Crônica: Os anatomistas

De qualquer forma, é uma figura curiosa essa do “anatomista” brasileiro. Se quiser um dia achá-la, recomendo que tateie pelos pântanos, que geralmente é onde ficam instalados.

Crônica: Os anatomistas

De qualquer forma, é uma figura curiosa essa do “anatomista” brasileiro. Se quiser um dia achá-la, recomendo que tateie pelos pântanos, que geralmente é onde ficam instalados.
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Conta-se de um antigo “sábio” que pretendia ser um grande anatomista. Gastou uma pequena fortuna na compra dos materiais de ponta da época, dos mais importantes livros e de um exemplar de esqueleto desarticulado em perfeitas condições. Montou para si um local respeitável, também, para exercer a profissão. Faltava-lhe, porém, uma coisa: conhecimentos sobre anatomia. Um dia, chegaram em seu local de trabalho e lhe pediram para explicar as ligações entre os ossos do esqueleto e para que ele o montasse. O “sábio” tentou e tentou, mas não conseguiu e, por fim, desistiu, xingando aqueles que lhe haviam tão injustamente desafiado e acusando-os de trocar as partes do esqueleto. 

Não faltam, em nosso país, “sábios” desse tipo. Melhor dizendo: os nossos chegam a negar a existência de partes do esqueleto se não conseguem o resultado esperado. Prefeririam afirmar que o velho Estado anda por aí sem as juntas dos joelhos ou sem sua espinha dorsal que admitir que erraram ou que desconhecem a realidade. 

Esses “sábios” vivem a dizer-nos que o país é capitalista, que as “antigas ilusões” sobre o caráter profundamente agrário de nosso país tem de ser desfeitas, que falar de campesinato é um arcaísmo, chegando a inverter a ordem das coisas e considerar o constante esvaziamento do campo como uma consequência da “modernidade capitalista” que nos invadiu e não da persistência anômala do verdadeiro arcaísmo, o latifúndio, que constantemente lança o campesinato arrasado às cidades por este último não conseguir mais garantir o próprio pão.

Esses “anatomistas”, ainda, decidiram que a resposta para os problemas do campo, se houver alguma, é mais “reforma agrária”, apesar dessa ficcional entidade, quando se faz minimamente corpórea em meio aos trilhões que o governo dá de bom grado ao “agronegócio”, ser alvo das mais desgraçadas artimanhas políticas e das tropas do latifúndio armado. Sobre o que fazer quanto a um e outro problema que nulificam sua “resposta” os “sábios” nada sabem dizer, senão argumentar, limitadamente, sobre uma “situação política favorável”. 

Mas que situação política seria essa? À moda de muitos “sábios” que vieram antes, os nossos apenas tentam nos assegurar que ela pode concorrer com a atual. Basta que o povo ouça os “sábios” e acredite em sua “anatomia” que tudo mudará. Assim, o camponês tem de saber-se não-camponês, assim como o latifundiário, por seu lado, deve tornar-se capitalista no sentido mais estrito da palavra, deixando para trás suas intenções feudais. Se tudo isso acontecer, se o vasto semiproletariado brasileiro tornar-se plenamente proletário também, então a “anatomia” estará correta, assim como nos livros bonitos dos “sábios”. Se estiver tudo de acordo, também, os ossos irão se ajeitar por si só, cabendo aos “anatomistas” apenas dar tapinhas uns nas costas dos outros e dizer: “Nós avisamos, nós avisamos!”. 

Como as coisas não se dão assim, os “anatomistas” preferem desprezar o povo e a realidade, e, certamente, se o povo com sua luta os desmascara, irão xingá-lo, se é que já não xingam.

De qualquer forma, é uma figura curiosa essa do “anatomista” brasileiro. Se quiser um dia achá-la, recomendo que tateie pelos pântanos, que geralmente é onde ficam instalados. Ao seu lado estarão os mercadejadores, um pouco mais desavergonhados, mas amissíssimos desses, que querem convencer-nos que é pagando aos surrupiadores que se reavê o bem surrupiado.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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