ou em outras formas de espoliação de nossa Pátria” só poderia merecer a repulsa do campesinato. Julião, em particular, dizia sobre Goulart:

“A conjuntura histórica exigia que ele pulasse do muro — ou para a direita ou para a esquerda. O homem preferiu pular para a direita, agarrando-se ferozmente, sofregamente ao livro de cheques da ‘Aliança para o Progresso’. Mortas estão, quanto a ele, as esperanças do povo brasileiro.”

Em Trombas e Formoso, em 1962, 20 mil títulos foram concedidos aos posseiros. Aliada das Ligas Camponesas, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), conseguiu em 1963 pressionar o governo de Goulart a passar o Estatuto do Trabalhador Rural. Apesar disso, porém, o governo relutava em desafiar diretamente o latifúndio e o imperialismo que o dava suporte. Deixava os latifundiários, muitos dos quais já defensores do golpe militar e do fascismo, armados. Isto também denunciou Julião em carta ao Ministro da Guerra do governo de Goulart, dizendo:

“Se o exército não desarma o latifúndio nem põe fora da lei o capanga sob a alegação de que lhe cumpre manter a propriedade privada da terra estruturada de maneira feudal com todas as injustiças e crueldades, não tem o direito de impedir que os camponeses também se armem para defender a vida e a liberdade que são bens mais sagrados que é o direito de legítima defesa que se reconhece até para os animais.”

A reforma agrária “na lei” não poderia jamais ser aceita, muito menos sendo sabido que jamais se poderia, uma vez conquistadas as reivindicações camponesas, parar o movimento das lutas pelas transformações democráticas no país. O golpe militar tratou, tão logo se deu, de criminalizar a Associação dos Trabalhadores de Trombas e Formoso, as Ligas Camponesas e outros movimentos camponeses que cresciam e desafiavam a ordem vigente. Ativistas políticos e lideranças foram caçados, presos e torturados. Porfírio e Julião foram ambos presos, Alexina Crespo exilou-se e passou a cumprir tarefas de relações internacionais das Ligas. Outros, como Alípio de Freitas, passaram à clandestinidade, lutando contra o regime militar fascista dentro do país. Estudos apontam que mais de 1,6 mil camponeses foram mortos pelos militares.

Assim como era a questão camponesa a mais urgente naquele momento para os democratas e revolucionários, também a reação lhe deu grande importância, atacando as organizações do Movimento Camponês combativo e pensando, assim, dar cabo da luta pela terra como um todo.

O Movimento Camponês combativo não foi derrotado

Apesar das pretensões dos golpistas de 64, o Movimento Camponês combativo jamais foi derrotado e reorganizou-se em torno das reivindicações pela terra e pelo fim do latifúndio, orientando-se de forma ainda mais concreta em torno da luta anti-latifundista e anti-imperialista. Em 2010, Alexina Crespo enviou uma mensagem à reunião ampliada da Comissão Nacional da Liga dos Camponeses Pobres na qual dizia:

“Eu desejo que vocês multipliquem, centupliquem essa organização de vocês para todo o Brasil e, enquanto eu puder ajudar, enquanto eu tiver um alentosinho vou seguir lutando. Não sei como: falando, falando, falando, e até quem sabe uns murros, também posso dar.”

A Liga dos Camponeses Pobres, especificamente, sofre constantemente ataques do latifúndio e da repressão do velho Estado por sua luta consequente na busca da libertação do país das cadeias impostas pela semifeudalidade, pela distribuição das terras para aqueles que nela vivem e trabalham.

Como antes, porém, o velho Estado segue defendendo principalmente os interesses dos latifundiários e age como auxiliar de sua reação contra o campesinato. Nenhum dos governos que vieram após o regime militar fascista ousaram desafiar de forma frontal essa velha chaga do país, deixando, assim, as raízes do reacionarismo mais arcaico bem fincadas no peito da nação. 

Ao relembrarmos o golpe de 64, portanto, devemos também lembrar-nos disso: enquanto existir o latifúndio, toda uma classe, uma parcela do povo, o campesinato, especialmente o campesinato pobre, não saberá jamais o que é democracia, não viverá sob uma democracia. 

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